Do curso 
de 1964

Maló de Abreu

O guarda-redes justo

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João Maló de Abreu cumprimenta-me. Aperto de mão firme, como se estivéssemos em equipas adversárias, no alinhamento inicial ante a bancada central. O olhar e o trato inicial denotam alguma frieza, como se por momentos regressasse à linha branca que une os dois postes de uma baliza e eu me preparasse para bater uma grande penalidade. É uma figura imponente de 78 anos, cujos traços se iluminam precisamente quando fala do desporto-rei e da sua Académica, a da década de 1960.
Maló de Abreu


Sentamo-nos numa sala de reuniões, no edifício da Medicina Dentária. Pergunta-me ao que venho e os papéis invertem-se por breves instantes. Explico e devolvo-lhe uma pergunta. Quero saber onde nasceu. “Nasci em Angola, em Moçâmedes, em 1940. Fiz o liceu lá. Joguei à bola por aí e no sétimo ano recebi um convite para vir para Lisboa jogar nos juniores do Benfica, tinha 17 anos. Vim para Lisboa e estive lá dois anos. Entrei na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, mas reparei que aquilo não era vida para mim. Tive contactos em Coimbra, com outra malta que conhecia circunstancialmente, e vim para cá, onde me licenciei”. Resume-me parte da sua vida, os primeiros 20 anos, em cerca de um minuto. Abranda-se o ritmo, fica mais à vontade. Está quebrado o gelo inicial.

A Medicina surge na vida de Maló de Abreu fruto de uma entrada a pés juntos ao sonho do seu pai, que queria que se tornasse engenheiro mecânico. “Deixei uma cadeira atrasada, de Ciências Naturais, e para ir para Engenharia tinha de repetir essa cadeira. Para fazer a aptidão à faculdade de medicina também precisava dela e, então, juntei o útil ao agradável. Fiz Ciências Naturais já em Lisboa e lá entrei”. Deixou Ciências Naturais para trás no Liceu de Sá da Bandeira, a 200 quilómetros de casa, onde estava sozinho, no internato, desde os 13 anos. É no internato, logo após desistir da prova na segunda chamada, que recebe o telefonema que o leva para o clube da Luz. “Assim que desisti, voltei para o internato, onde me disseram que tinha um telefonema de um senhor para mim. Era então alguém, a falar em nome do Benfica, que me propunha ir para Lisboa, jogar à bola e estudar. A tal imagem do comboio... Não disse logo que sim nem que não, porque podia ser uma brincadeira de rapazes, algum gajo a gozar comigo”.

À esquerda, equipado de branco, guarda-redes da Academica da Huila, contra o Atlético de Moçâmedes; à direita, também equipado de branco, com a bola debaixo do braço direito, em 1952 pelo Sporting Clube de Moçâmedes
(retirado de http://princesa-do-namibe.blogspot.com).


Maló de Abreu fala muitas vezes num comboio, parte possível resquício do sonho do pai, que há-de encaminhá-lo para a Estomatologia, parte algo que Ibérico Nogueira lhe viria a dizer em 1973. Para o antigo médico e guardião da Briosa, há uma noção de movimento na vida, movimento e oportunidades únicas. “Tenho uma ideia que a vida é como se fosse um comboio a passar, e nós estamos na estação. De entre os vários comboios que passam, apanhamos um. E eu posso, de alguma maneira, congratular-me por ter apanhado sempre o bom comboio”. Família informada, papéis tratados e este comboio traz o jovem Maló de Abreu, aos 17 anos, para a capital portuguesa, Lisboa.

Dos juniores do Benfica guarda as vitórias, os quatro títulos, dois de campeão de Lisboa e dois de campeão nacional, e a estreia pela equipa sénior, em pleno Estádio da Luz. Nas bancadas, Béla Guttmann, então treinador do FC Porto, coloca o seu nome no bloco de notas. No final da época de 1958/1959, Maló de Abreu, que ia gerindo os treinos no Benfica com os bancos da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, senta-se com os responsáveis do clube da Luz para acertar a vinda para Coimbra, para a FMUC e para a Académica. Sublinha que “ficou mais ou menos apalavrado”. Contudo, semanas mais tarde, há um jantar e um comboio que é um carro. “O presidente do Benfica era o engenheiro Maurício de Brito. Houve uma festa porque ele ia deixar o clube e o representante da Académica foi a Lisboa. João Rodrigues, conhecido cá em Coimbra como João ‘Teddy Boy’. Chega-se à nossa mesa o Gastão Silva, um dirigente do Benfica, e disse que já não queriam que eu fosse para Coimbra, porque o Béla Guttmann, que estava no Porto, mas que ia ser o próximo treinador do Benfica, tinha-me na lista dele”. Maló de Abreu ainda esboça alguma oposição, mas escuta um categórico “Acabou a conversa”. João Rodrigues, antecipando mais problemas, pega no jovem guarda-redes e arranca com ele. “Fui a casa, fiz as malas e escrevi uma carta de despedida na Portugália. Viemos embora e estive 15 dias escondido em Celorico da Beira, em casa do João Rodrigues. O comboio foi o carro dele”.

Maló (ao centro) e os defesas Celestino, Curado, Bernardo e Rui Rodrigues,
a famosa defesa da Académica da década de 1960.
(retirado de http://princesa-do-namibe.blogspot.com)


A próxima década é de negro vestido. Os números variam consoante os ‘sites’, mas são cerca de 170 jogos com o símbolo da Associação Académica de Coimbra ao peito. “Os dias mais felizes da minha vida foram esses dez anos”. Para Maló de Abreu, o mais importante não eram os jogos, mas sim a camaradagem entre os companheiros de equipa. “As minhas recordações do futebol são as de jogador-estudante, tinha cama, mesa e roupa lavada. O que era bonito era o convívio do dia-a-dia entre os jogadores, na zona do Mandarim. Já havia licenciados na equipa, o Mário Torres, o Abreu, o Malícias. Dávamo-nos todos bem, não havia chatices. As anedotas, as histórias, as partilhas, coisas indescritíveis que ficam no segredo dos deuses, as malandrices de uns e de outros. Como é que indivíduos deste género ansiavam pela chegada da hora do treino, ali no Santa Cruz? A expectativa da desconversa era uma alegria”, relembra. Ainda se juntam todos os anos, mas “restam poucos, vão ficando pelo caminho”. Contudo, “a conversa é sempre a mesma, parece que ficou inacabada há cinquenta anos atrás”.

1 de outubro de 1969. Há 2693 espectadores nas bancadas do Vainölanniemi, o estádio dos finlandeses do KuPS Kuopio. A História não reza sobre a existência de portugueses, para além da comitiva da Académica, a assistir ao último jogo de Maló de Abreu com o manto negro. Aos 79 minutos da segunda mão da primeira eliminatória da Taça das Taças, com o marcador a registar 0-1 para a Briosa desde os 65, o treinador dos estudantes, Francisco Andrade, dá ordem para a única substituição do lado dos forasteiros. Sai Maló, entra Brassard.

Retirado de http://cromodoscromos.blogspot.com.


O guarda-redes passa então a arrancar dentes em Angola, até 1973. Tinha escolhido Estomatologia um pouco pela tal influência do pai, a especialidade que pensou ser mais parecida com a Engenharia Mecânica do sonho paterno. No final desse ano, é desafiado pelo então diretor da faculdade, Poiares Baptista, para integrar a carreira hospitalar. Um mês antes, enquanto lia uma edição semanal d’“A Província de Angola”, tem uma espécie de epifania. “Este pensamento, que estou aqui a levar minutos a descrever, tive-o num segundo”, recorda Maló de Abreu. O dinheiro do petróleo, o “terrorismo”, como chama à Guerra Colonial, a tentativa de minorar o impacto dos musseques [ndr: favela no Brasil, bairro de lata em Portugal, caniço em Moçambique], tudo isso encaixou, naquele momento, no pensamento do médico. “Eu que dizia que Angola era nossa, mudei radicalmente de pensamento. Angola não era nossa, era dos pretos, dos verdadeiros naturais de lá”. Virou-se para a mulher, Luísa, e disse-lhe que iam regressar a Portugal. Assim foi, no início de 1974. Antes, em dezembro, a tal frase de Ibérico Nogueira:

- A faculdade põe-te os carris, tu vais onde a tua máquina assim entender.

Da faculdade não fala muito. Ou melhor, não quer falar muito, nota-se pelo discurso que sempre quis primar pela justiça e pela retidão. “Tive pequenas guerras... Há quanto tempo não me sento nesta cadeira? Jubilei-me com 70 anos, tenho 78. Não venho cá ao serviço, mas você viu como é que esta gente me recebeu. Não venho cá porque quero ser sempre recebido assim”. Todavia, recorda alguns episódios em que tentaram que aceitasse a entrada de alunos por especial favor.

“Todos os anos havia repescagens de alunos, número que era definido pelo conselho da faculdade, em função dos equipamentos que existiam. Isto não era elástico. Um belo dia houve alguém, professor desta faculdade, que queria que o seu filho entrasse, mas as notas dele não davam. O professor Fernando de Oliveira veio lá de baixo, pé ante pé

- Preciso de falar contigo.

- Está bem, senhor professor. O que é que se passa?

- O filho do fulano tal quer entrar, mas ele diz que tu és um gajo muito difícil.

- Eu, senhor professor? O que é que o senhor fazia? Abria as pernas?

- Não, fazia como tu”.


Simplesmente, uma pessoa cede uma vez, é a vida inteira

De outra vez, requerem a sua presença na reitoria. “Um dia fui chamado ao Jorge Veiga, que era vice-reitor, por um caso semelhante. Disse-lhes que tinham uma solução, passassem por cima de mim e pedissem ao Conselho Diretivo da faculdade. Se eles achassem que podiam meter mais gente, tudo bem, mas que assumissem isso, não pedissem era a assinatura do Maló. Se eu autorizasse, a responsabilidade era minha”. Para o antigo médico, o raciocínio não podia ser mais claro: “Quantas vezes não me chegou ao ouvido «O que é que custava ao gajo?!»? Simplesmente, uma pessoa cede uma vez, é a vida inteira”.

Diz que já não conhece os professores da FMUC de hoje, são todos mais novos que si. Olha em volta, na sala de reuniões onde estamos. Há um quadro de Vilaça Ramos. "Por exemplo, este professor. Era um tipo às direitas. Ou ao centro [risos]”. De que se orgulha mais, da sua carreira médica? “A construção disto, da Medicina Dentária. E isso só foi possível porque os meus amigos, os que acreditaram em mim, o professor Vilaça Ramos, o professor Poiares Baptista, o professor Fernando de Oliveira, o professor Diniz de Freitas, o professor Mário Mendes. Toda essa gente, quando eu falava com eles neste tom, acreditavam em mim. E deram-me apoio [bate várias vezes na mesa enquanto repete a frase]. Isto não foi fácil, mas também não foi difícil, porque as pessoas acreditaram no projeto”.

Maló


Maló de Abreu vai ficando irrequieto, como se o apito final se aproximasse e o resultado não lhe agradasse. Faço um último passe, arriscado, em tempo de Mundial. E a seleção? Fala-me de algo que viu na televisão, há dias. A melhor seleção nacional de sempre. “A incongruência disto. Puseram o Bento à baliza. Hoje, ele que tinha 1,73m de altura, não jogava. Já viu os guarda-redes que andam aí? O Bento era um guarda-redes voador. O melhor que eu vi foi o Carlos Gomes, do Sporting, depois o Costa Pereira [ndr: do Benfica]. Era um gajo grande. Depois veio uma geração de voadores, como o Damas, do Sporting. Mas quem faz a história são os jornalistas de Lisboa. Enquanto eu era um guarda-redes calmo, de colocação, esses eram uns voadorzecos. O Bento, quando saia da baliza para apanhar uma bola a um cruzamento, era um pé-de-vento que ninguém se entendia. O Rui Patrício... É um bom guarda-redes, matulão, apesar de jogar mal com os pés”. O jogo termina. Apertamos as mãos em jeito de despedida, até ao próximo encontro. 

por Paulo Sérgio Santos
Fotografias gentilmente cedidas por Maló de Abreu