Do curso 
de 1962

José Cunha-Vaz

A driven man

VOICEmed #5
José Cunha-Vaz recebe-me no seu escritório, no primeiro piso da AIBILI, a Associação para Investigação Biomédica e Inovação em Luz e Imagem, organização privada sem fins lucrativos a que preside e da qual é um dos membros fundadores. Na parede estão fotografias, a preto e branco e a cores, misturadas com certificados, diplomas, reconhecimentos vários. Foi médico, docente da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e da Universidade de Illinois, em Chicago, nos Estados Unidos da América (EUA). Ocupou muitos cargos, mais do que uma hora de conversa consegue abranger. E investigador, algo a que ainda hoje se dedica e em que se mantém extremamente focado. Foi um Cristiano Ronaldo da Oftalmologia. Ou um Eusébio, à época.

Aos 79 anos (completa oito décadas em novembro), senta-se na mesa redonda com vista para Celas para falar um pouco sobre a sua vida. Medicina não foi a primeira escolha, mas Cunha-Vaz é perentório: “A vida é toda assim, feita de oportunidades, momentos, ocasiões”. É, aliás, uma frase que repete algumas vezes, como se sublinhasse que cada escolha tem uma consequência, inclusive uma não escolha. Engenharia Química era, à data, a paixão. “Era um dos melhores alunos a matemática no liceu e era o que gostava verdadeiramente”.
José Cunha-Vaz

Nascido em Coimbra, numa família cujas gerações se enraízam um pouco na vida da própria cidade, o jovem Cunha-Vaz chega à altura dos exames decidido, mas um problema médico, coincidências à parte, torna-se um ponto importante. “Tive uma espécie de abcesso na véspera do exame de matemática. Fui operado e acabei por fazer o exame todo de pé”, recorda. A Matemática ficou feita, mas a classificação não permitiu dispensar às provas de aptidão a Engenharia. É um amigo da família que ajuda a pender a balança. “O senhor Nunes Vicente, pai do professor Nunes Vicente, que era amigo da família, visitou-me um dia e disse-me «Tu és maluco, vais agora para Engenharia Química!... Deixa-te estar, vai mas é para Medicina, que o teu pai fica todo contente». Pensei que até era capaz de ser boa ideia, até porque ia de férias mais cedo, e acabei por ir para Medicina”, conta José Cunha-Vaz, com um sorriso. “Não tinha uma vocação definida. Gosto muito de Medicina e do que faço. As pessoas gostam daquilo que fazem bem e gostam mais quanto melhor fazem. Estou convencido disso”.

São as oportunidades, os momentos, as ocasiões de que vai falando. Oftalmologia é outro desses caminhos moldados para além da vontade momentânea. Se dependesse dessa, José Cunha-Vaz poderia ser hoje um nome incontornável da Psiquiatria. “Durante o curso não pensei em Oftalmologia, mas também não tinha uma atração por nada em especial, a não ser um pouco pela Psiquiatria. Achava-a desafiadora e engraçada, ainda com muito para desenvolver. Aí foi Nunes Vicente, o filho, professor de Neurologia, que me disse que não tinha personalidade para psiquiatra”. Outro nome relevante da história da FMUC, Renato Trincão, disse-lhe o mesmo. Foi, aliás, a sua tese de doutoramento que atraiu Cunha-Vaz para a investigação. “Tinha uma queda para coisas concretas, bem definidas, o espírito matemático. Coisas que se pudessem ver, imagens. A tese de doutoramento dele impressionou-me muito, um volume de mais de 800 páginas só sobre um tipo de células, os mastócitos”.

José Cunha Vaz
José Cunha-Vaz é agradecido àqueles que influenciaram a sua escolha e também a sua carreira. Renato Trincão, Augusto Vaz Serra, Luís Raposo e Gouveia Monteiro, “segui traços de todos”. Neste ponto da sua vida e carreira, também Teresa Maria, a esposa, teve um papel fulcral. Foi, mais ou menos, na altura de se decidir que começou a namorar. “Achei que tinha encontrado a rapariga certa e que era altura de casar. Então, surgiu a oportunidade de ser assistente de Oftalmologia, confessa, recordando o primeiro salário, que lhe permitiu ganhar independência e casa: “2990$00”, que hoje equivaleriam a 1274,37€, segundo dados da Pordata. Assim foi, José casou-se com Teresa Maria em dezembro de 1962 e a 1 de março do ano seguinte seguiam para Londres, onde faria o doutoramento.

O regresso de Cunha-Vaz a Portugal dá-se três anos depois, em 1966, o ano em que a seleção nacional alcança o terceiro lugar no Mundial disputado precisamente em terras de Sua Majestade, sob a batuta de Eusébio. Após novo doutoramento em Coimbra, Lisboa é o destino, para trabalhar na Junta de Energia Nuclear. “A razão para ter ido para lá foi porque quem estivesse na junta não precisava de fazer o serviço militar obrigatório. Mas a certa altura nomearam-me para Angola, que era o melhor sítio para onde se podia ir, e aceitei logo para despachar a coisa”, explica. Está dois anos em Luanda, no Hospital Militar Central. Regressa a Portugal em 1971, mas desta vez já para Coimbra, onde, no ano seguinte, assume a direção do Serviço de Oftalmologia, onde estará 35 anos, até 2007.

Fui para os EUA numa posição em que ninguém vai.

Daqui para a frente, a vida de José Cunha-Vaz cruza-se com os EUA. Mas, ainda antes de atravessar o Atlântico, há o 25 de abril de 1974, e o saneamento na faculdade. “Embora fosse claramente contra o que se passou, não tive um envolvimento forte, estava um pouco de lado. O único contacto que tive foi terem-me convidado para diretor da faculdade”, relembra, por causa de um assistente seu, José Rui Faria de Abreu. “Era muito ativo no Partido Comunista Português e procurava puxar por mim”, e quando o partido assumiu o controlo da FMUC, José Cunha-Vaz acaba por aceitar, “sem perceber o que o esperava”, ser diretor. “Estive só um mês, o suficiente para perceber que estava a fazer figura de parvo e que o meu lugar não era ali”, sentencia. Retomaria o cargo, mais tarde, entre 1999 e 2004.

Nas suas palavras, o que se passou acabou por ter um certo efeito negativo em si, influenciando a ida para os EUA. Começa a contar essa etapa quando lhe pergunto se é uma espécie de Cristiano Ronaldo da Oftalmologia. Talvez, até pelo período temporal, mais um Eusébio. Sorri, diz que gosta do Ronaldo porque também é ‘driven’ como ele sempre foi, focado no que tem para fazer. “Fui para os EUA numa posição em que ninguém vai. Nem o Lobo Antunes, que foi como estudante e subiu à categoria de professor lá. Fui logo como professor catedrático convidado, para dirigir um serviço. Lá, estava a um nível de 'peer', como um igual aos melhores”, conta José Cunha-Vaz. É lá que acaba o que tinha começado em Londres, a identificação da barreira hemato-retiniana nas doenças da retina, uma Bola de Ouro da Oftalmologia – uma influência sobre o que se conhece atualmente acerca da retina e da forma como os medicamentos aí atuam. “Quando vinha à Europa, queriam-me de volta”. Retorna, mas regressa novamente.
José Cunha-Vaz
José Cunha-Vaz

“A tendência normal seria ter lá ficado”. Não se mostra arrependido, embora denote alguma ambiguidade. “Penso que poderia ter feito mais do que fiz se tivesse ficado nos EUA, estou convencido disso. Por outro lado, tenho uma vida simpática, as coisas conjugaram-se para poder ter o instituto de investigação [IBILI]”, contextualiza José Cunha-Vaz. Sempre que fala de Portugal e dos EUA, nota-se a forma como o país o marcou, sublimando ainda mais os seus traços de personalidade, como o rigor e a capacidade de foco. E deixa patente a ideia de uma diferença maior que o oceano que separa as duas nações. “O que me preocupa mais em Portugal é que não existem hábitos normais de trabalho. Não é um país que goste de planear as coisas, que tenha uma cultura desse tipo, e é mais difícil fazer qualquer coisa aqui que nos EUA”.

Para o antigo médico, há uma diferença cultural, para o bem e para o mal. Ressalva que os EUA são um país ótimo para quem é novo, tornando-se depois impiedoso. Portugal, esse, é distinto, mais latino. “Aqui há mais a cultura de beber uns copos, da amizade. São todos iguais, para que é que alguém se há-de diferenciar, o mediano é que é bem visto... É uma atitude completamente diferente, que me faz confusão. Sou muito mais competitivo, penso que as pessoas se diferenciam sendo melhores pela contribuição para a sociedade. Seja no que for, naquilo que tiver jeito. Se for carpinteiro é carpinteiro”.

E na Medicina, vem aí mais algum Cunha-Vaz? “Vem aí gente nova com imensa capacidade, mesmo na Oftalmologia. É uma das coisas de que me orgulho, de quando fui diretor do Serviço, ele ter crescido, ter-se tornado uma referência nacional e europeia”. Contudo, para si, o importante é que “a pessoa tem, de alguma maneira, de sentir aquilo que o satisfaz e que gosta de fazer, que o faz acordar de manhã bem e contente para ir trabalhar. Esse é que é o grande desafio da vida”. Relembra o pai, como um exemplo. “Não é preciso ter publicações... Ele era um esplêndido cirurgião, diferente de mim. Teve quatro ou cinco publicações, eu tenho 500. O que é que isso significa? Absolutamente nada. São coisas diferentes”, sublinha.

José Cunha-Vaz

Costuma-se dizer que a idade é um posto. É-o, igualmente, para Cunha-Vaz. Mas não é, nunca, impedimento. “Continuo a levantar-me a meio da noite para escrever notas. Dantes costumava dizer que as ideias que tinha eram sempre num banho quente à noite. Agora, começa a ser às três da manhã, deitado na cama. Acordo de repente com uma ideia”. Não deixou a investigação e a publicação de artigos científicos, e os últimos anos têm sido prolíficos. “Também é mau porque ainda continuo demasiado focado. A minha mulher queixa-se que eu devia ter mais tempo para a família e menos preocupações”, reconhece, apesar de também poder ser isso que lhe permite manter a jovialidade.


Pergunto-lhe o que ainda lhe falta fazer a nível profissional. A resposta tem o seu quê de inesperado. “A primeira coisa que me ocorreu foi preparar-me para a morte [risos]”. Returco se já pensou nisso. “Procuro não pensar, é demasiado. Penso que não ganho nada com isso, sou pragmático e prático”, devolve-me. “Neste momento estou numa fase de transição, gostaria de deixar a casa arrumada. Deixar a instituição a que dediquei 25 anos da minha vida bem orientada, com a certeza que as pessoas podem continuar a trabalhar aqui”. Quer continuar a investigar, a ter ideias. A acordar às três da manhã, mesmo que Teresa Maria se queixe que continua demasiado ligado. ‘Driven’. 

por Paulo Sérgio Santos
Fotografias gentilmente cedidas por José Cunha-Vaz