4'33''

Amílcar Falcão

Tomou posse como reitor da Universidade de Coimbra a 1 de março de 2019. Cerca de um ano depois, vê-se confrontado com a necessária reestruturação das atividades letivas, desencadeada pela atual pandemia. Um desafio difícil, mas que Amílcar Falcão acredita que fará da Universidade de Coimbra uma instituição de ensino mais forte e preparada. 

Ser reitor de uma universidade é um cargo com muitas responsabilidades e desafios. Mas acredito que não contasse com um desafio como aquele que vivemos, que talvez seja mesmo o mais complexo e inesperado pelo qual a Universidade de Coimbra (UC) irá passar nos próximos tempos. Como se posicionou a equipa reitoral, relativamente a esta situação, desde o primeiro momento?
Quando começou a haver a COVID-19 na China, tivemos a perceção de que chegar a Portugal seria só uma questão de tempo. E começamos a pensar o que aconteceria numa situação dessas na UC. Fomos acompanhando a situação, e fui falando com o pró-reitor José Pedro Figueiredo, mas também com o diretor da Faculdade de Medicina (FMUC), Carlos Robalo Cordeiro, que integra, aliás, o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP) e que, por isso, tinha acesso a um conjunto de informações acerca das quais me ia dando feedback.

Assim que a Itália começou a ter problemas sérios e se começa a perceber que as pessoas iam para as Unidades de Cuidados Intensivos (UCI) e que não havia ventiladores para todas, isso trouxe-nos a nós – e especialmente aos médicos – uma consciencialização mais séria do problema. Ainda para mais, tendo em conta um país como o nosso, periférico, onde, para cá chegar material médico, este passa primeiro por Itália, França e Espanha. Não vale a pena ocultar a realidade: houve situações em que esse material foi alvo de requisição civil por parte desses países, quando vinha para Portugal.

Tendo esta perceção, antecipámo-nos tanto quanto nos foi possível e criámos o nosso plano de contingência, sempre em articulação com a Administração Regional de Saúde do Centro (ARS Centro) e também com a FMUC, que nos deu um indispensável apoio. Na realidade, este plano estava preparado ainda antes de termos tomado a decisão de suspender as aulas presenciais.

Mas a evolução dos acontecimentos foi rápida, e há dois factos que alteram muito as condições. O primeiro é quando o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) dá indicações de não ser permitido aos estudantes de Medicina estarem nas enfermarias, decidindo, pouco depois, alargar essa proibição a qualquer espaço do hospital. O segundo, do qual penso que as pessoas se recordarão, é quando um estudante de Engenharia Informática da UC é diagnosticado com meningite bacteriana, o que aconteceu cerca de uma semana antes de fecharmos o ensino presencial, e que tinha estado num evento [Festival TYPOMANIA] que contou com a presença de centenas de pessoas.

Assim que se sentiu mal nas aulas, esse aluno foi levado para a sala de contingência que tínhamos já preparada devido à COVID-19 e foi chamado o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM). O que a UC fez, na altura, foi comprar e dispensar o antibiótico profilático para as cerca de 500 pessoas que, direta ou indiretamente, tinham contactado com este aluno. Esta situação teve, para mim, duas reflexões imediatas: a de que tínhamos o plano de contingência a funcionar devidamente, mas também a de que aquele estudante, sozinho, tinha contactado com centenas de pessoas em dois ou três dias, e que, se se tratasse de COVID-19, teríamos ali um grande foco de contacto.

Discuti esta situação com o diretor da FMUC e disse-lhe que estava a pensar convocar uma reunião com os diretores de todas as unidades orgânicas, com a equipa reitoral e com pessoas da área da Saúde, cuja presença sentia que era fundamental. No dia da reunião, o diretor da FMUC tinha já reunido com o CEMP, que decidiu suspender todas as aulas presenciais e, por isso, trouxe essa informação para a nossa reunião.

Além disso, eu sabia que a UC estava prestes a receber muitos estudantes vindos da Itália e da China e, por isso, tinha pedido à Divisão de Relações Internacionais (DRI) que me desse as indicações de quem estava a chegar a Coimbra e de quem tinha viagens planeadas para fora.
Sabendo de tudo isto, tendo a experiência do aluno com meningite bacteriana, tendo, digamos, o conforto da decisão do CEMP e da FMUC, e também a compreensão da ARS Centro, considerámos que o mais apropriado era suspender o ensino presencial, até porque a UC tem muitos estudantes de fora do País, mas também de todo o País, o que envolve, naturalmente, muitas deslocações por parte destes alunos.

Falei também desta decisão ao reitor da Universidade de Lisboa, António Cruz Serra. Articulámos os prós e os contras, mas disse-lhe que, para a UC, a decisão estava tomada, embora considerasse que, se as universidades de Lisboa e Coimbra a assumissem em conjunto, o que veio a acontecer, essa decisão seria mais forte.

Como perspetivava que esta suspensão do ensino presencial acontecesse, tinha já pedido à equipa reitoral que começasse a procurar ferramentas para o ensino à distância. Em dois dias, tínhamos tutoriais para o Zoom, o Educast e para a utilização do NONIO. Nesse sentido, penso que conseguimos, de uma forma bastante expedita, esta transição para o ensino não presencial, que temos vindo a melhorar.

Do ponto de vista governativo, fiquei responsável por uma área sensível, que é a dos Serviços de Ação Social da Universidade (SASUC). Os SASUC concentram as residências e as cantinas. Neste momento, as residências estão devidamente preparadas com zonas de contenção e com um reforço da higienização. Quanto às cantinas, existem quatro a funcionar devidamente, em regime de take-away. Assumi esta área dos SASUC não só pelos problemas levantados pelo funcionamento das residências e das cantinas nesta situação, mas também pelo apoio aos estudantes que não tinham computador ou acesso à internet.

A vice-reitora Cristina Albuquerque, que é responsável pelos Assuntos Académicos, está a trabalhar com os também vice-reitores Delfim Leão, António Figueiredo e Cláudia Cavadas. Esta equipa dedica-se à questão do apoio às unidades orgânicas e ao ensino à distância. Entretanto, criei uma segunda equipa e, neste momento, à exceção das Relações Internacionais e Inovação, todos os vice-reitores estão a trabalhar nas componentes de ensino e de investigação à distância.


Amílcar Falcão

Como disse, estão suspensas todas as atividades letivas presenciais até ao final deste ano letivo. É expetável que este final de ano sofra algum atraso?
Teremos as aulas não presenciais e, portanto, o ano letivo acaba a 31 de julho. Ou seja, as aulas terminam no final de maio, a primeira época de exames e de recurso é em junho e a época especial em julho. A única alteração que fizemos ao calendário escolar foi relativa à semana da Queima das Fitas, que passou a ser uma semana letiva.  

Nos próximos dias, será feita uma previsão daquilo que será a avaliação de cada unidade curricular, em todas as unidades orgânicas da UC. Até ao dia 8 de maio, estará definido um calendário de exames, semelhante ao atual, mas que indique aos estudantes o tipo de exame que vão fazer.

Claro que deverão existir algumas exceções, mas, no geral, acabar o ano letivo a 31 de julho é algo com o qual a UC se deve comprometer, para não prejudicar o percurso académico dos estudantes. Se me perguntarem se estamos a prestar o mesmo serviço que prestaríamos se estivéssemos em ensino presencial, a minha resposta é não. Mas acho que devemos acabar o ano com dignidade, tentando manter o máximo de qualidade possível e respeitando o calendário escolar.

Vivemos um momento de incerteza. Não sabemos se, em julho, haverá ou não um medicamento, ou se haverá ou não uma segunda vaga. Ninguém prevê o futuro. Por isso, veremos se, em setembro, será possível retomarmos o ensino presencial, tendo em conta que o distanciamento social e a necessidade de termos alguns cuidados vai continuar a existir, certamente por muito tempo.

É absolutamente indispensável para a UC que muitas das coisas que estamos a fazer possam manter-se no futuro. Não estou a dizer que devemos ter uma universidade apenas online, mas devemos ter uma oferta online mais eficiente. Na área da administração da UC, já desmaterializámos muito e praticamente não usamos papel: assinamos tudo digitalmente.


Quanto às provas académicas, como as defesas de dissertações de mestrado e teses de doutoramento, estas também estão a acontecer à distância? Não houve qualquer alteração de datas quanto às provas que estavam agendadas?

Não, pelo contrário. Neste momento, estamos a fazer a avaliação toda à distância. Há doutoramentos, mestrados e até já houve uma agregação à distância. Claro que tivemos de nos adaptar. Preparámos minutas de atas para o presidente do júri das provas académicas.
E, pelo facto de serem provas públicas, são agora transmitidas em streaming.


Referiu que a UC conseguiu antecipar-se um pouco: ainda antes da declaração do estado de emergência, já tinha um plano de contingência ativado e não tinha atividades letivas presenciais. Extrapolando para o contexto nacional, acha que Portugal tomou, desde cedo, as necessárias medidas para evitar a propagação do vírus, ou havia algo a ter sido feito mais cedo?
Eu entendo que, no momento que vivemos, não é, talvez, a altura própria para se falar sobre esse tipo de situação, porque temos de estar unidos para ultrapassarmos esta situação da melhor forma possível. 

Como é óbvio, onde há duas pessoas, provavelmente há duas ideias diferentes. Pessoalmente, não me revejo em muitas das medidas que foram tomadas, ou no seu timing, mas creio que o que é importante é que, felizmente, estamos com uma curva mais aplanada. Penso que isso é um dado positivo.

Penso também que podíamos ter aprendido um bocadinho mais com outros casos. Tenho estudado muito as evoluções que existem no mundo. A Coreia do Sul e o Japão são bons exemplos. A Itália é um mau exemplo e a Espanha também não é muito bom. O Brasil e os Estados Unidos da América (EUA), nem merecem comentários.

Mas ficaria quase mal com a minha consciência se não dissesse isto: se a UC teve o cuidado de não trazer estudantes de Itália quando se percebeu o que estava a acontecer, é difícil perceber que se tenha continuado, durante algum tempo, a receber nos aeroportos portugueses cerca de 20 mil pessoas vindas de Itália diariamente.


É difícil estarmos agora a fazer futurologia quanto a esta situação, conforme mencionou. Mas tendo em conta as suas formações académica e profissional [Farmacologia], como acha que será a evolução da pandemia? Estaremos assim tão perto de encontrar um tratamento, ou todas estas restrições a que estamos sujeitos ainda vão continuar por tempo indeterminado?
Quanto à questão mais farmacêutica, se quiser chamar-lhe assim, acho que termos um novo medicamento para este vírus demoraria uns dez anos. Acho que é provável que se consigam descobrir algumas moléculas que já estão no mercado e que tenham algum efeito no caso da COVID-19. Já existem algumas referenciadas e que são do domínio público, como a cloroquina e a hidroxicloroquina, mas há outras e há alguns antivirais também já conhecidos. Creio que uma situação terapêutica deste tipo tem a vantagem de poder ser usada rapidamente nos hospitais, mas será sempre em âmbito hospitalar, ou seja, nunca irá impedir a infeção. Diria que, se uma pessoa infetada estiver internada no hospital e com problemas respiratórios, essas terapias poderão ajudar a salvar vidas. Creio que isso acontecerá em poucas semanas.  

Quanto à vacina, acredito que ela será uma realidade, e não apenas daqui a 18 meses. Acredito que poderemos ter uma vacina antes do final do ano. Claro que a sua produção e distribuição massiva poderá demorar algum tempo. Seguramente, se ela for descoberta nos EUA, vamos esperar que todos os americanos sejam vacinados primeiro e só depois os outros países poderão ter acesso a ela.

Acredito muito numa vacina por uma razão simples. Primeiro, é mais fácil desenvolver uma vacina do que um fármaco, no geral. Depois, porque este vírus é um “primo” do H5N1, cujo material genético já está tipificado. Neste momento, as várias vacinas que estão a ser testadas já terão o material necessário para provocar uma reação imunitária nas pessoas. O problema é que não sabemos qual o grau de imunidade que causa a infeção: há pessoas que já foram reinfectadas. Não conhecendo esse mecanismo, podemos estar perante uma situação na qual a eficácia da vacina seja difícil de prever.

Posso dar a minha opinião, que é a de alguém da área, mas que está a arriscar no que está a dizer. Ainda assim, acho que devo partilhar estes meus receios. Já sabemos que este coronavírus se liga ao recetor ACE2. Temos ACE2 nos pulmões e as pessoas de idade, devido às comorbilidades, têm ainda mais ACE2 nos pulmões, daí os casos de COVID-19 serem, por norma, mais graves nestas pessoas. Mas este recetor não existe apenas nos pulmões. Está também presente noutros órgãos, o que significa que podemos ter, no caso de infeção por COVID-19, uma infeção multiorgânica. Neste caso, podemos estar perante uma situação semelhante à do HIV. Ou seja, podemos ter, no futuro, pessoas infetadas cronicamente com COVID, em que aquilo que conta é a carga viral.

Ora, se isso acontecer, estaremos um bocadinho em apuros. Podemos estar a falar de um vírus que está dentro de nós, um inimigo silencioso e difícil de combater. Acho que ainda é cedo para se medir o real impacto deste vírus, mas acredito que a vacina será uma coisa de meses e que aparecerá medicação para, pelo menos, estarmos mais avançados que a doença. Já está a ser aplicada alguma medicação nos hospitais, mas creio que aparecerão coisas melhores dentro de alguns meses também.

Sendo otimista, daqui a um ano, estaremos onde estávamos há ano e meio. Mas, se a coisa não for exatamente assim, se calhar, a vida vai mudar um pouco.


Esperemos contar apenas com primeiro cenário.

Acho que é mesmo isso que todos queremos!


Claro que sim. Indo um pouco ao encontro do que estava a dizer, quanto aos desafios que esta situação coloca, considera que a UC sairá mais fragilizada de tudo isto, com uma necessidade de ajustar todos os seus modos de ensino, ou ficará mais forte e preparada para os desafios futuros?
A UC será sempre aquilo que, coletivamente, quisermos que ela seja. Não é o reitor que muda a Universidade. Sozinho, seguramente não, nem só com a equipa reitoral. Nós vamos ter um rombo financeiro significativo. Vamos ter uma diminuição de receitas brutal este ano, principalmente no que diz respeito ao turismo e aos estudantes internacionais. 

Só vejo uma solução óbvia, que é a investigação melhorar muito. Para isso, temos de investir bastante nessa área. E temos também de arranjar outras – e a expressão não é bonita – áreas de negócio. Certamente que o ensino à distância será uma delas, mas não a única. Devo dizer que estou a trabalhar arduamente nisso e com bastantes ideias: minhas, de outras pessoas e que outras universidades estão a pôr em prática, a nível mundial.

A UC nunca mais será o que foi. Acredito que vamos sair mais fortes, porque há coisas que estamos a fazer hoje que não deverão retroceder. A desmaterialização e a eficiência de procedimentos, a nível da administração, é algo que não vou permitir que volte para trás. Mais fortes porque a nossa capacidade digital aumentou muito e vai ter de aumentar muito mais. E mais fortes porque nós já tínhamos um plano de ação para a área de investigação para que esta se tornasse, efetivamente, melhor.

Se já apostava, agora ainda aposto mais na Saúde e no MIA-Portugal [Instituto Multidisciplinar do Envelhecimento]. Acho que será uma âncora para a UC. E acho que temos potencial em Coimbra para investir bastante na área da Saúde. Pandemias como esta podem afetar muito a Psicologia e o Direito, mas a área da Saúde é a principal protagonista. Se tivermos a capacidade de implementar projetos e atrair cientistas de qualidade, associados aos de muita qualidade que também cá temos, conseguiremos aumentar a nossa capacidade de influência, dentro e fora do País.


Amílcar Falcão

Gostaria muito de deixar de ser reitor deixando também uma UC mais atrativa, bem mais do que aquela que encontrei. É muito importante para nós que, nas candidaturas a este e aos próximos anos letivos, os futuros estudantes universitários olhem para a UC vendo nela um exemplo de qualidade, de antecipação dos problemas, de apoio aos estudantes, de investigação e de inovação, porque é isso que chama as pessoas a uma universidade.

É certo que termos 730 anos é bom e dá-nos prestígio, mas não alimenta o futuro. Para o programarmos, devemos caminhar para uma universidade com um nível de modernidade maior e com mais força que aquela que temos. Do ponto de vista financeiro, apesar do rombo ser grande, temos condições para o absorver e para lhe dar luta.

Quero dizer, claramente, que temos de ter esperança, resiliência, calma e a lucidez para pensar que temos muita gente de qualidade e em muitas áreas para sairmos de tudo isto mais fortes. Claro que saímos penalizados, como vai sair o País e o mundo, porque isto vai trazer, do ponto de vista económico e financeiro, uma recessão, se não mesmo uma depressão. Mas também são momentos como este que permitem dar grandes passos em frente.

No meu programa de candidatura a reitor, falava do ensino à distância e na necessidade de termos uma área de negócio mais desenvolvida. Nunca me passou pela cabeça que, em três meses, pusesse a maioria dos professores a fazer esse tipo de ensino! Acho que é uma disrupção grande, um bocado à força, é certo, mas cujos resultados, se forem trabalhados e se houver motivação e entreajuda entre todos, nos podem dar novas capacidades e competências.

Gosto de chamar à atenção para a questão das alterações climáticas, onde temos uma obrigação clara de dar o exemplo. Por mais que não se goste do tema, a verdade é que as alterações climáticas são uma COVID elevada à décima potência, porque a diferença entre as alterações climáticas e a COVID é que a COVID apareceu rápido e daqui a um ano, se calhar, estaremos mais ou menos livres dela, ainda que deixe uma grande marca. As alterações climáticas não aparecem rápido, aparecem mais lentamente, mas no dia em que se instalam, não se curam num ano, nem em décadas. Temos a obrigação de ser uma universidade com preocupações também a esse nível, e eu acho que esse é um desígnio que devemos abraçar. Ter uma universidade que se preocupa com a sustentabilidade do planeta é uma universidade com uma visão de muitas décadas à frente. Caberá, a quem vier depois, seguir esta semente que estamos a tentar lançar, para que a UC se mantenha “à frente do seu tempo”, como costumo dizer.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografia de topo de Paulo Amaral
fotografias de Miguel Santos e Carina Monteiro 



Voltar à newsletter #14