Fora da Medicina
Auto dos Físicos em DVD
O espectáculo de teatro estreado em 2014, no âmbito das comemorações dos 35 anos do Serviço Nacional de Saúde, está agora disponível em DVD. "Auto dos Físicos", de Gil Vicente, é uma co-produção entre A Escola da Noite – Grupo de Teatro de Coimbra e a Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos e oferece uma divertida viagem no tempo ao Portugal do século XVI.
Escrito e representado pela primeira vez entre 1512 e 1524, o Auto dos Físicos encerra o livro das farsas na "Copilaçam" de 1562, mas viria a ser excluído, pela censura da Inquisição, na edição de 1586.
Acredita-se, pelo tom chocarreiro e pelo burlesco que a caracterizam, que foi representada em época de Carnaval. Um padre "morre" de um amor não correspondido e quatro médicos (os "físicos") visitam-no à vez, sugerindo estapafúrdios remédios. Brásia Dias, a parente que primeiro o tenta ajudar, um moço transformado em (fraco) alcoviteiro e um padre confessor que compreende "bem demais" o sofrimento do seu colega completam o leque de personagens desta farsa, rematada por uma "ensalada" vicentina, com referências e citações de outras peças do autor e a elementos do cancioneiro tradicional.
A peça apresenta caricaturas de pessoas concretas – os quatro físicos correspondem a pessoas que realmente existiam e que o público facilmente reconhecia – mas é também, como quase toda a obra de Vicente, um retrato da Corte, da Igreja e da sociedade portuguesas do século XVI em Portugal.
Com encenação de António Augusto Barros, o espectáculo conta com as interpretações de Filipe Eusébio, Igor Lebreaud, Maria João Robalo, Miguel Magalhães e Sofia Lobo, cenografia de João Mendes Ribeiro, figurinos e adereços de Ana Rosa Assunção, luz de Rui Valente, som de Zé Diogo e vídeo de Eduardo Pinto.
Depois da sua ante-estreia em Coimbra (a 14 de Setembro de 2014, no Pavilhão Centro de Portugal, no âmbito das comemorações dos 35 anos do Serviço Nacional de Saúde), o espectáculo foi já apresentado mais de 60 vezes, em dezena e meia de localidades de Portugal e Espanha. Foi visto por cerca de 4.500 pessoas, entre as quais largas centenas de alunos do ensino básico e do ensino secundário.
A edição em vídeo que agora passa a estar disponível foi apoiada pela Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura e contribui para uma difusão ainda maior deste espectáculo, junto de todos os públicos. O DVD, com o preço de 10 Euros, pode ser adquirido no Teatro da Cerca de São Bernardo ou encomendado através do e-mail geral@aescoladanoite.pt.
Um século antes de Molière escrever "O doente imaginário", Gil Vicente resolveu brincar com os médicos da Corte, caricaturando quatro dos mais conhecidos "físicos" da sua época.
Na senda do que é uma irresistível tentação dos artistas desde a Antiguidade e dentro do espírito bem-humorado com que nos deixou retratado o Portugal de Quinhentos, Vicente não podia ignorar uma "classe" que, pela matéria com que trabalha e pelo estatuto que adquire, sempre suscita entre os comuns mortais uma mistura de sentimentos: admiração, respeito, idolatria, desconfiança, suspeita, inveja, inquietação. Não por acaso, eles são aqui colocados "a par" dos padres – uma "razão a mais – escreveu Alberto da Rocha Brito em 1936 – para estarmos nós, os médicos, gratos a Gil Vicente pela amável companhia dada aos nossos quatro remotíssimos colegas".
Assim como Gil Vicente e os seus espectadores se divertiram com estes "físicos", também vários médicos se divertiram, ao longo dos anos, a escalpelizar a peça e os "actos médicos" nela enunciados. Ricardo Jorge, Egas Moniz, Maximiano Lemos e Rocha Brito são apenas alguns exemplos do interesse que o texto tem suscitado entre a classe.
Muitos destacam a fidelidade das prescrições ao conhecimento médico-científico que existia na altura, o que não deixa de ser assinalável e contém um inegável interesse histórico. Mas é ainda mais relevante o diálogo construído pelo autor entre o conhecimento científico, a sabedoria popular e uma miríade de crendices e superstições, muitas das quais perduram até aos nossos dias. É frequentemente assinalado o génio de Gil Vicente, materializado na capacidade de ver além do seu tempo e de transformar essa visão em objectos artísticos. Pela forma desassombrada e sem preconceitos com que nos apresenta estas diferentes formas de conhecimento, "Auto dos Físicos" é mais uma prova da contemporaneidade de um homem que viveu e escreveu há 500 anos.
Numa outra perspectiva, não obrigatoriamente contraditória com este registo, há quem não tenha dúvidas em afirmar que o verdadeiro alvo da sátira não são os médicos em si (e muito menos os quatro escolhidos como personagens), mas a própria medicina que em Portugal se praticava na altura – "estagnada, enquistada, cristalizada nos velhos moldes da escolástica" (Alberto da Rocha Brito). A par da moralidade cristã que nunca escondeu, Gil Vicente integra na sua obra marcas de inconformismo e preocupações com um mundo mais livre e mais humano que ainda hoje nos interpelam.
A Escola da Noite é uma companhia de teatro profissional sediada em Coimbra desde a sua fundação, em 1992. Ao longo dos 29 anos de actividade ininterrupta, estreou 70 criações, de autores que vão dos gregos Ésquilo e Eurípides aos dramaturgos contemporâneos Abel Neves, Heiner Müller, Javier Tomeo, Matéi Visniec ou Rubem Fonseca, passando por clássicos da dramaturgia universal como Marivaux, Tchékhov, Beckett, entre vários outros. Entre o conjunto de autores visitados, Gil Vicente ocupa um lugar cimeiro: mais de uma dezena dos 70 espectáculos apresentados pela companhia são construídos a partir da obra do mais importante dramaturgo português. Estreada em 2016 em co-produção com o Centro Dramático de Évora, "Embarcação do Inferno" é a mais recente criação vicentina do grupo.
Desde 2008, A Escola da Noite é a companhia residente e a entidade responsável pela gestão e programação do Teatro da Cerca de São Bernardo, no âmbito de um protocolo assinado com a Câmara Municipal de Coimbra.
A Escola da Noite - Grupo de Teatro de Coimbra