Do curso 
de 1967

Carlos Oliveira

O homem dos selos
que venceram a guerra,
mas não a Medicina

voiceMED
O relógio marca 16h30. Carlos Oliveira é pontual e estamos ambos longe de imaginar que vamos passar as próximas três horas a conversar. O antigo docente da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), especialista em Ginecologia e Oncologia, e atual presidente do Núcleo do Centro da Liga Portuguesa Contra o Cancro começa praticamente pelo seu cartão de cidadão: “Ponta Delgada, São Miguel, Açores. 25 de dezembro de 1943”. Estranho a ausência de sotaque, mas por pouco tempo. O entusiasmo de contar as suas histórias trá-lo ao de cima, diretamente do meio do Atlântico até Celas. “Sou assim um misto, do continente e dos Açores”, caracteriza-se, filho que é de uma açoriana por quem o pai, “um coimbrinha”, se enamorou quando foi dar aulas para o arquipélago açoriano.
Carlos Oliveira

Anos 1990 - Visita ao Space Center de Houston


Há perguntas que se impõem, como se de um guião base se tratasse. Por vezes, Carlos Oliveira antecipa-se a elas, como se já as esperasse. “Você fez essa pergunta ao Cunha-Vaz, estava ali a ler...”. Contudo, embora as perguntas possam repetir-se de entrevista para entrevista, são as respostas que diferem. Como, por exemplo, o porquê da escolha de Medicina. “Lembro-me de andar com uma caixa ambulatória de farmácia a fazer pensos a um amigo meu que se tinha magoado. Mas o que sempre me ficou não era a vocação da Medicina, mas sim que o médico era das pessoas de maior prestígio na ilha”. Para além disso, o jovem Carlos tinha um primo cirurgião, “que ganhava bem e tinha um barco”. Apaixonado pelo mar, detentor de uma canoa oferecida pela tia, com a qual navegava entre os paquetes no porto de São Miguel, viu ali a possibilidade de concretizar um sonho. “Achei que se ele tinha comprado um barco com esta coisa da Medicina, não era má profissão de todo”, recorda, rindo-se. Na razão de ter vindo para a cidade dos estudantes e para a FMUC entra também o pai, licenciado em Inglês-Alemão, e que falava “da faculdade, dos lentes de Medicina, de um Bissaya-Barreto”.


Queria uma especialidade que tivesse cirurgia, mas não queria Obstetrícia,
para não estar acordado de noite a fazer partos, porque as crianças nascem todas à noite 

É com 17 anos que Carlos Oliveira se fixa de vez em Coimbra, ele que vinha passar férias à cidade de dois em dois anos. O caminho, a partir daí, é quase todo em linha reta, como se traçado a régua e esquadro. “Tive sorte na vida, só fiz aquilo que queria e decidi sempre a minha vida”. É no primeiro ano que conhece e começa a namorar com aquela que é, ainda hoje, a sua mulher, Helena Saldanha, também ela antiga docente da FMUC e ex-diretora do Serviço de Medicina Interna dos Hospitais da Universidade de Coimbra. “Estamos casados há 52 anos. Tive sorte de ela ser também médica, e foi mais importante que eu”. A Ginecologia chega no segundo ano, sem grandes hesitações. Novamente o pai como referente pelo respeito que demonstrava, mas não só. “queria uma especialidade que tivesse cirurgia, mas não queria Obstetrícia, para não estar acordado de noite a fazer partos, porque as crianças nascem todas à noite [risos]”. Boa disposição à parte, Carlos Oliveira é inequívoco: “A Ginecologia tinha algo que sempre me atraiu, o cancro. E cancros importantes, como o da mama e o do colo do útero”. Já era assistente de Fisiologia, tal como Helena, quando resolveu ir ter com aquele que viria a ser o seu mestre, Ibérico Nogueira, professor de Ginecologia, dizer-lhe que gostava da especialidade e ouvir um “Venha”.

“E então acontece uma coisa fantástica que mudou a minha vida”. Numa história, este é o momento, ou um dos, de viragem. Estamos em finais da década de 1960. Carlos Oliveira é convocado para a Guerra Colonial, como tantos outros. Como tantos outros, também resiste, não quer ir, sente o perigo. “Fui ter com o professor Ibérico e comuniquei-lhe que me tinham chamado para a guerra e tinha de ir, ao que ele me responde que eu ia porque queria”. Quinze dias antes havia saído uma legislação que permitia um adiamento do serviço militar àqueles que estivessem em condições de se doutorar até aos 30 anos. O doutoramento não lhe passava pela cabeça, considerava que era só para “os especiais”, mas ao ouvir o seu mestre dizer que o apoiava se ele quisesse, atirou-se de cabeça. Três dias depois, com um comprovativo passado pelo Conselho Científico da faculdade na mão, dirige-se ao centro de recrutamento na Rua da Sofia. “Mostrei o documento e o sargento disse que eu estava doido, que já tinha guia de marcha para Lisboa e não podia fazer isto com oito dias de antecedência. Tentei retorquir, mas disse-me que, por eles, apresentava-me em Lisboa ou ainda era preso.”


- Oh Carlos, tu queres mesmo ser adiado? Então estás adiado!

A solução foi fácil. Carlos e Helena meteram-se no Ford Escort e rumaram à capital, direitos ao Terreiro do Paço. “Cometi aí o meu único erro militar na vida, quando pedi para falar com o senhor tenente-coronel, quando é o nosso tenente-coronel. Nem passei do passeio, fiquei lá à espera”. Quando foi recebido, nada mudou. Dentro de dias deveria apresentar-se em Mafra para fazer a recruta. Pequeno parêntesis: Carlos Oliveira, para além de ávido pelo mar, era-o também por selos. Cabisbaixo, vai ter com um amigo filatelista, como sempre fazia quando vinha a Lisboa, à Brasileira. “O capitão Francisco Lemos da Silveira era um alfacinha, daqueles que puxava as mangas e falava alto. Nesse dia, a primeira coisa que me disse foi que eu estava com um ar triste. Contei-lhe a situação:

- Oh Carlos, tu queres mesmo ser adiado?

- Pois... Vim cá para isso.

- Então estás adiado.

- Adiado como?

- Esse gajo vive no mesmo andar que eu, é o padrinho das minhas filhas e portanto é meu compadre. Queres ir lá abaixo comigo?”

Regressaram ao Terreiro do Paço para falar novamente com o tenente-coronel.

"- Oh doutor, então o senhor vem aqui pedir uma coisa e não diz que é amigo do Chico?

- Então, mas não sabia que tinha de dizer...

- Eu podia lá dizer que não ao amigo do Chico. Dê cá o papel, está adiado!”

O adiamento permitiu-lhe então fazer o doutoramento, que incluiu uma passagem por Paris, onde desenvolve o seu trabalho em Oncologia no Instituto Gustav Roussy. No final de 1973, quando completou 30 anos, Carlos Oliveira teve novamente sorte. O ano seguinte traz consigo o 25 de abril, a Revolução dos Cravos, e novo adiamento, desta vez pedido pela FMUC, com peripécias à mistura envolvendo o Presidente da República e uma série de ministros. “Fiquei adiado e passados seis meses transitei para a Reserva Territorial. E acabou-se assim a história da minha guerra. Foi o que me permitiu doutorar-me aos 30, quando o normal era isso acontecer aos 40, 50. Foi a sorte, como vê. De ter um amigo que era amigo do tenente-coronel e de ter saído uma legislação 15 dias antes do documento que me enviava para a incorporação. No fundo, a única cunha que tive na vida foi a do amigo filatelista Lemos da Silveira”, resume.
Carlos Oliveira

Carlos Oliveira em 1974/75


Da vida de Carlos Oliveira consta também a Quimioterapia. Foi ele quem a criou no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Coimbra, com o apoio de Ibérico Nogueira, quando “ainda ninguém sabia muito bem o que era”. “Comecei com uma doente que apareceu no hospital com cancro dos ovários. Li uns catrapázios e tratei-a com uma dose brutal, que hoje em dia não se usa. A mulher estrebuchou por todo o lado, mas safou-se. O tumor era inoperável e reduziu todo, com uma dose de dois a três gramas de ciclofosfamida por metro quadrado, quando a dose que se usa hoje anda à volta dos 600 miligramas. Dois a três gramas, aplicação única. O cabelo caiu-lhe todo no dia seguinte, fez uma cistite. Mas o certo é que pode ser operada e ainda sobreviveu uns anos”. Entre 1969 e 1971 tratou de tudo, de carcinomas do pescoço e da cabeça, a cancros da próstata, do pénis e do testículo. Foi consultor de 1969 até à década de 1990. Saiu porque sempre pautou a sua vida pelo equilíbrio, mas também pelo empenho. “Já não conseguia acumular com a faculdade e o hospital. Porque eu sempre gostei de meter a mão na massa, não era só consultor apenas para receber o ordenado no final do mês”.

Foi assim, também, com os selos, que largou quando regressou de França. “Um colega mais velho, que trabalhava comigo na Ginecologia e que também era filatelista, mas amador, disse-me: «Carlos, você tem de se decidir. Ou se dedica à Filatelia ou à Medicina. Não vai conseguir fazer as duas coisas com o patamar que deseja»”. Veio para casa pensar e a Medicina, a Ginecologia, ganhou. Os selos chegavam e iam diretamente para gavetas que só voltaram a ser abertas quando se reformou. “Deixei de tocar em selos, nunca mais fui à Secção Filatélica da Associação Académica de Coimbra, nunca mais fui a uma exposição de selos”. Não foi, contudo, o que mais lhe custou na vida. “Das coisas mais difíceis que fiz foi deixar de operar, há cerca de um ano e meio. Entendi que com 73 anos era altura de parar, porque entendi que tinha tido sorte na vida com as cirurgias, não tinha tido encrencas”. A visão pragmática vem da experiência enquanto membro do Conselho Médico-Legal, durante 15 anos, onde "condenou" muitos colegas por má-prática. “Pensei que um dia era eu que tinha um desses azares, passaria por todo esse processo e as pessoas diriam que o velho devia ter arrumado as botas. Toda a vida decidi por mim. Então assim foi, dia 1 de janeiro de 2016 deixei de operar”, refere Carlos Oliveira.

Carlos Oliveira

Com a mulher, Helena Saldanha


Quando retomou a sua paixão filatélica, que partilha o tempo com a presidência do Núcleo do Centro da Liga Portuguesa Contra o Cancro, levou três anos a organizar tudo o que tinha sido colocado fora da vista. “A partir de 2013 comecei a candidatar-me novamente a exposições e agora estou outra vez um profissional da Filatelia [risos]. Já estou a montar a minha coleção pela quarta vez, porque vou adquirindo coisas novas. Agora há uma coisa que se chama 'internet', que não havia no passado, que permite ir a todos os leilões e mais alguns, comprar, por exemplo, carimbos das mais variadas origens”. Já recebeu a prata dourada, uma espécie de bronze das medalhas filatélicas, e pensa poder chegar à prata, o ouro pequeno. O ouro da Filatelia, que se designa como ouro grande, diz estar fora do alcance. “O ouro grande obriga a fazer enormes investimentos, é preciso comprar peças de dez mil euros, ter duas ou três que, no total, atinjam 50, 60 mil euros. O máximo que dou é umas centenas de euros por uma peça e, mesmo assim, fico a roer as unhas durante não sei quanto tempo”. É uma paixão que morrerá, eventualmente, consigo. “Ninguém da minha família quer saber dos selos”.


temos de escolher entre uma doença degenerativa, uma cardiovascular ou um cancro. O resto, costumo dizer, são pipocas 

São quase 19 horas. Pergunto-lhe pela Oncologia novamente, como lidava com o lado mais frágil e impotente da vida. “Não tive muitos doentes em cuidados terminais. Havia um patamar em que parávamos a quimioterapia e o doente ia para casa. Claro que vi muitos doentes morrerem na enfermaria, mas fazia parte. Hoje cada vez faz menos parte, porque cada vez há mais sobreviventes, o diagnóstico é mais precoce. Mas é o destino de todos nós, temos de escolher entre uma doença degenerativa, uma cardiovascular ou um cancro. O resto, costumo dizer, são pipocas”. Carlos Oliveira tem uma linguagem própria, genuína, onde o sotaque açoriano ganha asas embalado no entusiasmo. Falta-lhe alguma coisa? “Tenho histórias que lhe contei que gostaria de passar a papel, mas não passo. Tenho selos”. As histórias são assim. No entusiasmo há também uma espécie de garante que se conta uma parte e outras ficam guardadas para mais tarde. Não cabem no espaço definido, mas ficam na memória sonora de uma conversa de três horas. 
por Paulo Sérgio Santos
Fotografias gentilmente cedidas por Carlos Oliveira