A driven man
Nascido em Coimbra, numa família cujas gerações se enraízam um pouco na vida da própria cidade, o jovem Cunha-Vaz chega à altura dos exames decidido, mas um problema médico, coincidências à parte, torna-se um ponto importante. “Tive uma espécie de abcesso na véspera do exame de matemática. Fui operado e acabei por fazer o exame todo de pé”, recorda. A Matemática ficou feita, mas a classificação não permitiu dispensar às provas de aptidão a Engenharia. É um amigo da família que ajuda a pender a balança. “O senhor Nunes Vicente, pai do professor Nunes Vicente, que era amigo da família, visitou-me um dia e disse-me «Tu és maluco, vais agora para Engenharia Química!... Deixa-te estar, vai mas é para Medicina, que o teu pai fica todo contente». Pensei que até era capaz de ser boa ideia, até porque ia de férias mais cedo, e acabei por ir para Medicina”, conta José Cunha-Vaz, com um sorriso. “Não tinha uma vocação definida. Gosto muito de Medicina e do que faço. As pessoas gostam daquilo que fazem bem e gostam mais quanto melhor fazem. Estou convencido disso”.
São as oportunidades, os momentos, as ocasiões de que vai falando. Oftalmologia é outro desses caminhos moldados para além da vontade momentânea. Se dependesse dessa, José Cunha-Vaz poderia ser hoje um nome incontornável da Psiquiatria. “Durante o curso não pensei em Oftalmologia, mas também não tinha uma atração por nada em especial, a não ser um pouco pela Psiquiatria. Achava-a desafiadora e engraçada, ainda com muito para desenvolver. Aí foi Nunes Vicente, o filho, professor de Neurologia, que me disse que não tinha personalidade para psiquiatra”. Outro nome relevante da história da FMUC, Renato Trincão, disse-lhe o mesmo. Foi, aliás, a sua tese de doutoramento que atraiu Cunha-Vaz para a investigação. “Tinha uma queda para coisas concretas, bem definidas, o espírito matemático. Coisas que se pudessem ver, imagens. A tese de doutoramento dele impressionou-me muito, um volume de mais de 800 páginas só sobre um tipo de células, os mastócitos”.
“A tendência normal seria ter lá ficado”. Não se mostra arrependido, embora denote alguma ambiguidade. “Penso que poderia ter feito mais do que fiz se tivesse ficado nos EUA, estou convencido disso. Por outro lado, tenho uma vida simpática, as coisas conjugaram-se para poder ter o instituto de investigação [IBILI]”, contextualiza José Cunha-Vaz. Sempre que fala de Portugal e dos EUA, nota-se a forma como o país o marcou, sublimando ainda mais os seus traços de personalidade, como o rigor e a capacidade de foco. E deixa patente a ideia de uma diferença maior que o oceano que separa as duas nações. “O que me preocupa mais em Portugal é que não existem hábitos normais de trabalho. Não é um país que goste de planear as coisas, que tenha uma cultura desse tipo, e é mais difícil fazer qualquer coisa aqui que nos EUA”.
Para o antigo médico, há uma diferença cultural, para o bem e para o mal. Ressalva que os EUA são um país ótimo para quem é novo, tornando-se depois impiedoso. Portugal, esse, é distinto, mais latino. “Aqui há mais a cultura de beber uns copos, da amizade. São todos iguais, para que é que alguém se há-de diferenciar, o mediano é que é bem visto... É uma atitude completamente diferente, que me faz confusão. Sou muito mais competitivo, penso que as pessoas se diferenciam sendo melhores pela contribuição para a sociedade. Seja no que for, naquilo que tiver jeito. Se for carpinteiro é carpinteiro”.
E na Medicina, vem aí mais algum Cunha-Vaz? “Vem aí gente nova com imensa capacidade, mesmo na Oftalmologia. É uma das coisas de que me orgulho, de quando fui diretor do Serviço, ele ter crescido, ter-se tornado uma referência nacional e europeia”. Contudo, para si, o importante é que “a pessoa tem, de alguma maneira, de sentir aquilo que o satisfaz e que gosta de fazer, que o faz acordar de manhã bem e contente para ir trabalhar. Esse é que é o grande desafio da vida”. Relembra o pai, como um exemplo. “Não é preciso ter publicações... Ele era um esplêndido cirurgião, diferente de mim. Teve quatro ou cinco publicações, eu tenho 500. O que é que isso significa? Absolutamente nada. São coisas diferentes”, sublinha.
Costuma-se dizer que a idade é um posto. É-o, igualmente, para Cunha-Vaz. Mas não é, nunca, impedimento. “Continuo a levantar-me a meio da noite para escrever notas. Dantes costumava dizer que as ideias que tinha eram sempre num banho quente à noite. Agora, começa a ser às três da manhã, deitado na cama. Acordo de repente com uma ideia”. Não deixou a investigação e a publicação de artigos científicos, e os últimos anos têm sido prolíficos. “Também é mau porque ainda continuo demasiado focado. A minha mulher queixa-se que eu devia ter mais tempo para a família e menos preocupações”, reconhece, apesar de também poder ser isso que lhe permite manter a jovialidade.
Pergunto-lhe o que ainda lhe falta fazer a nível profissional. A resposta tem o seu quê de inesperado. “A primeira coisa que me ocorreu foi preparar-me para a morte [risos]”. Returco se já pensou nisso. “Procuro não pensar, é demasiado. Penso que não ganho nada com isso, sou pragmático e prático”, devolve-me. “Neste momento estou numa fase de transição, gostaria de deixar a casa arrumada. Deixar a instituição a que dediquei 25 anos da minha vida bem orientada, com a certeza que as pessoas podem continuar a trabalhar aqui”. Quer continuar a investigar, a ter ideias. A acordar às três da manhã, mesmo que Teresa Maria se queixe que continua demasiado ligado. ‘Driven’.