Na conquista por uma nova estratégia terapêutica para a estenose aórtica

Isto é FMUC

Liderado por Tânia Martins Marques, investigadora do Instituto de Investigação Clínica e Biomédica da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (iCBR-FMUC), o Projeto Exploratório ‘ConCOEUR’, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), pretende caracterizar o impacto da Conexina43 na estenose aórtica, uma das doenças cardiovasculares mais comuns na população portuguesa idosa.

Um projeto original, a começar pelo acrónimo

Este projeto tem como título "ConCOEUR: um novo papel para a Conexina43 na modulação da expressão génica e suas implicações na evolução da estenose aórtica e hipertrofia ventricular esquerda". Posto assim, parece demasiado complexo, nomeadamente para quem não domina esta área de investigação. Mas vamos por partes.

Primeira parte: ciência. A Conexina43 é uma importante proteína das junções comunicantes em cardiomiócitos, células do coração.

Segunda parte: francês. Sim, francês. “Coração”, na língua francesa, escreve-se “coeur”.

Terceira parte: uma combinação entre ciência, francês e inglês. Tira-se o “Con” de “Conexina”, junta-se-lhe o “coeur” e aí temos o nome do projeto, ConCOEUR, uma analogia a “conquer”, termo inglês para “conquistar”.

Assim, este é um projeto que tem em vista a conquista de uma nova estratégia terapêutica para a estenose aórtica, a doença valvar cardíaca mais prevalente e a terceira causa mais comum de doença cardiovascular no mundo ocidental. Caracterizada pelo progressivo estreitamento, fibrose e calcificação da válvula aórtica – uma das quatro válvulas cardíacas, a que separa o ventrículo esquerdo da artéria aorta – a estenose aórtica interfere com o normal processo de ejeção do sangue pelo coração.

Esta doença é conhecida por ser uma das principais causas de hipertrofia do ventrículo esquerdo. Atualmente, a substituição da válvula aórtica constitui-se enquanto único tratamento para os doentes com estenose aórtica sintomática grave. No entanto, a maioria dos doentes tem um período assintomático longo, o que acaba por dificultar o respetivo diagnóstico e uma intervenção atempada, algo que pode ter um desfecho fatal. Nesse sentido, é crucial identificar novas terapias que impeçam a progressão da estenose aórtica e da disfunção cardíaca, bem como marcadores de estratificação de risco, tendo em vista uma melhoria do prognóstico dos doentes.

“O nosso modelo prevê que a acumulação de Conexina43 no núcleo celular seja responsável pela progressão desta doença e consequente hipertrofia cardíaca”, esclarece Tânia Martins Marques. “O projeto ConCOEUR assenta num esforço integrado e interdisciplinar de translação, aliando conhecimento básico e modelos pré-clínicos à doença humana”, acrescenta.


A substituição da válvula aórtica
A investigadora responsável do ConCOEUR explica que, na origem deste projeto, esteve a vontade do estabelecimento de uma colaboração do grupo de investigação a que pertence, o GuIC (Group of Ubiquitin-dependent Proteolysis and Intercellular Communication), liderado por Henrique Girão, com o Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC).

“Em traços gerais, a ideia surgiu de uma conversa que tivemos com o Gonçalo Coutinho, da Cirurgia Cardiotorácica, que é co-investigador responsável deste projeto. Queríamos desenvolver projetos de colaboração e, para isso, queríamos primeiro perceber que procedimentos cirúrgicos faziam para determinadas doenças, tentando perceber também de que forma os interesses deles se poderiam alinhar com os nossos”, refere.









O que nos foi dito nessa conversa foi que, provavelmente, a cirurgia que faziam com maior frequência era para corrigir a estenose aórtica, cirurgia essa que se chama substituição da válvula aórtica”, indica.

Falamos da única terapia existente para doentes com estenose aórtica, doença associada sobretudo ao envelhecimento. “Ou seja, muitas destas pessoas operadas têm já idades avançadas, pelo que uma cirurgia invasiva nem sempre é a melhor abordagem”, observa Tânia Martins Marques.

Além disso, e mesmo nos casos em que esta cirurgia é feita em pessoas mais jovens, o que acaba por acontecer é, algum tempo depois, ser necessária uma nova substituição da válvula aórtica. “Normalmente, esta substituição é feita com recurso a uma válvula de origem animal, bovina ou porcina. Quando, mais tarde, esta válvula começa a dar também problemas, isso faz com que os doentes andem num círculo vicioso, porque a única alternativa que têm é fazer uma nova cirurgia de substituição da válvula”, constata.


A Conexina43 e o seu papel na progressão da doença
Conforme referido anteriormente, o principal pressuposto deste projeto de investigação é o de tentar perceber melhor quais os mecanismos que conduzem à calcificação da válvula aórtica. “O coração tem quatro válvulas que permitem regular o fluxo de sangue através do coração, que funcionam como portas de entrada e de saída do sangue”, explica a investigadora responsável.

“Neste caso concreto, a válvula com a qual trabalhamos é a válvula aórtica, que funciona como porta de saída, ou seja, esta ‘porta’ regula a saída de sangue do coração para todo o corpo”, acrescenta. Com o normal processo de envelhecimento, esta válvula começa a enrijecer e a calcificar, deixando de conseguir fazer este procedimento de saída do sangue de forma correta e eficaz.

“Neste cenário, ficamos perante dois problemas: por um lado, para que o coração consiga bombear o sangue para todo o corpo, vai ter de começar a exercer mais força para vencer esta resistência causada pelo enrijecimento e pela calcificação e, por outro lado, o próprio coração começa a hipertrofiar e a funcionar mal. Quando os doentes procuram ajuda, é porque o coração já não está a funcionar bem, mas o problema de base é esta calcificação da válvula”, destaca.










Uma vez que um dos principais interesses de investigação do GuIC é a Conexina43, e que este grupo tem já resultados prévios que demonstram que esta proteína é capaz de regular a expressão de genes nas células, Tânia Martins Marques refere que este projeto “tentará perceber se os genes cuja transcrição é regulada por esta conexina podem estar relacionados com a progressão da calcificação da válvula aórtica, tentando também, deste modo e a par da compreensão dos seus mecanismos, modelar esses mesmos mecanismos para ter uma alternativa farmacológica direcionada a esta patologia”.


As instituições e pessoas envolvidas no projeto
Envolvendo o iCBR-FMUC, o CHUC e a Universidade de Genebra, o projeto ConCOEUR conta com a colaboração de oito investigadores, para além de Tânia Martins Marques e Gonçalo Coutinho. Assim, da equipa de investigação fazem igualmente parte Brenda Kwak, Henrique Girão, Lino Gonçalves, Maria Ferreira, Mónica Zuzarte, Pedro Antunes, Rui Baptista e Teresa Rodrigues.

“Do CHUC, reunimos pessoas da Cirurgia Cardiotorácica, mas também da Cardiologia”, salienta a investigadora responsável. “O que queremos perceber é se, depois da substituição da válvula por uma que funcione bem, o coração deixa de ser hipertrófico. Aquilo que sabemos até agora é que isso não acontece com todos os doentes. Há casos em que o coração volta a ser o que era, e há outros em que não, mas não se sabe porquê. Por isso, queremos avaliar se o nível de calcificação da válvula e, nomeadamente, os genes que a conexina ajuda a transcrever na válvula podem determinar se aquele doente vai ou não ter uma recuperação total, algo que o acompanhamento destes doentes pelo Serviço de Cardiologia vai possibilitar”, complementa.


Os desafios de uma vida dedicada à investigação
No iCBR-FMUC há quase 10 anos, é percetível no discurso de Tânia Martins Marques a dedicação com a qual vai trilhando o seu percurso na investigação, ainda que este seja, muitas vezes, tortuoso, e que requeira um grande espírito de sacrífico e resiliência.

“Vim para aqui em 2012, depois da licenciatura em Bioquímica e quando estava no início do mestrado em Biologia Celular e Molecular”, contextualiza. Nessa altura, Henrique Girão, atual diretor do iCBR-FMUC, era já o coordenador da linha de investigação em Doenças Cardiovasculares deste instituto.

“Basicamente, conheci-o através dos media”, brinca, “porque ele tinha acabado de publicar um artigo de Biologia Celular e foi entrevistado nesse âmbito. Quando o entrevistaram, referiu estar interessado nas doenças do coração, e eu achei isso relevante porque, na verdade, não existiam, e continuam a não existir, muitos grupos de investigação a trabalhar nestas doenças no que diz respeito aos seus mecanismos mais básicos… Por isso, contactei-o e vim trabalhar para aqui”, conta.

Foi já no iCBR-FMUC que Tânia Martins Marques terminou o mestrado, em 2014, e fez, entretanto, o Doutoramento em Envelhecimento e Doenças Crónicas da FMUC, concluído no início de 2020. “E hoje, cá continuo”, refere, com um notável entusiasmo pela investigação que desenvolve, mas que não é, no entanto, desprovida de dificuldades.

“Acho que um dos maiores desafios de trabalhar numa área como a investigação aplicada, neste caso, à Cardiologia, é quando pensamos fazer investigação mais translacional, já que, precisando de recorrer a amostras de doentes, não conseguimos ter propriamente aquilo a que chamamos de controlos”, refere.










“Por vezes, torna-se difícil tentarmos perceber padrões de alteração numa determinada doença quando não temos um controlo para comparação. Isto porque, felizmente, as pessoas saudáveis não precisam de andar por aí a fazer biópsias do coração! Claro que temos técnicas não-invasivas, como as análises ao sangue, para estudarmos alguns mecanismos, só que há outros em que, de facto, apenas essas técnicas não são suficientes”, observa.

O coração, um órgão fascinante
Apesar dos constantes desafios, Tânia Martins Marques considera que são estes que acabam por, de certa forma, tornar a investigação ainda mais aliciante. “No que diz respeito às doenças cardiovasculares, é certo que houve uma grande evolução nas últimas décadas, mas, ainda assim, há muitos problemas que continuam à espera de uma solução. Investiu-se muito em novas abordagens terapêuticas para a insuficiência e para a isquémia cardíacas, por exemplo, mas em muitas outras doenças não, como é o caso da estenose aórtica”, menciona.

“E eu acho que o coração é, de facto, um órgão fascinante! Não apenas pela sua função vital, mas também em termos de Biologia Celular… é um órgão constituído por imensas células diferentes, que têm de comunicar umas com as outras de forma eficiente, e que o fazem também de diversas formas. É muito interessante perceber estas redes de comunicação dentro do coração, e por isso é que considero que é tão desafiante investigá-lo”, enfatiza.

A sensação de estar no sítio certo
Quando, no final de 2019 e prestes a defender a sua tese de doutoramento, participou na rubrica da VoiceMED ‘Lucerna’, Tânia Martins Marques terminou o seu texto afirmando que:

“O destino ou o acaso levaram-me à bioquímica e hoje tenho a certeza de que o meu lugar é aqui. E devo essa certeza (…) sobretudo às pessoas, aos investigadores e médicos brilhantes, aos Mestres e Doutores com quem tive o privilégio de privar nos últimos anos, que inspiraram e guiaram verdadeiramente o meu trajeto.”

Volvidos quase três anos, garante que essa é uma certeza que mantém. “Não me vejo a fazer outra coisa que não seja ciência, muito sinceramente. E a vida na ciência é muito difícil: não há estabilidade, não há garantias, não há certezas de nada”, constata.

“Mas aquilo que ganho com o meu trabalho – e não estou a falar em termos financeiros – e as alegrias que isso me dá, acabam por mitigar um pouco essas dificuldades. Vivo com intensidade aquilo que faço, por isso, quando as experiências correm mal, sofro muito, mas, quando correm bem, é a melhor sensação do mundo”, destaca. “E acho que, na investigação científica, ou fazemos isto porque gostamos mesmo ou, caso contrário, não faz qualquer sentido”, finaliza.

por Luísa Carvalho Carreira (texto e fotografias)