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José Borges
e Ana Rita Fradique
(NEM/AAC)

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José Borges assumiu, no passado dia 27 de maio, a presidência do Núcleo de Estudantes de Medicina da Associação Académica de Coimbra, tendo Ana Rita Fradique, a anterior presidente, passado para a presidência da Mesa do Plenário.


O que ficou por fazer no mandato anterior e o que vai ser feito neste mandato?

Ana Rita Fradique (ARF) - Ficaram por fazer bastantes coisas. As duas maiores que gostávamos de ter feito, e não foi logisticamente possível, era ter uma sala de alunos no Pólo III, uma vez que sentimos que este espaço é um pouco impessoal e não tem nada que nos proporcione convívio, e uma reprografia do núcleo, ou pelo menos uma que fosse mais barata, para que os estudantes pudessem imprimir a um preço mais acessível.

José Borges (JB) - Há muita coisa para fazer, incluindo essas duas. O meu percurso no núcleo não começa com o cargo de presidente, já vem de trás, e sinto que estas são algumas das coisas que queremos ver cumpridas. Um dos pilares de atuação que definimos para esta XXI direção é a aproximação aos estudantes. É importante que sintam que o núcleo é constituído por colegas seus que defendem os interesses estudantis, ao invés da sensação de ser um grupo elitista, o que não é, de todo, favorável. Isso é necessário, principalmente agora, com a nova prova [ndr: de acesso à especialidade] e o consequente processo de adaptação à sua nova estrutura.
José Borges
Referiu, José, que os vossos colegas vos vêem mais como uma entidade superior. Isso leva a que haja menos envolvimento, da parte deles, na vida associativa?

JB - Depende. Quando formei esta nova equipa, chamei muitas pessoas de fora, colegas que não tinham qualquer contacto com o mundo do associativismo. A visão que temos enquanto dirigentes associativos, e do que fazemos em prol dos outros, não é, muitas vezes, aquilo que os estudantes sentem que lhes chega. A mensagem chega, frequentemente, encriptada. E daí essas escolhas, para tentar quebrar essa distância entre o NEM e o corpo estudantil.

Contudo, a existência de uma nova prova e o facto de ela contar para a média pode ser um fator que mantenha, ou aumente, esse distanciamento. Mas o importante é não desistir, para que eles percebam que essa participação os forma enquanto cidadãos mais ativos da nossa sociedade, dando-lhes capacidades e valências que a própria faculdade e o ciclo de estudos não dão.

ARF – Eu já estava no núcleo quando saiu, em 2015, um decreto-lei que dizia que, em 2018, a média final de curso (Mestrado Integrado em Medicina) iria contar para quem se candidatasse ao concurso da especialidade - 80% a nota da prova e 20% a média. A partir desse momento começámos a sentir uma grande quebra no número de colaboradores e de pessoas que intervinham. Em relação à participação associativa... Penso que as pessoas olham para nós como uma entidade que organiza coisas, ao invés de nos olharem como colegas, talvez até por sermos o único núcleo da Associação Académica de Coimbra (AAC) que tem uma secretária, que é paga para exercer funções administrativas. É algo que facilita imenso o nosso trabalho, mas acaba por criar um maior distanciamento. Para além disso, falamos de um corpo estudantil de três mil pessoas, ao qual não é fácil chegar de forma individualizada; por exemplo, só por duas vezes tivemos mais de cem pessoas nos plenários do núcleo, e já foram grandes vitórias - mas a verdade é que isso pode não representar a opinião dos três mil estudantes da FMUC. Há qualquer coisa neste microambiente que faz com que as pessoas se inibam de falar e não venham às atividades que organizamos.

Resumidamente, creio que as pessoas olham para o núcleo como uma estrutura profissionalizada, com a qual podem reclamar se algo estiver a correr mal. Mas somos colegas que se esforçam para que tudo corra bem e que, por vezes, estudámos menos para uma frequência para que tal acontecesse.


No vosso Plano de Candidatura aparece a frase "oportunidade de nos deixarmos de conformismos e atuarmos".

JB - É uma frase que transmite precisamente o papel interventivo que temos enquanto núcleo e o assumir que somos a voz dos nossos estudantes, daqueles que querem ser reivindicativos, mas que não conseguem. E os plenários, como a Ana Rita referiu há pouco, são os momentos ideais para tal. A luta é conjunta e não apenas do NEM.

ARF - Os estudantes são um pouco treinadores de bancada. É comum haver bastantes mensagens nas redes sociais, só que quando chega a hora de participar aparecem dez pessoas. Nas alturas de frequências é ainda mais complicado, mas é necessário mobilizar as pessoas. A verdade é que, neste momento, o NEM é praticamente parceiro da faculdade, é-nos pedida opinião na maior parte dos assuntos que nos dizem respeito. Temos capacidade de intervir e de resolver a maior parte dos problemas que possam surgir, mas as pessoas conformam-se, há aquele medo que haja represálias se fizerem alguma denúncia. Um exemplo são os inquéritos no Inforestudante, onde quase nunca há respostas a 100%; se as pessoas estão descontentes e não concordam com determinadas situações, não basta apenas criticar nas redes sociais, dizer que isto é a FMUC e vai ser sempre assim ou denunciar somente quando a época de exames já acabou e as unidades curriculares estão feitas.

Houve coisas que já mudámos. Um exemplo disso é o sexto ano, que antigamente tinha aulas obrigatórias, com a reivindicação dos estudantes a ter um papel importante nessa mudança.

JB - Também cabe ao NEM orientar os estudantes em relação à forma como eles podem apresentar uma queixa ou fazer uma denúncia. Isto para ir ao encontro daqueles que querem, mas não sabem como, sendo o NEM o parceiro ideal para essas situações.

ARF - Sim, temos precisamente uma colega que tem a seu cargo a Representação Externa e que coordena a Plataforma para a Educação Médica, onde estão reunidos todos os representantes dos estudantes nos órgãos de gestão da faculdade. É aí que se debatem os problemas que estão a acontecer e se tentam encontrar, em conjunto, soluções. Mas é muito importante que as pessoas entendam que por ter acontecido com elas, não tem de acontecer com os próximos colegas.
Ana Rita Fradique

Como é que o núcleo se faz ouvir junto das estruturas da faculdade?

ARF – Eu tinha reuniões quinzenais com o diretor, onde resolvia os problemas diretamente. E há, como já referi, a Plataforma para a Educação Médica, onde os alunos que têm assento no Conselho Pedagógico podem recolher questões para as apresentarem nas respetivas sessões, se entenderem que faz sentido. O mesmo se passa com os colegas que estão no Senado ou na Assembleia. Há também a comunicação direta com os docentes, mais a cargo das comissões de curso de cada ano, que podem recorrer ao NEM e aos restantes representantes caso haja algum problema.

Para além disto, fazemos balanços pedagógicos internos, do primeiro ao quinto ano, que são apresentados ao Conselho Pedagógico e ao Conselho Científico da FMUC. Podemos inclusive dizer que somos o único núcleo da AAC que o faz junto do respetivo conselho cientítico.


Têm notado algum problema que seja mais difícil de resolver?

ARF - Há alguns problemas que são comuns a muitas unidades curriculares. O grande problema é talvez a revisão de prova e a forma como a própria prova é feita. Na maior parte das vezes, não há cumprimento dos regulamentos pedagógicos, a prova e a chave não são mostradas. Depois há problemas específicos de cada unidade curricular, como a marcação de orais.

JB - Há também a questão da falta de prática em determinadas unidades curriculares, que é uma componente que é necessário ter cada vez mais em conta, dado que a nova prova vai ser exigente em termos de competências práticas.

ARF - Somos muitos estudantes. O rácio está melhor do que há quatro, cinco anos, mas mesmo assim há 12 alunos para um tutor, o que significa 12 para um doente e não vamos todos praticar a mesma técnica porque não estamos lá para provocar sofrimento ao doente. Esse rácio também se reflete em alguns espaços onde decorrem as aulas. Em unidades curriculares com presenças bonificadas nas teóricas há, por vezes, alunos sentados no chão e há espaços destinados a aulas práticas a serem usados como gabinetes, o que prejudica as aulas, uma vez que a discussão tem de ser realizada noutro local.

A questão da gestão do horário é também um problema a resolver. A nossa hora de almoço, na maior parte das vezes, é de apenas uma hora e as cantinas não são suficientes para a quantidade de pessoas que o Pólo III alberga. O NEM, neste caso em articulação com o Núcleo de Estudantes de Farmácia e de Medicina Dentária, tem tentado resolver a questão com a administradora dos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra, perceber o que se pode fazer de diferente. E embora já se tenham encetado algumas mudanças, a verdade é que este pólo foi feito, provavelmente, a pensar em metade da sua lotação atual.


Como perspetivam o futuro dos futuros médicos e que papel pode ter nisso Coimbra e, em particular, a FMUC?

ARF - Perspetivamos um futuro que não é tão risonho e bonito como se pensava há dez, vinte anos. A realidade é que já há colegas que ficam sem especialidade, os indiferenciados. Tem havido cerca de 200 nos últimos anos, mas talvez ainda não se tenha pensado que isso é um problema exponencial. É necessário fazer um levantamento do que é preciso na saúde em Portugal, se o número de estudantes é adequado ao número de vagas por especialidade, se a existência de médicos indiferenciados pode ser positivo para o setor... Não há um estudo que o diga, mas parece lógico que sete anos de formação não podem ser iguais a sete mais seis anos de especialidade, porque alguma coisa tem de ficar perdida. E quando o número de alunos aumenta, a formação piora em termos de rácio, da quantidade de técnicas que praticamos. Tudo somado resulta em médicos menos preparados para o futuro que se avizinha. Se a especialidade ainda pode colmatar algumas destas falhas formativas, sem especialidade podemos estar a pôr em causa a saúde dos portugueses.

O Ministério da Saúde vai ter de começar a pensar nestas questões. O problema pode ainda não parecer real, mas não pode sê-lo somente quando metade dos candidatos não entrar na especialidade. Não ajuda, também, que a opinião pública, por excessos que possam ter sido cometidos no passado, tenha uma opinião sobre os médicos que não é a melhor. A ideia que os médicos vão ser todos muito ricos já não corresponde à realidade. É preciso que os médicos se aliem à opinião pública para conseguirem mudar mentalidades.

Sentimos que, muitas vezes, há falhas de comunicação entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Deixamos de ser estudantes, passamos a ser médicos e não houve uma real preparação daquilo que nos deveria receber. O melhor conselho que posso dar a quem quer ser médico é vir para aqui porque realmente gosta, dado que são seis anos a estudar e depois pode não ser nada daquilo que se imaginou.

Em relação ao papel da FMUC... Penso que o seu papel principal é formar-nos para nos destacarmos e sermos os melhores, adaptando aquilo que nos ensinam e os exames que fazemos àquela que vai ser a realidade da nova prova. O outro papel é dar-nos competências diferentes, que sejam atrativas para um futuro empregador. Sentimos que a FMUC nos apoia para fazermos parte do associativismo, do núcleo, o que não é a realidade da maior parte das outras faculdades de medicina portuguesas.

JB - Subscrevo tudo o que a Rita disse até aqui. Há uma necessidade de a FMUC pensar e estruturar os seus estudantes não para aquilo que têm sido os médicos, mas para aquilo que têm de ser agora. Temos de ser empreendedores do nosso futuro, perceber de que maneira nos devemos destacar e aproveitar aquilo que temos. Coimbra tem muita potencialidade, mas não sabe usá-la, nem aplicá-la nos seus estudantes. O facto de, durante muito tempo, a saída dos estudantes de Medicina ter sido muito facilitada e estarmos agora a entrar numa fase de maior incerteza aguça a importância de se olhar mais para o empreendedorismo na Medicina, uma área que tem de ser capitalizada. Os nossos estudantes não sabem o que podemos fazer para além de sermos médicos.

Uma das coisas que me trouxe um sentimento mais claustrofóbico naquilo que é o curso de Medicina foi exatamente esta formatação dos jovens. Não temos de ser clínicos, ou só clínicos, mas podemos ser investigadores, por exemplo. A FMUC tem de saber ouvir as necessidades dos estudantes, para perceber o que tem de ser feito, aproveitando as suas próprias potencialidades. O ensino pode tornar-se muito mais multidisciplinar, englobando áreas como a Gestão, para formar médicos com capacidades para se destacarem em diferentes áreas. Isto pode ser uma solução para o problema dos indiferenciados, porque podem sê-lo na área médica, mas podem ser diferenciados noutras áreas aliadas à Medicina, por escolha própria.

A FMUC tem capacidade para tal e pode ser visionária nesse aspeto.

ARF - Há competências que nós não exploramos, 'soft skills' como liderança, empreendedorismo ou comunicação. Ao sermos clínicos, temos de ser comunicadores natos e saber trabalhar em equipa. E a verdade é que estas características não são desenvolvidas, desafiadas. A FMUC tem de continuar a renovar-se. Já fizemos uma reforma curricular, em que o NEM participou, mas continuamos sem percecionar o que queremos que os médicos sejam daqui a dez anos, antecipar essa realidade. Temos de perceber onde é que podemos ser diferentes, nem que seja só um pouco.

Hoje em dia já temos de começar a olhar para o futuro e a perceber que se não fizermos as coisas de uma forma, teremos de fazer de outra. Antigamente, as pessoas iam para Medicina, tinham emprego certo e sabiam que um dia iam ter um determinado estilo de vida. Hoje isso já não é certo. 

por Paulo Sérgio Santos

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