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Helena Freitas

Professora Catedrática de Ecologia e Biodiversidade na Universidade de Coimbra e diretora do Centro de Ecologia Funcional, Helena Freitas é também a detentora e coordenadora das atividades da Cátedra Unesco em Biodiversidade e Conservação para o Desenvolvimento Sustentável. Atualmente, é ainda coordenadora científica do Laboratório de Fitossanidade do Instituto Pedro Nunes e Diretora do Parque de Serralves.


Coordena, em Portugal, o projeto Europe Land, que obteve um financiamento de mais de seis milhões de euros para o desenvolvimento de ferramentas para o uso mais sustentável dos ecossistemas. Em que consiste este projeto, e quais os resultados e o impacto esperados?
O projeto visa identificar, desenvolver, testar e implementar ferramentas integradas para melhorar a compreensão dos fatores subjacentes à decisão sobre o uso do solo, bem como a sensibilização e envolvimento das partes interessadas face às alterações climáticas e aos desafios da biodiversidade. Visa assim alinhar uma visão nacional, regional e pan-europeia de apoio a estratégias de utilização do território, mitigação e adaptação às alterações climáticas e proteção da biodiversidade.

Hoje, uma das grandes dificuldades que enfrentamos é a de identificar até que ponto as políticas públicas permitem assegurar as funções e sustentabilidade dos ecossistemas a longo prazo.

A título de exemplo, precisamos de averiguar se, nas políticas agrícolas postas em prática, tem havido favorecimento ou prejuízo das condições do solo e da respetiva produtividade. Precisamos de estar preparados para fazer a transição da política agrícola de forma que o uso do solo seja adequado ao potencial do território, preparando as soluções de intervenção que respeitem esse potencial.

Precisamos de uma nova economia, apoiada nos serviços dos ecossistemas. Quando refletimos sobre as questões ambientais, percebemos bem que não temos sido capazes de incluir as externalidades e isso tem que acabar.

Por exemplo, produzimos contaminando águas e solos, mas essa externalidade que é a contaminação não é incorporada na cadeia de valor. As pessoas não pagam mais por um produto por causa disso. Por isso é que, por vezes, nos surpreendemos quando vemos que comprar uma fruta vinda da China é mais barata do que comprarmos uma fruta do mercado local. Isso tem muito a ver com as perversidades que deixámos instalar no sistema alimentar e com a incapacidade que temos tido para, de facto, incorporar essas externalidades. Vamos pagá-las, claro.

Temos assistido, por exemplo, aos casos das barragens. As barragens portuguesas são instaladas em territórios mais deprimidos, com perda demográfica e poucas soluções de economia, mas o que acontece depois é que o rendimento que advém dessas barragens está na sede da empresa que, frequentemente, fica na capital, e não na região onde ficam as barragens.

Não compensamos o território que produz valor. O território que produz a água não é compensado por isso, e a verdade é que, frequentemente, nem sequer tem soluções de economia. Nem sequer ao nível dos impostos estamos a compensar esse território.

O objetivo do projeto Europe Land é, precisamente, o de ajustar as políticas públicas que interferem diretamente com os ecossistemas, para onde os investimentos devem ir de forma prioritária.

Com a saída do Reino Unido da União Europeia [UE], e dando aqui um exemplo concreto, a Inglaterra deixou de estar condicionada pela Política Agrícola Comum (PAC) da UE. Por norma, metade do quadro comunitário vai para a agricultura, mas é utilizada para soluções que não consideram verdadeiramente os territórios.

São, de facto, soluções e medidas de caráter muitas vezes genérico, e que nem sempre são adotadas da melhor forma. O que os ingleses estão a pensar fazer, e bem, é abandonar essas medidas generalistas e, por exemplo, proporem que um agricultor seja pago por conservar ou manter uma floresta, charcos ou zonas húmidas, valorizando, deste modo, a natureza. E isso ajuda também o próprio agricultor, que, ao manter uma zona húmida, terá mais água a longo prazo nesse território, mantendo, também, a biodiversidade associada.

E é este tipo de solução, baseada na conservação do território e da natureza, que temos de colocar no quadro da economia convencional, o que vai, progressivamente, torná-la mais sustentável. Como diz a Ursula von der Leyen muito bem: bringing back nature to our lives [trazer de volta a natureza para as nossas vidas]. Temos esse desafio de trazer a natureza para as nossas soluções, tanto de mitigação do clima quanto de conservação da biodiversidade.

O propósito do Europe Land é, através de casos de estudo à escala europeia, equacionar os investimentos dirigidos aos serviços de ecossistemas. O caso português vai considerar Castro Verde, mais concretamente a região de Campo Branco, que tem solos muito pobres e frágeis e onde faremos uma avaliação do impacto da política agrícola comum.


A forma como se aborda, nos dias de hoje, a utilização dos solos está a levar à sua exaustação. Como se pode contornar esta situação, quando temos um aumento da população?
Grande parte dos solos de Portugal não tem aptidão agrícola, por vários motivos. Ou porque são muito pobres e degradados, ou porque, por exemplo, por causa de incêndios, perderam capacidade produtiva.

O que devemos fazer, face até aos novos cenários climáticos, é um zonamento agroecológico. A nossa carta dos solos não tem tido atualizações. Essa atualização deve agora ser feita em função de novas variáveis e daquilo que são estes novos cenários. É importante, acima de tudo, valorizar o solo, sendo que a pressão exercida sobre este sistema vivo é cada vez maior.

Começámos, finalmente, a valorizar o solo na agenda e na política europeias, e teremos nesse âmbito uma legislação muito mais forte e adequada. Portugal segue, obviamente, essa tendência. O diretor-geral da Direcção-Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural [DGADR] afirmou, recentemente, que Portugal terá um Observatório para a monitorização dos solos.

Há, efetivamente, uma maior preocupação no que diz respeito ao solo enquanto substrato que permite a vida a vários níveis. Vamos, futuramente, trabalhar no sentido da sua regeneração, pela incorporação de matéria orgânica e por utilizações menos intensivas.

Uma das missões do Horizonte Europa é exatamente a preocupação pelos solos e pela saúde dos solos, precisamente porque a boa saúde de um solo é, também, a boa saúde da alimentação e, consequentemente, a nossa boa saúde.


Falou de novos cenários climáticos. Temos assistido a situações meteorológicas críticas, nomeadamente a cheias que tiveram um grande impacto em Lisboa, no final do ano passado, e no Porto, no início deste ano. O que se pode fazer para atenuar o impacto causado, neste caso, por fortes chuvas?
Em boa verdade, aquilo que nós devíamos poder fazer era desconstruir o que foi mal construído. Nas cidades, temos frequentemente zonas densamente construídas em leitos de cheia, em zonas que deveriam ser de livre circulação de água. Desta forma, as soluções de escoamento de água acabaram por ser eliminadas.

Vamos continuar a ter este tipo de cenários de forma mais recorrente. Isto não é uma mera previsão: hoje, os modelos que temos para avaliar a possibilidade destes cenários são bem robustos e permitem-nos afirmá-los com toda a certeza.

Não podendo desconstruir o que está construído, temos de começar a mitigar o impacto destas situações e avaliar, sobretudo nas cidades, as possibilidades de maior risco, assinalando claramente essa condição e procurando soluções.

Por isso, precisamos de estar preparados para eventuais cenários extremos, identificando de forma muito clara nas cidades quais são as localizações de maior risco, introduzindo mecanismos de prevenção e mitigação. Idealmente, devemos também criar zonas de escape para as águas pluviais, considerando até o seu aproveitamento para outras funções.

Esses mecanismos de prevenção devem ser de fácil acesso às populações que vivem nas zonas de maior risco. Nos casos que assistimos recentemente no Porto e em Lisboa, essas zonas são habitadas por pessoas em situação de fragilidade e precariedade sociais, devendo ter resposta prioritária.

As cidades têm de estar preparadas para os novos cenários climáticos, especialmente as cidades costeiras, que vão ser alvo destes impactos de forma mais recorrente e intensa. Como referi, não podendo desconstruir aquilo que foi mal construído, temos de fazer um adequado mapeamento de risco, prevenir e adaptar os contextos, assegurando a proteção das populações.

Segundo dados do Inquérito Eurobarómetro, Portugal é o país da UE onde as pessoas dizem sentir-se menos informadas acerca dos problemas da qualidade do ar e poluição atmosférica. Que caminho considera que a divulgação de Ciência neste campo deve trilhar por forma a ser mais assertiva e eficaz?
É verdade. Em termos da qualidade do ar, temos muito pouca informação a chegar ao cidadão, e aquela que temos diz essencialmente respeito a monitorização orientada pela obrigatoriedade do cumprimento da legislação em vigor.

Mas é também verdade que tem havido uma evolução na informação disponível acerca destes assuntos, muito potenciada pela vontade dos próprios cidadãos. O website do IPMA [Instituto Português do Mar e da Atmosfera] é, hoje, muito diferente daquilo que era há dez anos.

Atualmente, o nível de credibilidade dessas informações é também muito maior. Estamos sempre a ver, nos nossos telemóveis, se vai ou não chover, e acreditamos na informação que nos é dada: se existe a informação de que vai chover, ficamos à espera de que chova! Mas, antigamente, brincávamos com isso, e até esperávamos exatamente o contrário.

Há uma maior confiança agora nos dados que a meteorologia nos faculta, pelo que não penso que a pouca informação a que os cidadãos dizem ter acesso acerca da qualidade do ar e da poluição atmosférica se deva a um sentimento de desconfiança.

Acredito que o que esteja em causa seja falta de literacia para interpretar informações relacionadas com a qualidade do ar. Esta informação a que temos acesso nos telefones móveis, sobre a temperatura e a probabilidade de chuva, tem também incluídos dados sobre a qualidade do ar. O que acontece, provavelmente, é que as pessoas não têm ainda a literacia necessária para interpretar devidamente esses dados.

Se uma pessoa vê, no telemóvel, que a qualidade do ar está muito má, não sabe, concretamente, avaliar o impacto dessa má qualidade, até porque não nota nada de diferente quando respira, por exemplo.

Existe, realmente, um trabalho a ser feito neste âmbito, no sentido de encontrar indicadores mais legíveis e percetíveis para as pessoas.


É detentora da Cátedra Unesco em Biodiversidade e Conservação para o Desenvolvimento Sustentável. Que significado tem para si a atribuição desta Cátedra, e o que tem sido feito no seu âmbito?
Para mim, a Cátedra foi uma aposta em termos de percurso científico e académico desde o início. Valorizo muito o papel da Unesco e os pilares da ciência, da educação e da cultura. Penso que esses são os ingredientes certos para fazer a mudança e a transformação no mundo, no sentido de conseguirmos viver num planeta em que a humanidade coexiste com todas as outras formas de vida numa relação de harmonia. Acredito que os pilares da Unesco são essenciais para fazermos essa transformação no mundo.

Quando propus a Cátedra, tinha exatamente esse objetivo, e, por isso, elegi como prioridade a conservação da biodiversidade! Sempre acreditei que nada nos aproxima mais da nossa condição humana do que a natureza.

Cada um de nós é, à sua medida, um guardião da biodiversidade, e isso tem, seguramente, uma enorme importância para a forma como valorizamos o outro e respeitamos a vida em geral.

Fiz esta proposta de Cátedra pensando, exatamente, em trazer a biodiversidade para o centro das preocupações, nos contextos onde, de facto, a biodiversidade é ainda o ativo importante para a prosperidade das comunidades e dos povos.

Pensei sobretudo em África, mas, mais concretamente, elegi as reservas da biosfera, que são territórios Unesco nos quais a conservação da natureza é um elemento central. Essa conservação da natureza resulta, no fundo, de um modelo de desenvolvimento integrado.

Em Portugal, temos 12 reservas da biosfera. No espaço da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], temos mais de 20 e, no mundo, aproximadamente 730 reservas, o que representa cerca de 6% do planeta.

Esse sempre foi o objetivo da Cátedra, o de trabalhar a biodiversidade enquanto parte do modelo de desenvolvimento territorial, no respeito por tudo aquilo que a Unesco consagra, através da valorização da ciência, da educação e da cultura.

Penso que temos conseguido criar boas dinâmicas, fazer várias coisas e ter diversos projetos aprovados. O próprio centro que coordeno [Centro de Ecologia Funcional] e que fundei há alguns anos, tem como linha transversal esta Cátedra da Unesco.

A Cátedra resulta num trabalho em contínuo, sendo um “chapéu” de muitas atividades. Tenho tido várias pessoas a ajudarem-me nesta Cátedra que espero que, neste momento, seja uma Cátedra da Universidade de Coimbra, e que tem, de facto, esse desígnio de trabalhar a biodiversidade em prol do desenvolvimento das comunidades.


por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Helena Freitas 


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