Do cabrito à canja, sem papas na língua
Em 1996, nas Cataratas do Iguaçu.
Tendo nascido naquilo que designa como um “caldo de cultura favorável”, Armando Porto não consegue afirmar se foi para Medicina por influência do pai, o também médico e introdutor da electrocardiografia em Portugal, João Maria Porto. “Nunca houve pressão da sua parte nesse sentido”, recorda. Lembra-se, ao mesmo tempo, de um episódio curioso, passado já na faculdade, e, pode-se dizer, quase denominador comum de uma geração. “Um dia, ia a chegar à sala 17 da Medicina Legal e estavam alguns colegas nossos, do ano anterior ao meu: Linhares Furtado, Henrique Vilaça Ramos, Adelino Marques, Carrington da Costa. Riam-se muito e eu perguntei porque é que já estavam tão animados antes das nove. Então, disseram-me que tinham chegado à conclusão que, no anterior a entrarem em Medicina, queriam ir todos para Engenharia”. Armando Porto fala, em consequência, da noção de vocação, que considera “muito relativa”. Para si, admite que haja quem ache que “a vocação é uma coisa que define o futuro das pessoas. Admito que um ou outro cirurgião já gostasse de abrir coisas, mas era raríssimo isso acontecer. Não nego a noção que tenho de vocação, mas penso que depois se cultiva”.
A conversa é pontuada por muitas das preocupações atuais do antigo docente. O atual estado do ensino da Medicina é uma delas e a vocação é porta aberta para o assunto. “Acabei por entrar em Medicina com alguma facilidade. Não havia toda esta pressão que existe agora sobre os jovens. Uma pressão terrível e disparatada...”. Armando Porto considera que o estado do acesso ao ensino superior, em concreto aos recentes mestrados integrados na área da Medicina, está muito longe daquilo que seria desejável. Mas também é lesto em afirmar que não tem “a varinha de condão para resolver o problema”, até porque ele parte de uma espécie de tradição nacional de copiar o que os outros fazem, mas mal. Recorda um episódio da época em que pertencia ao Conselho Científico da FMUC: “o diretor da faculdade, à data o professor Mário Mendes, veio anunciar, muito contente, que o número de alunos ia aumentar de 90 para 120. Eu tinha estado, um mês antes, na clínica Mayo, nos Estados Unidos e disse-lhe que, não querendo fazer comparações, lá tinham passado de 90 para 45. Foi como se tivesse caído uma bomba, instalou-se um silêncio sepulcral”. Na base do raciocínio de Armando Porto está uma dependência excessiva, diz, que a dotação da faculdade tem do número de alunos. “Não havendo realmente uma independência financeira que permita que se selecione pela qualidade, tendo de se valer, ao invés, da quantidade, é muito difícil”. Fala de um possível sistema, que já existiu no pós-25 de abril, de seleção por entrevistas, mas logo avisa que é quase tão aleatório como tirar à sorte, dado que, para selecionar a partir de milhares de candidatos, é impensável que exista um só júri, que avalie com os mesmos pesos e medidas. Daí surgem, como é óbvio, as assimetrias, como já pôde assistir na avaliação contínua de Clínica Médica: “Na primeira vez que a fizemos, havia grupos de alunos a quem o assistente tinha dado 18 e outros a quem outro assistente tinha dado 14. Mandei repetir tudo. É de uma falta de seriedade a todos os níveis”. Deixa bem claro que não pode ser médico quem quer e exemplifica. “Eu gostava muito de ser regente de orquestra, mas antes disso tenho de saber música e ter jeito para isso. Temos de ser realistas nestas coisas”.
Da entrada em Medicina, a de Armando Porto e dos mais jovens, saltamos, no conforto da sua sala de estar, para a escolha de Medicina Interna. “Há pessoas que têm muito gosto, logo desde início, por determinada área. E há outras que têm uma noção mais global da Medicina, entendem-na como não podendo ser fracionada. Foi o meu caso”, refere. Aqui, com um sorriso, assume que o pai teve influência, como um mestre. Além de João Maria Porto, enumera aqueles que considera que eram, à data, os grandes internistas de Coimbra, e dos melhores do país: Augusto Vaz Serra, Mário Trincão, Antunes de Azevedo. Foi um percurso natural que culminou com o final do seu doutoramento, assume, com dois anos de África, e da temida guerra colonial, pelo meio.
“Devo ter sido o único médico que esteve nas três zonas de combate e que nunca ouviu um tiro”. Passou o primeiro ano no Hospital Militar de Luanda, no Serviço de Gastroenterologia. Depois, Cabinda. “Uma vez, o chefe do Estado Maior, Jorge Matias, avisou que ia à enfermaria quando estivéssemos a passar a visita. No final, virou-se para mim e disse que era a primeira vez que via um médico passar visita e dizer o que os doentes tinham, sem perguntar ao enfermeiro. Respondi-lhe que, com a prática que tínhamos em Coimbra, aquilo era canja”. A guerra, conta, não era direta, tinha muitos aspetos escondidos, laterais. Era a guerra do Solnado, uma espécie de ridículo que se misturava com a tragédia subjacente. “Havia um colega nosso de Ginecologia e Obstetrícia que era convidado, de vez em quando, para substituições em Luanda. Um dia, depois de receber uma senhora, diz-lhe para ela regressar dentro de 15 dias, ao que ela lhe responde:
- Mas o senhor doutor não vai estar cá.
- Não vou estar cá? Não vou de férias, claro que estou.
- Não vai estar cá daqui a 15 dias.
Ele ficou com aquilo atravessado. Tentou informar-se e a senhora era casada com um dos motoristas que levavam os abastecimentos para o interior de Angola. E eles calculavam a distância dos abastecimentos pelas quantidades, de modo que ela sabia que nós íamos sair nessa altura. Depois, mesmo numa guerra de guerrilha, de imprevisto, havia calculo. Os nossos oponentes sabiam quando nós íamos e o nosso comboio nunca era atacado. Três dias depois, outro comboio, uma série de mortos”.
Angola fica, então e de modo definitivo, para trás em 1966. Armando Porto doutora-se em dezembro de 1968 e, em 1972, é nomeado professor extraordinário. Um ano antes, a esse mesmo propósito, é chamado pelo diretor da FMUC, Augusto Vaz Serra. “Eu publicava bastante, por causa do movimento do serviço e, um dia, ele chamou-me à direção e disse que eu ia fazer o concurso no ano seguinte. Fiquei siderado, ao que me diz a expressão que tenho repetido muitas vezes: «Sem angústia, nada se faz». A palavra angústia talvez seja excessiva, por ser algo patológico, mas substituída por ansiedade percebe-se”. De ’72 a abril de 1974 o tempo passa muito depressa. Chega a revolução e, na FMUC, os saneamentos, que Armando Porto apelida, várias vezes, de “selvagens”. Faz parte do núcleo duro dos 25 que se insurgem a um nível maior. “Não lhe posso dizer os nomes, mas fomos quatro que reagimos ao saneamento selvagem do professor Rodrigues Branco, que dava Bioquímica e que não tinha outro modo de vida. Uma pessoa modesta, foi defesa-direito da Académica durante muitos anos para se sustentar e tirar o seu curso. Fomentámos então um grupo, que chegou a ser o grupo dos 25, que fez um conluio em que, se fossemos saneados, nos protegíamos uns aos outros. Nessa altura sabíamos que a então direção da faculdade andava esgazeada por saber quem eram os quatro principais, porque se conseguisse "degolar" esses, era natural que caísse o grupo todo. Mas nunca conseguiram”. Ri-se, à distância, com alguma satisfação pela façanha.
Enquanto júri, na cerimónia de entrega dos prémios BIAL, em 2003
Da prática da Medicina, tem presentes na memória dois casos que o marcaram. “O senhor recebe uns postais antes do Natal, de uns artistas que pintam com a boca?”, indaga-me. “A Vitória, posso dizer o nome e penso que ainda é viva, teve uma doença em que foi amputada de um membro superior, depois de um membro inferior, do outro membro superior e, por fim, do membro inferior que lhe restava. Só tem cabeça e tronco e mantém um espírito formidável. Durante uma ronda, entrei e já não havia muito a conversar, do ponto de vista médico. Diz-me ela assim: «Ó senhor professor, esta manhã acordei com umas dores de cabeça...». E eu fiquei a olhar para ela, apavorado. Como que arrependida, diz-me «Mas não me vão cortar a cabeça, pois não?». É espantoso, o humor de uma mulher numa situação daquelas”. A outra, uma mulher com uma doença em fase terminal e que ninguém queria dizer-lhe. “Um dia, estávamos apressados, tínhamos uma reunião a seguir, entro no quarto dela e digo «Camélia, linda flor». E ela vira-se para mim, «Mas que sempre pouco dura». Ela, afinal, sabia a doença que tinha”. Aqui, nota-se que o tom de voz de Armando Porto, ainda que sempre rigoroso, endurece. “É preciso ter uma carapaça, uma força anímica, para acompanhar as pessoas que sabemos que, mais dia menos dia, vão morrer. É muito fácil dizer que o que nunca se deve fazer é abandonar o doente, o pior é o resto”. Fala de novo num dos seus mestres, Augusto Vaz Serra: “O que vale é que há pessoas que encaram tudo de uma maneira positiva e que nos conseguem transmitir isso. Dizia-me o seguinte, quando lhe transmitíamos que um doente, pelo qual tínhamos feito muito, havia falecido: «Pois é, trabalharam tanto com ele que morreu curado». Queria dizer-nos que tínhamos feito tudo o que podíamos. Uma expressão muito curiosa”.
Não está insatisfeito com a vida que teve, muito pelo contrário. Mas se voltasse atrás e tivesse de escolher um caminho diferente, o que nunca escolheria era oncologia pediátrica. “Mesmo se ligarmos o sofrimento com algumas faltas que a pessoa adulta possa ter tido, na criança isso não faz qualquer sentido”, diz, de forma contundente. O resto é o resto, uma simplicidade que está patente no seu discurso sobre quem é e o que faz Armando Porto. “Bons livros e boas músicas é muito importante. Tive a sorte de ter uma família com três filhos e seis netos e isso ocupa-nos e preocupa-nos, mas também nos dá uma grande satisfação”. “Posso dizer que fui feliz na vida pessoal, profissional e familiar”, em resumo.