Outras Vozes

Ana Luísa Delgado

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1 cent.

Ele estava na rua. Eu passei por ele, beijei-o com os olhos e prossegui. Os passos seguintes foram as lágrimas mais difíceis. A cada passo que eu dava, avançava em mim um sentimento de culpa que crescia. Como se eu o percebesse como parente, como se ele me pertencesse por partilharmos a mesma forma: dois olhos, um nariz, uma boca, uma consciência semelhante. Cada passo que dava, um arrependimento.

Por isso, voltei para trás.

Olhei o céu muito longe e suspirei. Estava um dia frio, talvez demasiado. Li o que ele tinha escrito a vermelho, lembrei-me que vermelho é a cor do sangue, algo tão honesto como ‘I am fucked up and lost’. Noutro cartão ele escreveu ‘1 cent.’. Eu dei-lhe quase tudo o que tinha na carteira, dava para um bom lanche, pelo menos. Ele estava perdido e eu sentia-me culpada porque eu pertenço à sociedade que o recusa todos os dias. Eu pertenço à sociedade que lhe nega os empregos e a dignidade humana que comigo partilha e que o vê na rua como mobília diária, todos os dias, rejeitando-o. Antes de conceber qualquer projeção moral deveríamos pensar como foi aquela pessoa ali parar, aquela rua. Aquele encontro poderia acontecer com qualquer pessoa mas foi esta com quem cruzamos os olhos e nos vimos em reflexo.

Ana Catarina Lopes (Ilustração)
Ele era um rapaz muito bonito, muito jovem ainda, eu imaginei dizer-lhe ‘já pensaste em ser modelo? Tens uns olhos muito expressivos’. A sua timidez escondia um sorriso que emergia do mais profundo do seu ser, a sua esperança. Vi-o por segundos; o sorriso a erguer-se de cada osso, de cada músculo, de cada cabelo e unhas e órgãos. Todo ele era um sorriso como uma raíz que cresce.

A energia que lhe saía dos ossos seria eu aos pulos a gritar de riso num dia de inverno frio, cheio de chuva, eu toda gelada por causa da chuva e com o coração partido. Isso seria o meu limite: dar pulos de alegria e rir que nem uma louca de coração partido. Esse sorriso, que era dele, fez-me realizar o sofrimento que seria ter chegado ali e não ter qualquer saída. Ele estava na rua. Ele estava esforçar-se, eu senti-o, não tinha ainda um sentimento bem definido, nem ódio nem dúvida. Ele reunia todas as forças rumo à entrada do qual o silêncio começa. Sorria.

E eu não estou a culpar-nos, a nós, cidadãos. Estou a consciencializar-nos que também é nossa a responsabilidade daqueles que pedem nas ruas, daqueles que se despem e entregam o corpo como troca, porque a vida não lhes deu outro caminho, porque não nasceram no lugar ou hora ou família corretos. Porque cada corpo que se encontra na esquina da rua é um corpo negado, um corpo rejeitado pela sociedade, é um corpo que escapa aos dias com a lentidão de um dia de inverno que teima em passar. É nosso dever ajudar.

E quando eu falo no sorriso era um sorriso sem dentes, calado, quase um segredo que só a ambos pertencia.

Senti à minha volta um deserto, não sabia para onde prosseguir. Seria a morte do rapaz já presente, ou seria então a morte do dia?

Era um rapaz bonito. 
Ana Luísa Delgado


Ana Luísa Martins Delgado nasceu em 1997 na cidade de Coimbra, passando a maior parte da sua infância e adolescência na cidade de Viseu, onde viria a crescer. A passagem pelo Conservatório Regional de Música de Viseu fá-la render-se ao mundo das artes e cultura. A paixão pela leitura veio mais tardia, ainda nos tempos de Liceu. Recorda os momentos em que permanecia na sala de aula a discutir assuntos e ânsias quotidianas com a professora de Filosofia, que partilhou consigo certos títulos e volumes de literatura, fazendo com que, aos poucos, começasse a ler avidamente. Frequenta, de momento, o segundo ano de Medicina na FMUC, tendo um sublime interesse pelas especialidades ligadas à Saúde Mental.