Lucerna

Marta Pereira

voiceMED
Na sequência do que tem sido partilhado na rubrica Lucerna, da VoiceMED, foi-me pedido que identificasse um ponto de viragem no meu percurso académico-científico. Curiosamente, esta iniciativa tornou-se num exercício de alargada reflexão, em que tentei identificar as causas internas e externas que determinaram porque estou onde hoje estou, e porque sou a médica que hoje sou.

Passei, neste trajecto de memória, por múltiplos pequenos momentos marcantes – aquele grande professor na faculdade, aquela palestra alucinante num congresso internacional, aquele doente único e peculiar na enfermaria, aquele artigo magistral numa revista de grande impacto… – e sobre cada um comecei a escrever.

E parei. Parei quando percebi que o ponto de viragem para mim não foi um ponto definido no trajecto, nem uma clara intersecção na estrada – mas sim os companheiros que têm feito comigo esta viagem: os mentores.

De facto, acabei por compreender que, por mais marcantes que sejam os pequenos momentos, é o apoio e auxílio daqueles que nos conseguem ajudar a interpretar esses momentos, e a integrá-los na narrativa maior do nosso percurso, que definem quem nos tornamos.

Quem eu hoje sou é em grande parte o resultado do apoio e discussão académica, científica, ética e deontológica com o meu mentor que me apoia desde a faculdade, após uma introdução verdadeiramente fortuita: o Prof. José Augusto Medeiros. A ele recorri com dúvidas e questões, a ele pedi apoio nas grandes decisões académicas, a ele pedi que me assinasse “as fitas”, a ele dediquei a minha tese de Mestrado, a ele dediquei o meu Currículo da Especialidade e a ele, mais tarde, pedi que fosse meu padrinho de casamento.

Ao Prof. Medeiros se juntaram ao longo dos anos outros mentores mais específicos – de Especialidade, de Mestrado, de Doutoramento – alguns dos quais o foram de uma forma involuntária, inconsciente e acidental; neste campo, destaco o papel formativo que teve o Dr. Mota, distinto internista que me acolheu no estágio de Medicina Interna no 6º ano profissionalizante, e que me mostrou o que a Medicina e o que o médico podem ser (e o que o Sistema Nacional de Saúde deveria ser).

O ‘mentorship’, historicamente, não tem sido valorizado nas escolas médicas portuguesas como o é internacionalmente, mas espero sinceramente que tal venha a mudar. À medida que aumentam o numerus clausus e explode o número de alunos por turma (muitas vezes divorciando as aulas práticas da prática verdadeira), assim se tornará cada vez mais fundamental que os alunos sejam apoiados de perto durante o seu percurso formativo por um mentor abrangente e completo, que os ensine a serem médicos, investigadores, cuidadores, pensadores e cidadãos.

Espero um dia poder vir a sê-lo também para alguém.
Marta Pereira

Marta Pereira é hematologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e aluna do Programa de Doutoramento em Ciências da Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.

Ilustração por Ana Catarina Lopes