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Clínica Universitária de Cirurgia Cardiotorácica

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Manuel Antunes é o diretor da Clínica Universitária de Cirurgia Cardiotorácica. Docente da FMUC e nome incontornável da história da cirurgia e da transplantação cardíaca em Portugal, fala um pouco da importância da estrutura que dirige.

Em poucas palavras, como descreve a Clínica Universitária de Cirurgia Cardiotorácica, a sua evolução ao longo dos tempos e a sua importância e impacto atuais?

omo clínica universitária temos dois componentes, o pedagógico e o assistencial. É uma área que não faz parte dos curricula obrigatórios de outras faculdades, mas fá-lo da nossa [Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC)], e considero-a, no contexto global do currículo, como sendo uma disciplina de menor impacto, uma vez que é extremamente especializada. Digo muitas vezes aos alunos que evito falar o máximo possível em técnicas e pormenores. Contudo, estivemos a fazer as contas e nos últimos 30 anos operámos aqui 45 mil doentes, o que quer dizer que há por aí muitos doentes que os clínicos gerais ou outros especialistas vão encontrar pelo caminho, ter de diagnosticar e encaminhá-los para cá. Sob o ponto de vista de ensino, a clínica tem uma relevância que, comparada com outras disciplinas, é obviamente limitada, sem deixar de ser importante.

Temo-nos evidenciado muito mais pela assistência aos doentes. Somos caracterizados por não ter lista de espera, fazemos 1900 intervenções, próximos das duas mil, por ano, procurando dar a melhor qualidade e atendimento possíveis, sempre com a ideia que um doente tem de ser tratado como um indivíduo. Tem sido esse o foco da clínica e a razão de ser reconhecida a nível nacional e internacional.
Agora que se vai reformar, como perspetiva o futuro da clínica universitária e do ensino da Cirurgia Cardiotorácica?

No momento em que falamos, o ensino já foi destinado a outro professor da nossa faculdade, Pedro Antunes. Penso que vai continuar dentro dos mesmos moldes, mas é evidente que depende do novo regente adaptar-se ou adaptar aquilo que entender que deve ser feito. A disciplina está dentro da unidade curricular de Patologia Torácica e Vascular, que vai passar para as mãos do professor Carlos Robalo Cordeiro.

Sob o ponto de vista assistencial, ainda não está definido como vai ser, até porque isso depende da direção do hospital e de um concurso - eventualmente até pode vir alguém de fora, embora não saiba se isso está perspetivado. Estes serviços estão frequentemente associados à personalidade de quem os dirige. Eu dirigi-o durante 30 anos, não há muitas pessoas que tenham ficado na direção de um serviço durante tanto tempo, e, portanto, está um pouco construído à minha imagem e semelhança. Naturalmente, alguém novo quererá fazer o mesmo. Estas mudanças têm sempre um lado traumático, de alterações, umas vezes para melhor e outras para pior. Há ciclos, tal como nas equipas de futebol ou na bolsa. Mas existe um conjunto de pessoas que foram sendo treinadas. Não fiz cirurgia sozinho durante 30 anos, tenho sempre cirurgiões a trabalhar comigo cada vez que vou para o bloco operatório. Tudo isso é feito com as pessoas a aprender. É claro que cada um tem as suas características pessoais, e esta é uma área com uma componente "artística" importante - dizia a Amália que não é fadista quem quer. Tive algumas contribuições próprias para o avanço da cirurgia cardíaca moderna, que só existe há 65 anos. Tenho 45 anos dela, fiz parte da sua História.

Mas, no geral, não estou muito preocupado. Pode haver, como aconteceu noutras disciplinas, algum período de maior incerteza, eventualmente de alguma turbulência, mas não me parece que isso vá significar um desaparecimento desta disciplina e deste serviço do mapa. Pelo contrário, vai continuar a ser um dos mais destacados deste hospital.

Falava há pouco que é uma área de menor impacto nos alunos do pré-graduado, por ser uma das ultraespecializações. Considera que é chamativa para os futuros médicos?

Já não é chamativa hoje, mas é algo comum a todas as especialidades cirúrgicas, com exceção da Oftalmologia, que, contudo, não é verdadeiramente comparável às restantes. Tem-se notado, nestas disciplinas, um decréscimo do interesse nas últimas duas décadas. Hoje, nos concursos para a especialidade, dos cerca de 2600 alunos, temos sorte se apanhamos algum na primeira metade da tabela classificativa. E isso tem impacto porque, se acreditamos numa tabela de classificação, que possa ter as suas variações, temos de acreditar que os primeiros 500 alunos são melhores que os segundos e assim sucessivamente. A razão para isto é que é uma disciplina muito trabalhosa, o seu modelo não foi construído de acordo com o alívio atual das cargas horárias. Veja que se dá a esta especialidade o mesmo tempo de treino de outras disciplinas que são menos especializadas.

Repetindo-me, uma carga de trabalho e uma responsabilidade muito intensas, porque este [o coração] é um órgão que gere a vida. Se as coisas não correrem bem, os resultados podem ser terríveis, resultando, por vezes, em litígios jurídicos. E é pouco atrativa porque também não tem uma atividade em clínica privada - ponhamos assim: trabalha-se muito e ganha-se pouco. Não é por acaso que as áreas mais escolhidas são Oftalmologia, Cardiologia e Dermatologia, esta porque é uma especialidade que não tem muitas urgências. Temo que a minha se torne cada vez menos atraente, mas as classificações médias dos alunos das especialidades cirúrgicas não são díspares, ou seja, é uma menor atração que é transversal.

Quais foram, para si, os momentos mais marcantes enquanto diretor da clínica?

O mais marcante foi o momento em que cheguei para fundar o serviço. Existia um arremedo de cirurgia cardíaca, com resultados muito maus, que obrigou o diretor da Cardiologia, o professor Ramos Lopes, a informar o hospital que se recusava a enviar mais doentes para aquele serviço. Isso, que coincidiu com a abertura do novo hospital, levou a que procurassem alguém e surgiu o meu nome.

O hospital não estava habituado a este tipo de atividade intensa, tinha programado instalações para se fazerem 250 cirurgias por ano. Na primeira inspeção que fiz, disse que precisávamos, só para a zona centro, de espaço para 450, 500. Ficaram de olho arregalado, também por causa do que eu dizia que era possível fazer. Mas logo no segundo ano ultrapassámos as 450 e no terceiro as 500. Daí em diante foi sempre a subir até hoje.

É claro que isso mexeu com muita gente no hospital, houve quem gostasse e quem não gostasse. Estamos numa universidade que é muito tradicionalista, vir alguém de fora e basicamente afastar alguém que era da casa tornou-se problemático, com algumas peripécias iniciais. Mas rapidamente se construiu um serviço que se tornou um modelo e um exemplo para outros serviços do país. O meu contentamento não é apenas por mostrar que era possível fazer em Coimbra algo tão bom como se faz, em média, noutros países mais avançados, mas também por ver que o nosso exemplo serviu de estímulo para melhorar as coisas no nosso próprio hospital. No início, éramos o único serviço em que trabalhava até às seis, sete da tarde e lembro de ouvir um colega dizer, em público, "se o Manuel Antunes pode fazer, nós também".

Houve outros, claro. A construção deste novo edifício, exatamente porque o outro, num hospital com 15 anos, já não chegava para nós. Foi um projeto a que me dediquei de alma e coração. A família queria que tivesse sido engenheiro e eu sempre tive algum interesse pela área. Por isso, acompanhei a evolução das obras e fiz a sua fiscalização, de modo que posso dizer que as portas estão situadas no sítio certo e abertas para o lado que se entendeu.

Um terceiro aspeto foi o início do programa de transplantação. Quando aqui cheguei, o Diário de Coimbra fez um título como "Aí vem o famoso transplantador de corações". E causei alguma celeuma quando afirmei logo que não. Toda a gente estaria à espera que se iniciasse de imediato a transplantação, que já se fazia em Portugal há dois anos - num centro no Porto e em dois em Lisboa, no total um a mais do que penso que seria necessário. Por isso, pensei que abrir um quarto centro de transplantação não fazia qualquer sentido, para além de estarmos numas instalações que seriam apertadas para tudo. Hoje somos o maior centro transplantador do coração no nosso país e isso é apenas pouco mais de 1% da nossa atividade, mas que ocupa muito mais do que isso em termos de recursos humanos e materiais. Não fazia, então, sentido concebê-lo inicialmente, mas depois, com a mudança para este novo serviço, sem restrições de espaço, e pelo facto de, nos cinco anos anteriores à sua inauguração, nenhum dos doentes que tínhamos enviado para outros centros havia sido transplantado, pensámos que era quase um dever ético iniciá-lo. A organização do primeiro transplante cardíaco em Coimbra, sendo que foi feito 20 anos depois do primeiro em Portugal, e 35 anos do primeiro no mundo, não era para ser grande notícia, mas, mais uma vez, entendemos que a ser feito, devia sê-lo como deve ser.

Há dois anos, quando foram nomeados os centros de referência nacionais nas várias especialidades, o nosso foi o único eleito como centro de referência de transplantação cardíaca, porque mais nenhum correspondia às exigências impostas pelas regras do concurso. Mais tarde, porque os outros não gostaram, o ministro, por decreto administrativo, achou por bem nomeá-los todos, mas não deixou de dizer que o único era o nosso e que todos sabiam porquê.


Lembra-se do dia do primeiro transplante?

23 de novembro de 2003, 13 meses depois da inauguração destas instalações. Curiosamente, essa inauguração ocorreu no dia de São Teotónio, 30 de setembro, dia que marcou também a abertura do hospital.

Como tem sido a interação entre a Clínica de Universitária de Cirurgia Cardiotorácica da FMUC e o Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do CHUC?

Nunca houve problemas. Devo dizer que, até por comodidade dos alunos, as aulas teóricas são dadas numa sala que temos aqui, tal como as práticas, e estamos sempre presentes. Sempre defendi o ideal de o regente da cadeira ser também o diretor do serviço correspondente, para que os aspetos pedagógicos e clínicos pudessem ser melhor coordenados. Não tem de ser assim, mas não tem sido assim frequentemente pelas más razões, porque o hospital e a faculdade não se entendem nesse sentido. Quando essa convergência existe, que admito que possa não acontecer em condições muito específicas, consegue-se adequar o ensino prático dos alunos à realidade do serviço 
por Paulo Sérgio Santos
fotografia de topo Paulo Amaral
fotografias de Carina Monteiro