Outras Vozes

Vitória melo

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A nossa viagem é feita do que vemos; levada com peito, mistura-se com o que somos.

O início da minha viagem em Medicina empurrou a literatura para segundo plano, fê-la atravessar aquela mesma fase que os irmãos mais velhos vivem quando o benjamim nasce. De forma mais ou menos voluntária, mas insidiosa, a primeira passou a estar no epicentro da minha jornada e os gritos dos pássaros, as paisagens férteis da imaginação, ficaram cada vez mais longínquos.

A fascinação do cheiro a livro novo, a maravilha que há no toque do seu folheado, foi cedendo a um corpulento cansaço de letras e olhos franzidos.

Via-me a passar o dia a ler, pois chegava a casa e os olhos puxavam pelo óculo, de lente baça para páginas.

Foi uma zanga feia, esta entre a literatura e a nova cria, que crescia sob o sol novo, como musgo tenro. Este espanto de vigília impotente trouxe-me insónias. Troquei a fantasia e o poema pelos pergaminhos da ciência humana, sabendo que era exequível decifrar um mundo, mais saciante e equilibrado, em que ambos não só coexistem, mas onde são codependentes.

Isto porque, para mim, os clássicos enraizaram-se como pontos turísticos no pequeno mapa que é a minha vida. Está na minha condição terrestre associar a literatura com a comunicação. Foi, maioritariamente, com os livros que aprendi a falar, e a falar melhor, em público. Foi a falar com as pessoas que interiorizei o quão importante é falar com as pessoas, entender as entranhas das suas terras, esquematizar as suas lições, devolver a sua comoção.

Como em tudo na vida, esta viagem em Medicina ensinou-me muito, a perdoar e a pedir desculpa, a aceitar o erro na sua aparente infâmia e a fertilizar caminho. Muniu-me de pessoas e oportunidades para gerir com maturidade, e na imagem viva de prosperidade, o meu tempo e as minhas prioridades. Fiz as pazes com a literatura. Contudo, ou talvez por isso mesmo, deixo a caneta para a palavra tocada pelo âmago elegíaco e quando falo de Medicina não consigo ser científica.

Desta jornada em que “a gaiata anda a estudar para ser médica” fazem parte seis meses no estrangeiro, em que a comunicação foi protagonista de prova de fogo. Apesar de sentir que fora do meio hospitalar tenho o mundo nos bolsos – o mundo das pessoas, dos rostos, dos gestos e dos espaços, todos diferentes e todos iguais (como, aliás, as paisagens devem ser!) – com os doentes a fotografia não é tão exímia.

No hospital onde estive a maior parte do tempo, em Plovdiv, ninguém falava inglês; eu não falava búlgaro e a mímica, por mais generosa, é pouco diagnóstica. Posso dizer, no fim desta viagem, que a comunicação é uma competência, uma necessidade e uma arma poderosíssima, em qualquer tempo. Saber (ou poder) ou não saber comunicar são as duas faces de uma moeda que simboliza o culminar de descobertas e condenações, a representação do mito e da história, da tragédia e do amor do mundo inteiro. É a comunicação que inicia e fecha guerras, que nos faz sentir em casa ou no ambiente mais inóspito do além-vento.

Para mim, na Medicina, e voltando a ela, foi a firme realização de várias sabedorias. A comunicação é subvalorizada: ainda há muito desinteresse pela aprendizagem de novas línguas (em alguns locais, do inglês que se proclama universal). Segundo, mesmo sabendo as línguas e linguagens várias, se não falarmos com os nossos doentes numa que eles compreendam, não haverá nunca um norte visível. Se falarmos na sua própria, a comunicação e o amor coincidem no encontro apaixonado do entendimento.

Se assumirmos estes ideais como missão, a comunicação em Medicina pode ser poesia. “A poesia tem comunicação secreta com os sofrimentos do Homem”. Fico sadicamente feliz por me ter sentido perdidamente frustrada, por me ter visto impedida de comunicar em Medicina nestes últimos seis meses, neste mergulho de silêncio exasperado e espantosa solidão naqueles quartos de hospital. Significa que já escrevo versos. Estes são para vós! 
Marta Pereira


Vitória Melo é estudante do Mestrado Integrado em Medicina. Foi coordenadora do Departamento de Cultura e Arte do Núcleo de Estudantes de Medicina da Associação Académica de Coimbra, tendo tido a seu cargo a direção da revista Anemia.