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Francisco do Vale

A 22 de setembro de 2022 – 31 anos, sete meses e 26 dias após a inauguração das instalações da Medicina Dentária da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), partilhadas, desde sempre, com o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) – foi assinado um protocolo formal que estabelece os termos de cooperação entre as duas instituições. Para Francisco do Vale, este foi um “momento histórico”.

Em traços gerais, em que consiste este protocolo assinado entre a Medicina Dentária da FMUC e o CHUC?
Este protocolo é a consagração efetiva de um acordo tácito que existia entre a FMUC e o CHUC. É histórico precisamente por isso: ao fim de mais de 31 anos, desconstruiu-se esse mito da impossibilidade da celebração deste protocolo que, no fundo, o que veio fazer foi reforçar os laços de cooperação entre estas duas instituições, para que possam ser ultrapassados os vários e perpétuos constrangimentos sentidos desde a criação da licenciatura em Medicina Dentária e do Mestrado Integrado em Medicina Dentária [MIMD], e para que a Medicina Dentária de Coimbra prossiga na busca da sabedoria, da boa reputação e do mérito no desempenho dessa atividade, com o fim último de bem servir os nossos alunos, os nossos doentes, a nossa comunidade e a sociedade.

Assim, e em traços gerais, o protocolo visa regular as condições da cedência de espaço do CHUC, nas instalações hospitalares do Bloco de Celas afetas ao Serviço de Estomatologia, para exercício de atividades de ensino na sua vertente teórica, prática e clínica na Área de Medicina Dentária [AMD] pela FMUC, bem como regular a contrapartida a usufruir pelo CHUC, dado que a vertente clínica se orienta para a prática de atos clínicos de Medicina Dentária por parte dos docentes-médicos dentistas da FMUC em benefício de doentes do CHUC.

Este protocolo formalizou também outros aspetos muitos importantes, como a possibilidade de o docente-médico dentista ter acesso pleno ao registo clínico do doente e de poder fazer quer a referenciação interna para outras especialidades, quer a prescrição de meios complementares de diagnóstico e de medicamentos, algo que, até então, não era possível.

Depois, não me restam quaisquer dúvidas de que será o impulso decisivo para o desenvolvimento e modernização da Área da Medicina Dentária [AMD] da FMUC e que permitirá também avançar com a reestruturação do edifício da AMD. Falamos de um edifício antigo e desgastado, com 40 anos de existência, onde nunca se fez nenhuma intervenção significativa e que apresenta algumas limitações, também em termos de espaço e equipamentos. Essas limitações não têm permitido, por exemplo, aumentar o numerus clausus do MIMD e das pós-graduações, ou despertar maior interesse de estudantes internacionais nos programas de mobilidade.

E como tem corrido a aplicação e o cumprimento do protocolo? Tem correspondido às expetativas e às necessidades previamente identificadas?
Sim, sem dúvida que tem correspondido às expetativas, fruto da rapidez de atuação da FMUC e do Conselho de Administração do CHUC: o protocolo foi celebrado em finais de setembro e no início de 2023 já estava criado o perfil de utilizador do sistema informático SClínico para os docentes-médicos dentistas da AMD.

Por outro lado, quer este protocolo, quer as outras medidas que foram implementadas nos últimos três anos – como a informatização integral das clínicas da AMD, o acordo firmado com o Instituto Português de Oncologia [IPO], que veio permitir aos nossos estudantes do 2º Ciclo acompanhar a atividade clínica no IPOCFG, ou o lançamento do concurso internacional para aquisição de novos equipamentos para o laboratório pré-clínico – têm sido determinantes no bem estar, na serenidade, e na estabilidade desejável e imprescindível às inegáveis melhorias que recentemente se verificaram no nosso ensino, na nossa investigação e na prestação de serviços médico-dentários com a qualidade que se exige.

Em junho de 2020, quando falou à VoiceMED sobre o MIMD da FMUC e também sobre o funcionamento da AMD, referiu duas pós-graduações a serem criadas e implementadas futuramente, em Periodontologia e em Odontopediatria. Qual o ponto da situação da implementação destas ofertas formativas?
Estas pós-graduações ainda não foram implementadas, por motivos alheios à Coordenação da AMD e da Direção da FMUC, mas falamos de um processo que continua a decorrer e, inclusivamente, haverá uma reunião em breve nesse sentido, para que possam ser implementadas já no ano letivo de 2024/2025.

Também nesta vertente, dos estudos avançados, o caminho a seguir terá de continuar a ser feito sempre com visão, paixão e convicção para que seja possível reforçar a oferta formativa da FMUC, através de pós-graduações de excelência e reconhecidas internacionalmente, seguindo o exemplo da nossa pós-graduação em Ortodontia, que recentemente passou a integrar a elite das pós-graduações europeias ao tornar-se Full Member da NEBEOP [Network Erasmus Based European Orthodontic Progammes].

Ainda no âmbito das ofertas formativas, temos mais uma novidade face à entrevista para a VoiceMED de há três anos, com a criação de um novo mestrado.


O Mestrado em Novas Tecnologias para a Transição Digital em Medicina Dentária, que a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) acreditou no passado mês de janeiro.
Exato. Trata-se de um mestrado curto ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência – Programas Impulso (Jovens STEAM/Adultos), que é inovador e único no contexto universitário português, cujo programa vai ao encontro das necessidades de mercado em termos de competências digitais em Medicina Dentária.

Falamos de um mestrado profissionalizante, cujo plano de estudos tem a duração de apenas um ano. O programa do curso inclui módulos das áreas básicas, laboratoriais e clínicas da Medicina Dentária, proporcionando uma abordagem transversal, mas com grande aplicabilidade prática.

A oferta de módulos de cada especialidade permite aprofundar os conhecimentos de acordo com as áreas de interesse e atuação dos formandos. Para além da abordagem teórica, serão enfatizados os exemplos pré-clínicos, laboratoriais e clínicos, possibilitando aos formandos a aquisição de competências práticas inovadoras.

No plano de estudos, metade destina-se ao cumprimento da lecionação, ou seja, da parte curricular, e a outra metade à elaboração de uma dissertação.


A Comissão de Avaliação Externa (CAE) da A3ES fez também recentemente a recomendação para a acreditação do MIMD. Pode falar-nos um pouco acerca deste processo de acreditação?
É verdade. Tivemos, há pouco tempo, a recomendação favorável da CAE da A3ES, com a acreditação do MIMD de forma incondicional. Foi uma excelente notícia, mas também demonstrativa de que sabemos funcionar como uma comunidade colaborativa, onde é possível trabalhar com êxito em projetos e objetivos comuns.

Quando assumi as funções de coordenador, o MIMD estava numa situação um pouco confrangedora, com o seu ciclo de estudos acreditado de forma condicional desde há três anos. Depois, através do empenho de toda a comunidade académica, foi possível ultrapassar esse óbice, melhorando a produtividade científica de modo substancial e reforçando a qualidade de publicações na área do ciclo de estudos.

No último quadriénio, e comparando com igual período anterior, evidenciou-se uma notável melhoria na produção científica do MIMD da FMUC, verificada quer pela quantidade de artigos científicos publicados em revistas internacionais com revisão por pares, quer pela qualidade das revistas selecionadas para publicação, situando-se, na sua larga maioria, nos quartis mais elevados dos diferentes rankings.

Numa breve análise à síntese numérica de todas as publicações do conjunto dos docentes do MIMD da FMUC no último quadriénio, e comparando-a com o período homólogo anterior, verificou-se um aumento de 350%. Também por categoria, constata-se, por exemplo, que número de artigos em revistas internacionais com revisão por pares publicados foi 4,7 vezes superior, todos com indexação Scopus/WOS/SJR e a grande maioria situada em Q1 ou Q2 da respetiva área científica.

Há três anos, quando deu a entrevista para a VoiceMED, estávamos precisamente a viver os primeiros meses de pandemia. Por esse motivo, tinham sido feitos alguns ajustes ao ensino da Medicina Dentária, por todos os cuidados necessários para evitar possíveis contágios. Houve alguma mudança que tenha sido tomada nessa altura e que ainda hoje vigore no ensino teórico e prático da Medicina Dentária?
Sim, algumas das medidas adotadas durante a pandemia ainda perduram parcialmente, essencialmente aquelas relacionadas com a organização e funcionamento da AMD e com a biossegurança.

Além do mais, continuamos a fazer um bom aproveitamento quer das ferramentas digitais que foram desenvolvidas pela UC, quer dos equipamentos que foram instalados durante esse período – como a instalação de sistemas de pressurização nos blocos operatórios da AMD –, e que constituiu um assinalável passo adicional da AMD em prol da saúde pública e da segurança dos seus docentes, funcionários e estudantes.


Na sua opinião, de que tipo de apoio necessita a AMD para melhor ensino e investigação?
Primeiro devem ser apoiadas toda as iniciativas que foram criadas e desenvolvidas dentro da AMD com esse desígnio, como o LACBE – MDP [Laboratório de Ciências Baseadas na Evidência e Medicina Dentária de Precisão], o CIROS [Center for Innovation and Research in Oral Sciences] e o Mestrado em Novas Tecnologias para a Transição Digital em Medicina Dentária.

Depois, promover a maior integração de vários docentes do MIMD nos outros centros de investigação de referência associados à FMUC, nomeadamente no iCBR-FMUC [Instituto de Investigação Clínica e Biomédica], no CIMAGO [Centro de Investigação em Meio Ambiente, Genética e Oncobiologia], no CIBB [Centro de Inovação em Biomedicina e Biotecnologia] e no CACC [Centro Académico Clínico de Coimbra].

Por último, suscitar o interesse dos seus alunos, através de práticas educativas focadas também na investigação científica e integrando precocemente o aluno do MIMD como elemento ativo na cultura de investigação da FMUC.

Por fim, realizar a reforma curricular do MIMD, com a introdução de novos conteúdos, a semestralização e a melhor organização dos anos clínicos, para que possam funcionar como um modelo mais integrado, focado no doente e não no cumprimentos dos atos clínicos isolados, e também a mudança de instalações do ano propedêutico do MIMD para a futura Sub-Unidade 2+4, que irá ser edificada no Polo III, para que todo o 1º Ciclo do MIMD funcione na FMUC, deixando a AMD para o 2º Ciclo e para as pós-graduações.

Penso que só desta forma poderemos projetar a Medicina Dentária de Coimbra no futuro, para que continue a ser de excelência e um dos cursos mais procurados – e com a média de ingresso mais elevada da UC –, e para que seja possível reforçar a sua oferta formativa também através de pós-graduações de excelência e reconhecidas internacionalmente, seguindo o exemplo, como já referi, da nossa pós-graduação de Ortodontia, que recentemente passou a integrar a elite das pós-graduações europeias.


E em que fase se encontra esta reforma curricular do MIMD que referiu?
Enquanto resolvíamos os principais constrangimentos da AMD, e de longa data – com a celebração do protocolo com o CHUC, a informatização integral das clínicas do MIMD, reclamada há mais de 20 anos, ou o lançamento do concurso internacional para a aquisição dos equipamentos do pré-clínico, com uma verba de cerca de 800 mil euros e que estará pronta no próximo ano letivo, entre outros – começámos a reunir com as outras instituições portuguesas com ensino universitário em Medicina Dentária, dada a impossibilidade de realizar uma reforma curricular que incluísse o aumento de dois semestres do MIMD sem um consenso alargado de todas as Escolas Médico-Dentárias.

E foi com esse objetivo que, a 22 de janeiro de 2022 – pela primeira vez na história da Medicina Dentária portuguesa –, as sete instituições universitárias com MIMD reuniram. Nessa reunião, foram discutidos temas referentes à qualidade do ensino e reestruturação curricular do Mestrado Integrado em Medicina Dentária e ao ensino pós-graduado.

Desde então, temos reunido regularmente e já com resultados práticos bastante positivos, como a assinatura de um memorando de entendimento para definir o perfil do graduado como Mestre em Medicina Dentária em Portugal.

Claro que o aumento de dois semestres, ou a sua impossibilidade, não deve ser impeditiva da reforma curricular do MIMD, pois, como já referi, a introdução de novos conteúdos e de novas práticas educativas, a semestralização e a melhor organização dos anos clínicos, são fundamentais para a melhoria da qualidade do ensino ministrado, quer para se manter de acordo com os padrões regulatórios da A3ES, quer para acompanhar os melhores exemplos europeus e internacionais de educação em Medicina Dentária.

A FMUC é a única Escola Médica do País que integra a Medicina Dentária na sua oferta curricular. No seu entender, que vantagens tem essa integração?
Uma das principais vantagens, e que nos tem diferenciado no panorama nacional, é estreita relação da FMUC com o CHUC, que faz com que o MIMD seja o único curso de Medicina Dentária no País a receber doentes do Serviço Nacional de Saúde [SNS], estando assim os seus alunos envolvidos num amplo projeto de serviços à comunidade, através da sua prática clínica e de investigação científica, não só no domínio do pré-graduado, mas também no âmbito das pós-graduações.

Depois, para além da prática clínica, também nas vertentes pedagógica e de investigação são muitos os benefícios, como a maior facilidade em estabelecer protocolos com outras entidades de grande relevo, como o IPOFGM, ou até a capacidade de os investigadores do MIMD integrarem os centros de excelência que existem na Faculdade de uma forma mais natural. Também no ensino do 1º Ciclo existe uma clara vantagem, pois dos cerca de 100 docentes que lecionam no MIMD, muitos são de outras áreas da FMUC, que não a Medicina Dentária, e maioritariamente a lecionar as ciências básicas de medicina. Desta forma, podemos ter também aqui os docentes que estão mais bem preparados e que são altamente especializados nessas unidades curriculares.

E como tem evoluído a Saúde Oral em Portugal, tanto nos comportamentos das pessoas quanto nos serviços que lhes são prestados?
Tem evoluído favoravelmente, devendo-se, sobretudo, ao empenho das universidades e de outras instituições, como a Ordem dos Médicos Dentistas [OMD], no sentido de promoverem a literacia e perceção para a saúde oral e para a sua importância na saúde sistémica.

Mas, infelizmente, ainda há muito a fazer! Os indicadores de saúde oral em Portugal encontram-se abaixo da média europeia, com a existência de necessidades de cuidados de saúde oral de vária ordem que não estão satisfeitas, principalmente devido à barreira financeira, que impede o acesso a melhor saúde oral das famílias com rendimentos mais baixos.

No último Barómetro da Saúde Oral da OMD, de 2022, são apontados dados que nos devem indignar, como o facto de apenas 32,3% dos portugueses terem a dentição completa, ou de, entre os menores de seis anos de idade, 65,2% nunca terem visitado o médico dentista.

São vários os efeitos negativos que esta ausência de cuidados em saúde oral pode provocar e que vão desde os problemas psicológicos e de auto-estima relacionados com a estética da própria pessoa, a situações graves e irrevogáveis provocadas pela falta de diagnóstico precoce de lesões orais malignas.

Creio que o caminho certo para transformar o quadro atual no nosso país passa, inevitavelmente, pelo acesso universal à saúde oral, através do aumento da cobertura na rede de cuidados primários, com a integração dos médicos dentistas no SNS, ou seja, em centros de saúde e unidades hospitalares, e pelo reforço e melhoramento dos programas contratualizados entre o Ministério da Saúde e os consultórios privados, cujo exemplo mais conhecido é o cheque-dentista.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Francisco do Vale


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