Nasceu na rua Pedro Monteiro, em Coimbra, curiosamente na mesma casa e no mesmo quarto em que também nasceu o Professor Nunes Vicente, que, anos mais tarde, viria a desempenhar um importante papel na sua vida, quando ainda nenhum dos dois sabia que tinha nascido e vivido na mesma casa, em alturas distintas. Mas deixemos essa parte para adiante e centremo-nos, por agora, na sua infância.
É a mais nova de quatro irmãos, com uma diferença de idade muito marcada relativamente aos restantes. Da infância, guarda memórias felizes e do carinho com que os irmãos a tratavam. “Lembro-me de querer fazer roupas para as minhas bonecas, e o meu irmão, o mais novo dos outros três, ir para a máquina de costura e, a partir de bibes meus, velhos, coser bibes para as minhas bonecas!”. Era também esse irmão, dez anos mais velho, que, quando estudava Matemáticas Gerais, a procurava para lhe dizer “Ó mana, sabes, Pitágoras de Siracusa disse um dia aos seus netos, que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos!”, apenas para a deixar atónita, já que, à data, pouco sabia de Matemática.
Em criança, não fazia sequer tenções de crescer. Ser sempre menina fazia parte dos seus planos e, por isso, lembra-se perfeitamente de não querer aprender a ler. Antes de entrar para a escola, a sua mãe comprou-lhe o livro da 1ª classe, que, a páginas tantas, continha uma figura de um menino e uma menina a fazerem bolinhas de sabão com a forma das letras do alfabeto. Mas, por muito que a mãe tentasse mostrar-lhe e ensinar-lhe as letras, Catarina Resende de Oliveira não as conseguia ver, pois as lágrimas caíam-lhe copiosamente pelo rosto. Algo que rapidamente passou, já que, assim que entrou para a escola, gostou tanto da envolvência escolar e do contacto com crianças da sua idade que, nesse Natal, se recorda de estar deitada na cama a ler a história da ‘Branca de Neve’, “perante a delícia da minha mãe”, graceja.
Quando chegou a altura de ingressar no Ensino Superior, o seu irmão mais velho era já médico, tal como o seu pai. Por isso, assume que a escolha de Medicina talvez tenha tido alguma influência familiar, mas que não foi absolutamente determinante. Aliás, para além da professora de Português, foi o pai o seu principal dissuasor. “Ele dizia-me «não, tu não devias ir para Medicina, tu devias ir para um curso como Biologia, mais ligado à área científica», porque eu desde sempre tive um gosto particular por saber a causa das coisas”. Mas, a par do interesse científico em conhecer os mecanismos das doenças e em antever possíveis opções terapêuticas, existia também um particular interesse em conhecer a doença e em lidar com o homem doente: estava assim assumida a escolha pelo curso de Medicina.
A memória mais forte dos tempos de estudante de Medicina é a sua experiência na crise estudantil de 1969, que confessa ter vivido intensamente, quando estava no 6º ano do curso. Lembra-se que o que desencadeou a revolução estudantil foi ver, na televisão, por volta das dez horas da noite, o então Ministro da Educação, José Hermano Saraiva, a apontar o dedo e a mandar os estudantes “irem para casa estudar e comparecer aos exames”, conforme indica: “eu olhei para ele e disse «não, em casa não fico, de certeza!», e fui para a Associação Académica, na Praça da República”. Quando lá chegou, estavam milhares de outros estudantes, ao ponto de já não se conseguir sequer entrar na Associação.
Nessa altura, quando havia greve aos exames, Catarina Resende de Oliveira juntava-se ao grupo de estudantes que tentava dissuadir aqueles que queriam fazer as avaliações. A Guarda Nacional Republicana (GNR), a cavalo, criava barricadas nos Arcos do Jardim, permitindo apenas o acesso à Universidade de Coimbra àqueles que fossem portadores de cartões que permitiam a entrada nas diversas Faculdades. Um dos seus colegas, conhecido por ‘Pinguinhas’, dirigiu-se, num desses dias de exames, à barreira da GNR a cavalo, munido do seu cartão para tentar furar a barreira e aceder ao local dos exames, o que lhe permitiria uma dissuasão “mais eficiente”. Pegando no seu cartão, colocou-o junto do focinho do cavalo, para indignação do GNR que nele se encontrava montado e que prontamente ordenou: “Senhor, faz favor! Chegue o cartão acima!”. A resposta do colega ‘Pinguinhas’ ao GNR foi, no mínimo, inusitada: “Mas… não pertencem os dois ao mesmo regimento?”, relembra Catarina Resende de Oliveira, entre risos.
É durante o curso de Medicina que entra na sua vida o Professor Nunes Vicente, com quem, afinal, já partilhava algo em comum à data: o local de nascimento. Catarina Resende de Oliveira destaca o relevante papel que teve na sua formação, quer pessoal, quer médica. “No início da minha carreira disse-me «sim, se quiseres, segues depois o percurso das Neurociências e fazes investigação, mas tens de fazer a carreira clínica», e eu assim fiz, até à posição de consultor de neurologia”, refere.
Depois de se formar, esteve dois anos em Angola, uma vez que a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC) tinha a seu cargo a implementação do ensino da Neurologia no curso de Estudos Gerais, em Luanda, coordenado pelo Professor Nunes Vicente. A importância dessa altura na sua vida, bem como a atração pelo continente africano, transparecem sempre que fala desse período de dois anos: “Foi uma experiência extremamente enriquecedora, do ponto de vista humano, do ponto de vista cultural, do contacto com realidades totalmente diferentes e, por vezes, muito adversas. E foi marcante porque eu não me limitei a ficar só em Luanda, no Hospital ligado ao ensino médico, o Hospital de São Paulo. Era a altura da guerra colonial, com a vivência associada a esse ‘clima’. Foi um período da minha vida muito importante na minha formação, em que contribuímos para a criação de uma licenciatura, um curso de Medicina”, esclarece.
Quando regressou de Angola, surgiu o convite do Professor Nunes Vicente para ser Assistente de Neurologia da FMUC, cargo que desempenhou por vários anos, a par da prática clínica, tendo concluído, em 1984, o Doutoramento nessa área. Findo o percurso na carreira médica, decidiu enveredar pela investigação científica, na área das Neurociências, para a qual considera ter sido “muito útil a formação prévia na área clínica”.
Estava, então, na “carreira da Neurologia quando, a certa altura, a Bioquímica na FMUC ficou com a regência vaga”. Estávamos em 1988 e o Conselho Científico decidiu atribuir a Catarina Resende de Oliveira a regência dessa unidade curricular. Por sentir que “não tinha preparação de base, sólida” para o ensino da Bioquímica, decidiu inscrever-se “como aluno voluntário nas unidades curriculares de Bioquímica e Biologia Molecular”, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC), o que lhe permitiu adquirir os conhecimentos que sentia ter em falta e, simultaneamente, “conhecer pessoas de outras áreas com grande interesse pela investigação”. Foi assim que conheceu pessoas que tiveram, igualmente, uma grande influência na sua formação e na sua carreira, como os Professores Arsélio Pato de Carvalho e Vítor Madeira.
Foi, aliás, com o Professor Arsélio Pato de Carvalho, na FCTUC, que Catarina Resende de Oliveira teve oportunidade de contribuir para a formação dos primeiros grupos de investigação em Neurociências do País: “Através desta colaboração, formei o meu próprio grupo de investigação, fomos avançando e mais tarde surgiu o Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC)”, refere, vindo, curiosamente, a suceder a Arsélio Pato de Carvalho na direção do CNC.
O facto de ser Professora jubilada da FMUC desde 2016 não significa que tenha, atualmente, muito tempo livre. Pelo contrário: “Isto de uma pessoa se jubilar… As pessoas pensam «Ela agora jubilou-se, vai ter muito tempo livre! Vou pedir-lhe isto, vou pedir-lhe aquilo…». De facto, quando me jubilei, foi-me colocado um desafio a nível hospitalar, mais precisamente o desafio de organizar a investigação clínica no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC)”, refere. Deste modo, Catarina Resende de Oliveira envolveu-se na dinamização da Unidade de Inovação e Desenvolvimento (UID) do CHUC, bem como no planeamento estratégico do Centro Académico e Clínico de Coimbra (CACC).
Relativamente ao panorama da investigação nacional, Catarina Resende de Oliveira considera que esta é “perfeitamente comparável” àquela que é feita “noutros lados do mundo”. Isso deve-se, na sua opinião, aos excelentes investigadores que o País tem. Ainda assim, assume que “o grande problema da Ciência” em Portugal reside no facto de não conseguir dar “a esta nova geração uma perspetiva, não só de emprego, mas de realização e de estabilidade”. Embora considere fundamental a aquisição de experiência fora do País, “é necessário criar condições para que os investigadores mais promissores encontrem aqui o seu lugar, se for esse o seu desejo”.
Diz que aquilo de que mais se orgulha é das pessoas que conseguiu formar: “é o maior legado que nós deixamos”. E é notório que, para Catarina Resende de Oliveira, o que importa são as pessoas. “O êxito da nossa carreira é o êxito daqueles que trabalharam connosco. E eu nisso orgulho-me muito dos meus alunos de Doutoramento. Eu tive excelentes alunos que, neste momento, ocupam cargos de relevo nas instituições onde estão e que criaram já os seus grupos. Ou seja, eu tenho os meus filhos, tenho os meus netos e tenho os meus bisnetos científicos. Tenho a minha família científica e isso é uma coisa que é extremamente gratificante”, menciona.
A vertente humana, a par do fascínio pela descoberta do porquê das coisas, são a principal chave do seu interesse pelas Neurociências e pelo modo como funciona o cérebro. “Acho o cérebro um órgão fascinante, porque nos permite o relacionamento com o mundo exterior e com os outros, e a compreensão desse mesmo mundo exterior. É através do funcionamento do cérebro que se geram as diversas capacidades que permitem a interação com os outros, desde a linguagem, às emoções, aos sentimentos… a tudo isto, que, no fundo, constitui, na minha ótica, a verdadeira vida, não é? Porque para mim, na vida, mais do que as instituições, contam as pessoas, e o modo como se relacionam”.
Catarina Resende de Oliveira é pragmática quanto ao passar dos anos. Mantém a sua atividade física e intelectual, mas, admite, tem “a perfeita noção de que o tempo não perdoa, porque o envelhecimento é um processo natural e temos de olhar para ele nesse sentido”. Por isso, diz que, “antes de perder essa capacidade física”, há um sonho que quer concretizar: ir à Índia. “Gostava de ir à Índia sem tempo determinado… Gostava de ir à Índia, não para ver a Europa, mas para ver a Índia com todos os seus contrastes. Gostava de seguir o percurso que os portugueses lá fizeram. Quero ir à Índia para andar de comboio, no meio das galinhas, dos perus, das pessoas, dos cheiros, das cores, de tudo isso”, confidencia.
Ao sonho da viagem à Índia, junta-se um outro. “Eu gostava muito de ver construído, não só construído, mas a funcionar em pleno, um instituto de investigação na área biomédica, aqui, instalado no Polo III, com grupos de investigação em novas áreas, contratados do exterior – e para isso o projeto do Instituto Multidisciplinar do Envelhecimento (MIA) é extremamente importante – conjuntamente com os melhores grupos de investigação que já temos atualmente em Coimbra, e que são excelentes”. Mais um sonho com pernas para andar. “Às vezes, costumo dizer que, quando isso acontecer, eu já vou ser muito velhinha, mas… arranjem-me uma cadeirinha que eu só quero ver-vos entrar lá!”, brinca.