4'33''

Filipe Albuquerque

No passado dia 19 de setembro, data da realização desta entrevista, Filipe Albuquerque foi o convidado de honra da sessão de acolhimento aos novos alunos de Medicina e de Medicina Dentária da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), para os quais dirigiu palavras inspiradoras.


Vem de uma família de médicos. Os seus pais fizeram o curso de Medicina aqui na FMUC. Alguma vez pensou ser médico, ou nem houve tempo para isso, dado que se iniciou na modalidade de karting logo aos sete anos de idade?
Acho que nunca me passou pela cabeça ser médico. O meu pai sempre gostou muito de automobilismo, de carros, de mecânica e de tudo isso. Mas, na altura dele, a educação era outra, um pouco mais imponente, digamos assim. Por isso, o meu avô “obrigou-o” a tirar Medicina, e ele acabou por ser um excelente oftalmologista.

O facto é que o meu pai sempre nos deu a conhecer, a mim e aos meus irmãos, vários desportos, e o automobilismo foi o que me cativou mais. E é engraçado porque, apesar de vir de uma família de médicos, a partir da minha geração tenho apenas um primo que tirou Medicina. Todos os outros seguiram rumos diferentes!


Mas tentou ainda praticar outros desportos?
Tentei. Futebol, esqui na neve, esqui aquático, mota… fiz uma data deles, todos mais radicais. Tive essa liberdade para experimentar e para escolher, e isso é muito importante. Os meus pais sempre me disseram que, se eu quisesse ser médico, podia sê-lo, mas que era livre de escolher aquilo que quisesse para mim, desde que escolhesse com amor. Eles proporcionaram-me essa liberdade, e ter uns pais assim foi, sem dúvida, a minha grande sorte.


Amanhã viaja até Nova Iorque, e na semana passada esteve a competir em Tóquio. Como é que alguém de Coimbra, mas que passa tanto tempo fora, olha para esta cidade?
Já digo isto há muitos anos: quanto mais uma pessoa viaja, mais se apercebe do cantinho precioso que é Coimbra. Vou com frequência a grandes cidades, que acabo por conhecer bem também, mas parece que essas cidades não conseguem proporcionar-me a qualidade de vida que tenho aqui.

É em Coimbra que tenho a minha família e é aqui me sinto bem e em casa. Esta é uma cidade com uma dimensão fantástica, onde as minhas filhas estudam e onde me desloco com facilidade para ir buscá-las à escola, à ginástica ou ao ballet, para ir treinar e fazer a minha vida. Além disso, atualmente, com plataformas como o Zoom, é muito fácil trabalhar e dar entrevistas à distância, ou seja, facilita-nos a decisão de podermos escolher onde vivemos, caso a nossa atividade profissional o permita, claro. E Coimbra dá-me a calma de que preciso e a qualidade de vida que quero. Sinto-me um felizardo por isso.


Consegue ter o melhor de todos os mundos aqui.
Sem dúvida alguma! Temos sempre uma tendência de olhar para fora, acreditando que o que está fora é melhor do que aquilo que aqui está. O facto é que há muita gente que vai viver para fora e que quer regressar, porque, realmente, o que nós aqui temos é muito bom.


Pratica um desporto que exige esforço físico, mas também mental. Como se prepara para as competições, e o que o faz manter a motivação para enfrentar os obstáculos que vão surgindo?
Sou muito fiel a mim mesmo. Tento sempre rodear-me das pessoas que me viram nascer, que me conhecem desde pequeno e que me mantêm os pés assentes na terra. Acho que, quando não temos essas pessoas por perto, que nos conhecem quase desde sempre, é fácil deslumbrarmo-nos.

Acredito que é muito bom termos alguém para nos puxar para a terra quando temos sucesso, assim como é bom termos alguém que nos “levante” quando as coisas correm mal. Tem tudo a ver com equilíbrio, e sempre senti que aqui em Coimbra conseguia alcançar esse equilíbrio, através dos meus amigos e dos meus familiares, e também através das memórias de quando era pequeno e que me vêm à cabeça quando passo por vários pontos da cidade, porque foi assim que consegui chegar tão longe. Isso não tem preço.

A parte mental é mesmo muito importante, e faço por ter a cabeça “limpa” de problemas quando estou a competir. É claro que é preciso ir resolvendo coisas do dia a dia, mas tento sempre estar minimamente em paz.

Quanto à preparação física, costumo ir com regularidade correr à Mata do Choupal e ao ginásio, para que a força não me falte e para que, no momento crucial da corrida, tudo esteja alinhado para que consiga tomar as melhores decisões.

A preparação para uma corrida envolve um conjunto de decisões e situações importantes. Se tenho uma corrida daqui a 15 dias, já estou a pensar nela há três semanas, para perceber onde posso ser melhor e fazer a diferença, tentando organizar-me para estar completamente relaxado e sem preocupações nessa altura. Estou constantemente a pensar nisso: às vezes, estou a deitar as minhas filhas e lembro-me subitamente de algum aspeto que posso melhorar, e que depois vou logo registar.


É campeão europeu e mundial. O que sentiu ao alcançar essas vitórias?
Alívio! E uma satisfação enorme… um sentimento de realização e de confiança, que me faz acreditar em todo o esforço empenhado ao longo dos anos.

E também de agradecimento à minha família, à minha mulher, que fica aqui em Coimbra a tomar conta das nossas filhas enquanto estou fora. É também por eles que conquisto estas vitórias. Eu sou a cara por detrás da taça, mas atrás de mim tenho uma grande equipa também, de família, amigos e patrocinadores, que me ajudam a chegar ao topo.


E uma vez no topo, como lida com isso? Porque é difícil chegar ao topo, mas depois será também difícil manter-se lá, e acredito que seja igualmente difícil gerir essa expectativa.
Tento sempre manter a humildade, porque é muito fácil, quando estamos no topo, acharmos que somos os melhores e que, por isso, já não precisamos de trabalhar. Mas aquilo que digo para mim mesmo é que, quanto mais ganho, mais humilde tenho de ser.

Se ganhei algo, tenho de treinar mais e trabalhar mais para voltar a consegui-lo. E é verdade que a responsabilidade é muita, mas ao mesmo tempo penso sempre que faço isto porque gosto e faço isto por mim. Se foi assim que comecei, é assim que tenho de continuar. Não tenho de mudar só porque atingi o topo.

É essa a mensagem que também tento passar aos mais novos, tal como fiz hoje aqui na sessão de acolhimento aos novos alunos da FMUC: devemos ser sempre humildes, trabalhadores e dedicados.


O que lhe falta ganhar?
Gostava muito de ganhar agora nos Estados Unidos… A importância deste campeonato é superior à do campeonato da Europa e à do campeonato do mundo. Queria mesmo muito ganhar… No ano passado, liderámos todo o campeonato e, na última prova, caímos para o segundo lugar. Perdemos por um ponto apenas… foi duro!

Este ano, estamos a liderar apenas com mais um ponto também. Está muito renhido, e quem vê as corridas sabe que, apesar de durarem horas, é sempre nos últimos 10 ou 15 minutos que tudo acontece… é uma loucura, com muita emoção também. Mas gostava muito de conquistar este campeonato porque isso faria com que fosse dos únicos pilotos no mundo a ganhar os três campeonatos à geral… Ou seja, gostava de ganhar pela minha equipa, obviamente, mas também por mim.














Para além do campeonato americano, quero muito ganhar as 24 Horas de Le Mans à geral. Já ganhei na classe, que é bem mais competitiva, mas à geral acaba por ser ainda mais importante.

Ganhar é viciante! Isso ajuda-me e motiva-me. Ter tanto trabalho, sacrificar-me, estar longe das minhas filhas e da minha mulher para, depois, não ganhar? Não! Vou dar sempre o meu máximo para tentar alcançar o primeiro lugar.


Referiu que tudo se decide nos últimos minutos da corrida. Nesses minutos, em que é que pensa? Ou o momento é de tanta emoção que, quando acaba, nem se lembra muito bem do que aconteceu?
Às vezes a concentração é tal que não sei bem como as coisas aconteceram… Mas consigo dizer por alto o que se passou.


Tem consciência de si naquele momento?
Tenho. Ou seja, apesar de ir a 300 quilómetros por hora, ou acima disso, tenho uma visão periférica de tudo o que se está a passar. Se existir um camião com as luzes acesas fora da pista, eu tenho de dizer ao engenheiro que não gosto daquilo porque posso confundir as luzes com bandeiras amarelas, o que significa que não posso avançar, por exemplo. Tenho a perceção dos pilotos que estão à frente, de como vão reagir quando os abordar e de como vou ultrapassá-los.

Numa das últimas corridas que fiz, aconteceu exatamente uma dessas situações de ultrapassagem. Tentei ultrapassar o piloto à minha frente quando já estávamos nos derradeiros minutos da corrida, e não consegui. Então, comecei a calcular toda a situação: percebi que daí a três curvas, era possível ultrapassá-lo, e ia a pensar nisto, precisamente, enquanto conduzia a 300 quilómetros por hora. Cheguei ao momento em que podia ultrapassar e decidi ir pela relva, passando para primeiro lugar.


E nessas decisões arriscadas, tem consciência de que pode estar a colocar a sua vida em risco, ou isso nem sequer lhe passa pela cabeça?
Há uma parte de risco, sim, mas eu acredito sempre que está tudo controlado (risos). Claro que às vezes pode não correr bem, mas também devo dizer que, ao longo dos anos, a segurança destes carros tem evoluído e aumentado imenso. E o medo nunca fez parte de mim.

Ou seja, o risco é calculado. Por vezes, coloco-me em situações em que estou muito perto de bater. Assim acontece, mas só acontece a quem lá anda. E em curvas que fazemos a 230 ou 240 quilómetros por hora, as coisas podem mesmo correr mal, mas o meu pensamento é o de que, se conseguir fazer a curva, vai ser incrível!


por Luísa Carvalho Carreira
fotografias Arquivo da Universidade de Coimbra


Voltar à newsletter #40