Uma nova terapia
para o glaucoma

Isto é FMUC

No passado dia 10 de maio, decorreu, no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, a cerimónia de entrega das Medalhas de Honra L’Oréal para as Mulheres na Ciência, uma iniciativa da empresa de cosmética L’Oréal Portugal, financiadora das bolsas, da Comissão Nacional da Unesco e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que designa o júri avaliador das candidaturas.

Raquel Boia, investigadora da VectorB2B no Instituto de Investigação Clínica e Biomédica da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (iCBR-FMUC) foi uma das quatro investigadoras distinguidas com um prémio individual no valor de 15 mil euros para a sua investigação científica.


A candidatura aos prémios

O projeto que Raquel Boia candidatou às Medalhas de Honra L’Oréal para as Mulheres na Ciência pretende estudar uma terapia que devolva a visão a doentes com glaucoma, e surgiu como o passo natural a dar no seguimento do seu projeto de doutoramento, que concluiu em 2021.

“Considero que, depois do doutoramento, faz todo o sentido começar a delinear uma estratégia de investigação que se adeque ao nosso percurso, criando, assim, o nosso ‘nicho’, por assim dizer”, adianta. “Desde que me doutorei que tenho feito candidaturas a diversas calls. Se o ‘não’ é garantido, porque não tentar?”, observa.

A candidatura às Medalhas de Honra L’Oréal para as Mulheres na Ciência terminou em setembro de 2022. “Por isso, aproveitei o período das férias de verão para recarregar energias e, quando regressei ao trabalho, escrevi o projeto que candidatei a este prémio”, conta.

“Aqui, tenho de salientar o importante papel que a Raquel Santiago, minha orientadora de mestrado e de doutoramento, teve e tem, não apenas neste processo, mas em outros do género. É ela que discute comigo as ideias que apresento nas calls, que me incentiva e que me motiva. É a principal força motriz das candidaturas que tenho feito”, destaca.


A ideia para o projeto

Intitulado A new therapeutic approach to leverage vision restauration in glaucoma [Uma nova abordagem terapêutica para alavancar a restauração da visão no glaucoma], o projeto de Raquel Boia foca-se no glaucoma, uma das principais causas de perda de visão e cegueira irreversível.

“Há mais de 10 anos que integrei o grupo de investigação do iCBR-FMUC ‘Retinal Dysfunction and Neuroinflammation Lab', liderado pelo Doutor Francisco Ambrósio, e desde então tenho trabalhado em glaucoma, uma doença que não tem cura”, refere.

O glaucoma caracteriza-se pela perda substancial de células ganglionares da retina e por danos no nervo ótico. A investigadora da VectorB2B/iCBR-FMUC explica que, atualmente, as terapias que existem para o glaucoma estão focadas num fator de risco – a pressão intraocular elevada – e não nas células ganglionares da retina e na sua perda. “Assim, as terapias existentes visam a diminuição da pressão intraocular, o que faz com que a perda de visão seja apenas atrasada, e não evitada ou parada”, adianta.

“O nosso trabalho de investigação tem sido, precisamente, o de tentar perceber o que faz com que as células ganglionares da retina morram, e o que podemos fazer para que não exista esta perda, isto é, para que estas células sejam protegidas”, indica.


Raquel Boia explica que são as células ganglionares da retina que têm a importante função de levar a informação do olho para o cérebro através do nervo ótico. “Os axónios destas células são uns prolongamentos que formam a estrutura que é o nervo ótico. Essa estrutura é como se fosse uma autoestrada que cria a ligação entre a retina e o cérebro”, faz saber. Ao existir uma perda substancial destas células, o nervo ótico fica danificado, causando perda de visão e cegueira.

Foi neste âmbito que a ideia para o projeto surgiu. “Se, no meu doutoramento, o foco consistiu em proteger as células ganglionares da retina do dano, este projeto surge, tal como referia, como o passo seguinte. Ou seja, protegendo estas células do dano, como consigo restaurar esta ponte entre a retina e o cérebro? Como consigo voltar a ter os axónios perdidos destas células? Como é que consigo repará-los para, em última instância, devolver a visão às pessoas?”, observa.

Durante a sua investigação no doutoramento, Raquel Boia identificou que a ativação de um recetor presente nas células ganglionares da retina – o recetor A3 de adenosina –protege estas células do dano. “O que nós não sabemos é se este recetor pode ter também um papel importante na reparação da ligação entre a retina e o cérebro. É este o foco do projeto”, evidencia.

“Como a retina está na parte posterior do olho, uma das formas mais eficazes de fazer a entrega de fármacos direcionados para as células ganglionares da retina é através de injeções intravítreas. O problema dessas injeções são os inúmeros efeitos secundários e adversos que causam”, alerta.

Por isso, no seu doutoramento, Raquel Boia desenvolveu, em colaboração com o Departamento de Engenharia Química da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, um implante intraocular para a libertação de fármacos na retina.

“Deste modo, com uma única injeção conseguimos ter a libertação continuada no tempo do fármaco, o que não aconteceria com uma injeção intravítrea. Com uma injeção intravítrea, acaba por haver apenas um pico de libertação do fármaco e, por isso, para mantermos as doses terapêuticas do fármaco, teríamos de recorrer a múltiplas injeções, aumentando os efeitos secundários e adversos”, observa.

Este implante intraocular pretende, assim, evitar os referidos efeitos adversos na administração do fármaco que ativa o recetor A3 de adenosina para proteger as células ganglionares da retina. “O que agora pretendemos fazer com o desenvolvimento deste projeto é promover a regeneração do nervo ótico”, sintetiza.


O telefonema inesperado

Quando questionada acerca da reação que teve ao saber que tinha sido distinguida com uma Medalha de Honra, a investigadora da VectorB2B/iCBR-FMUC responde prontamente que não contava ser uma das vencedoras.

“Soube da atribuição do prémio por telefone, quando me telefonaram em dezembro do ano passado. É certo que, cerca de um mês antes, tinham-me sido solicitados mais documentos relativamente à candidatura… Ou seja, eu até tinha mais ou menos a ideia de que o meu projeto pudesse ter passado mais à frente no processo de avaliação, mas longe de mim imaginar que ia acabar por ser um dos selecionados”, admite.

Por isso, Raquel Boia recorda-se “muito pouco” do que lhe foi dito no telefonema em que lhe comunicaram a atribuição do prémio. “Para já, foi uma sorte ter atendido o telefonema, porque ando sempre distraída, sem ligar muito ao telemóvel!”, revela.

“Mas lá atendi… Só me lembro de me terem dito que estavam a falar por parte da L’Oréal e de eu ter referido que esperava que fossem boas notícias… E eram! Fiquei muito contente. Depois desse telefonema, ainda demorámos um pouco até receber o e-mail oficial que dava conta da atribuição do prémio. Até receber esse e-mail, às vezes dava por mim a pensar se tinha sonhado com aquele telefonema!”, confidencia.


A cerimónia de entrega dos prémios

A cerimónia de entrega das Medalhas de Honra L’Oréal para as Mulheres na Ciência teve lugar, como já referido, no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, no passado dia 10 de maio. “A cerimónia foi muito gira! Adorei ter lá estado, até porque tive a oportunidade de conhecer pessoas que, até então, apenas conhecia de nome, como, por exemplo o Professor Alexandre Quintanilha, presidente do júri científico que selecionou os quatro projetos vencedores destas Medalhas”, indica Raquel Boia.

“Adorei a cerimónia tirando, obviamente, todo o stress de lá estar!”, graceja. “Sinto-me sempre um peixe fora de água nessas situações, mas a verdade é que correu tudo bem e a experiência foi muito boa”, complementa.


O percurso académico e científico

A atribuição das Medalhas de Honra L’Oréal para as Mulheres na Ciência tem por base a avaliação de um projeto científico apresentado pelas candidatas, mas o percurso destas e a demonstração dos principais contributos para a área científica que investigam são igualmente importantes no processo de avaliação.

O percurso académico e científico de Raquel Boia começou a ganhar a forma que tem hoje aquando da licenciatura em Bioquímica. Mas, nessa altura, a investigadora da VectorB2B/iCBR-FMUC ainda não sabia que o seu futuro iria passar pela investigação, tendo inclusive feito um estágio de verão em Análises Clínicas, área pela qual nutria algum interesse durante a licenciatura.

Apesar de ter percebido, nesse estágio, que, afinal, o trabalho não correspondia exatamente àquilo que imaginava e ambicionava, considera que foi extremamente importante tê-lo feito. “Ainda bem que fiz esse estágio, mesmo que seja para ter percebido que não era o que queria para o meu futuro”, garante. “Sempre que dou palestras de comunicação de ciência a crianças e adolescentes, refiro sempre isso mesmo: se acham que gostam de uma determinada área, vão experimentá-la assim que tenham oportunidade, porque isso é fundamental”, indica.

“[A investigação] nunca esteve nos meus planos… Nem sei dar uma justificação para isso, apenas achava que não era para mim”, conta. Foi quando teve de decidir onde iria desenvolver a investigação do seu mestrado, também em Bioquímica, que o interesse e o gosto pela investigação surgiram.

“Fiz alguma pesquisa e interessei-me, desde logo, pelo percurso e pelo trabalho da Raquel Santiago, que contactei por e-mail para saber se podia desenvolver aqui no iCBR-FMUC a dissertação de mestrado, tendo-a como orientadora. Fui aceite, e foi assim que entrei para o mundo da investigação”, revela.

Findo o mestrado, Raquel Boia prosseguiu para o doutoramento em Envelhecimento e Doenças Crónicas, feito, igualmente, no iCBR-FMUC. “O programa doutoral que fiz já não existe. Era um programa interuniversitário, que envolvia três Faculdades de Medicina de três universidades distintas: a Universidade do Minho, a Universidade Nova de Lisboa e a Universidade de Coimbra”, explica.

“Quando terminei o doutoramento, surgiu a possibilidade de entrar num laboratório colaborativo do qual a Universidade de Coimbra faz parte, que é a empresa de investigação em Biotecnologia VectorB2B, que tem como uma das principais áreas a Oftalmologia”, indica. “Por isso, neste momento sou investigadora da VectorB2B alocada ao iCBR-FMUC, desenvolvendo o meu trabalho na área das Ciências da Visão”, esclarece.

Raquel Boia revela que aquilo que mais a motiva no seu trabalho é o bom ambiente entre colegas e o facto de todos os dias serem diferentes e desafiantes, não havendo lugar para a monotonia. “Apesar de, na época em que fiz a licenciatura, achar que era algo que não queria e que não era para mim, hoje sei que a investigação é aquilo que gosto de fazer, e que me vejo a continuar a fazer no futuro”, assegura.

“Acho mesmo que é o facto de todos os dias serem um desafio que faz com que muitos investigadores tenham, realmente, um grande ‘amor à camisola’, continuando a trabalhar mesmo que, por vezes, o façam em condições precárias. E é mesmo a precariedade aquilo que mais me assusta no meu trabalho… Saber que, por muito que tenhamos um bom percurso, com alguns marcos importantes pelo caminho, isso não nos dá uma posição melhor no futuro”, observa.


Ser uma pessoa na ciência

Sendo as Medalhas de Honra L’Oréal um prémio atribuído a Mulheres na Ciência, uma das questões que, frequentemente, têm feito a Raquel Boia desde que foi distinguida com este prémio é se existem mais dificuldades para as mulheres do que para os homens nesta área.

Embora comente que, apesar de existirem mais mulheres do que homens com o doutoramento, são estes que mais progridem na carreira, chegando a mais cargos de topo, a investigadora da VectorB2B/iCBR-FMUC considera que as dificuldades decorrentes da investigação científica “são iguais tanto para homens quanto para mulheres”.

Por isso, este prémio tem, naturalmente, um significado especial para Raquel Boia, mais pelo reconhecimento do seu trabalho e pela possibilidade que acarreta, a de testar a sua ideia, do que pelo facto de ser mulher. “Qualquer pessoa ficaria feliz com a atribuição deste prémio”, constata.

“E eu, enquanto pessoa na Ciência, fico mesmo muito contente por ver reconhecido o meu trabalho e por ter a oportunidade de, com este prémio, começar a pôr em prática um projeto em que acredito”, salienta.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Raquel Boia