4'33''

Miguel Castelo-Branco

Os cerca de 15 anos de trabalho dedicados ao autismo foram, recentemente, reconhecidos com a atribuição do Prémio Bial de Medicina Clínica 2022. Este prémio distinguiu o estudo “Os desafios da Neurodiversidade: um percurso na área da medicina personalizada e de investigação no autismo”, da autoria de Miguel Castelo-Branco.


Que importância tem, para si, a atribuição deste prémio?
Tem, acima de tudo, uma importância pessoal, porque eu vivo o autismo diariamente. Tenho um filho com autismo e, por isso, este prémio tem um significado muito especial.

Muito do trabalho que fiz nestes últimos 15 anos – não só na área do autismo, mas também em outras áreas, como é o caso da visão – tem procurado avaliar várias abordagens terapêuticas de neuroreabilitação, em condições clínicas para as quais até há 15 ou 20 anos não havia grande esperança.

Penso que a neuroreabilitação não tem sido devidamente acarinhada. Por vezes há um certo derrotismo e a tendência a pensar que, perante um diagnóstico como o de autismo, não há nada a fazer. Mas o facto é que existe sempre uma margem de progressão.

O que vemos, especialmente no Serviço Nacional de Saúde [SNS], é um grande investimento na área do diagnóstico e um investimento reduzido nas áreas da reabilitação e da saúde ocupacional. É preciso incutirmos mais esta ideia de que as pessoas podem, de facto, melhorar.

A par da importância pessoal, este é um prémio que me dá também uma grande responsabilidade. Tenho, neste momento, a caixa de e-mails cheia de mensagens de pais que me pedem consultas, para os filhos entrarem em projetos de investigação que tenham impacto real nas suas vidas ou para disponibilizarmos os chamados jogos sérios que desenvolvemos.

É um prémio mesmo muito especial, que me permite também continuar a acreditar que podemos sempre melhorar o nosso desempenho, a qualquer nível da nossa vida.

Sempre tive interesse na reabilitação e nas perturbações do neurodesenvolvimento. Costumam perguntar-me se foi por ter um filho com autismo que me dediquei a esta área. A verdade é que eu já tinha interesse nesta área, mas claro que ter um familiar com autismo acelerou, digamos assim, a minha vontade de saber mais e compreender melhor esta perturbação. É uma área complexa e que faz com que o meu trabalho seja um desafio, mas eu gosto de desafios.

Trabalhamos em vários projetos dos quais a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra [FMUC] faz também parte, e que envolvem áreas diversas, como a Biologia, a Pediatria, a Psicologia e Psiquiatria. Não posso deixar de agradecer à Professora Guiomar Oliveira, que dirige a Unidade de Neurodesenvolvimento do Hospital Pediátrico, porque, sem o seu apoio, nada teria sido possível, e também ao Doutor Frederico Duque e, na área da Psiquiatria e Psicologia Médica, ao Professor António Macedo e ao Doutor Nuno Madeira, e aos vários doutorandos nesta área, como por exemplo a Susana Mouga, a Inês Bernardino, a Sofia Morais e a Ana Araújo.

Um dos importantes projetos europeus do qual fazemos parte é o AIMS-2-TRIALS - IMI Innovative Medicines Initiative, que tem cerca de 110 milhões de euros de financiamento e envolve 55 instituições, com largo co-financiamento de empresas farmacêuticas. Com a participação da FMUC e do CHUC [Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra], temos aqui uma linha de investigação que tem o espírito do CACC [Centro Académico Clínico de Coimbra].


O trabalho que candidatou à Bial aborda a neurodiversidade, que caracteriza o autismo. Em traços gerais, em que consiste esta perturbação e quais os meios de diagnóstico e tratamento atuais?
A neurodiversidade é um valor, mas para quem é cientista, é também uma armadilha. Vivemos de sucessos e insucessos, e a neurodiversidade é uma das causas de insucesso. Isto porque os revisores científicos gostam de amostras homogéneas, algo que a neurodiversidade, que existe no autismo, não permite.

Mas então, o que é o autismo? É uma perturbação que se caracteriza, essencialmente, por dificuldades de comunicação, por dificuldades de interação social e pelo gosto pelas rotinas, que originam comportamentos repetitivos e, por vezes, hiperfoco, que pode até ter impacto positivo no desempenho, embora o défice de atenção também seja comum no autismo.

O autismo mais clássico, que é também mais limitador, tem uma forte componente genética e está, por norma, associado a comorbilidades. Depois, há o chamado autismo de alto funcionamento, usado para caracterizar as pessoas com autismo que apresentam sinais mais leves desta perturbação, sendo um dos mais evidentes a ansiedade, o que faz com que o diagnóstico não seja fácil.


Falamos de um diagnóstico a nível molecular, ou de um diagnóstico apenas comportamental?
Embora tenhamos já algumas técnicas de neuroimagem, o diagnóstico de autismo é sobretudo realizado através da observação clínica e de questionários psicológicos. Ou seja, faltam marcadores biológicos.

É muito difícil fazer o diagnóstico até aos três anos de idade, na altura em que as crianças entram numa fase de transição no seu neurodesenvolvimento, porque os sintomas que apresentam até aí podem passar despercebidos à família.

O autismo manifesta-se pela falta de contacto ocular, pela falta de interesse pelo interesse dos outros e pelo foco excessivo em objetos e não em pessoas, por exemplo. Mas, numa criança pequena, se os pais não tiverem outro filho com quem possam fazer algum tipo de comparação no que respeita ao desenvolvimento e a determinados comportamentos, pode ser realmente difícil que se apercebam destes sintomas.

Além disso, o autismo é um espetro, e há pessoas que apresentam sintomas mais evidentes do que outras. Nalgumas pessoas, manifesta-se apenas através de um estilo cognitivo, com o qual elas próprias conseguem lidar, e que conseguem superar.

É esta a neurodiversidade, termo cunhado pela socióloga Judy Singer, das pessoas com autismo: todas são iguais, mas todas são diferentes. A neurodiversidade manifesta-se de muitas formas, e traz consigo a ideia de que não se deve falar em doença quando falamos de autismo, mas sim de uma dificuldade num mundo feito para os neurotípicos.

Há também uma característica do autismo que, atualmente, não faz parte dos critérios principais de diagnóstico, mas que estamos a tentar avaliar, por ser objetivável, que é a hipersensibilidade sensorial ou, por vezes, o oposto, a hiposensibilidade.

Essa é uma hipótese que eu gostava de estudar no futuro. Penso que não se trata propriamente de um problema sensorial, mas de alteração dos mecanismos de amplificação atencional. É como se a pessoa com autismo amplificasse a informação sensorial a ponto de esta se tornar disruptiva e gerar muita perturbação relativamente a determinados sons e estímulos.

O autismo tem várias manifestações e é gerido de diferentes formas. Por isso, existe uma discussão em torno da efetiva necessidade de existir um diagnóstico de alguns casos com sintomas mais ligeiros, que não comprometem o dia-a-dia das pessoas com esta perturbação.

Sinto que toda a investigação que aqui fazemos, para além de desafiante, é uma missão, e tenho visto com muito agrado o interesse pelo autismo de outros investigadores da Universidade de Coimbra, de áreas científicas diversas e de outros Institutos.


Celebrou-se no passado dia 2 de abril o Dia Mundial da Consciencialização do Autismo, data que a Organização das Nações Unidas (ONU) começou a assinalar a partir de 2007. Na sua opinião, ainda existe muita desinformação acerca deste transtorno do neurodesenvolvimento?
Sem dúvida, a começar pelo facto do termo “autista” ser utilizado recorrentemente como forma de ofender alguém, até por políticos. Temos de pensar que há pessoas que sofrem com esse estigma.


Nesse caso, que papel considera que os investigadores devem ter no combate a possíveis mitos e desinformações? Ou seja, para além da investigação científica, acha que deve fazer parte das funções de um cientista a comunicação de ciência e a promoção da literacia científica?
Claro, claro que sim. Mas, como bem sabemos, a comunicação de ciência não tem sido uma prioridade de investimento, e a dimensão social da investigação é importantíssima.

Sim, enquanto cientistas, somos pagos para fazer investigação, mas temos também uma responsabilidade social. A vida de um investigador não pode ser só investigar e publicar artigos.

Acredito que esta missão social é necessária e relevante. Isso exige um esforço e um compromisso da nossa parte, e é algo que temos tentado fazer, embora considere que a própria Universidade também poderá fazer um esforço maior no sentido de organizar melhor esta vertente.

Que avaliação faz do panorama da investigação científica a nível nacional? Como é ser investigador no País?
Não é fácil! Gosto de ser bastante direto, e sem estar a acusar ou a culpar alguém, o facto é que vivemos num sistema cheio de “espinhas”, e perdemos muito tempo a tirar estas “espinhas” até chegarmos ao tempo útil para fazer investigação.

Isto faz com que, por vezes, para sermos competitivos face à investigação que se faz fora de Portugal, tenhamos de trabalhar mais horas. Perdemos muito tempo com burocracia. E claro, a juntar a isto ainda temos o problema do subfinanciamento crónico.

Para se fazer investigação, tem mesmo de se gostar muito. O investigador que trabalha em Portugal tem de ser muito resiliente.


E no caso concreto de Coimbra?
Penso que aqui assistimos a um panorama de falta de massa crítica. Frequentemente, há investigadores que vêm dizer-me que gostavam de trabalhar numa determinada área, mas que não vão fazê-lo porque já existe outro investigador a trabalhar nisso.

As pessoas devem trabalhar com mais massa crítica. Ou seja, haver muita gente interessada no mesmo problema é bom, não é mau.

Acho que, em Coimbra, devemos procurar e desenvolver mais massa crítica, nem que esta esteja noutro instituto. É muito importante termos um espírito colaborativo e a iniciativa de dialogarmos mais com os outros institutos científicos, nomeadamente da Universidade.

Fechamo-nos muito nos nossos próprios institutos. Devíamos, por exemplo, fazer mais reuniões conjuntas. Temos o Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade, que poderá assumir essa missão de levar a que os institutos comuniquem melhor uns com os outros.

Tem havido já alguns esforços nesse sentido, como é o caso de as candidaturas a projetos requererem pelo menos duas unidades de investigação. Esse trabalho já é feito. Temos de aprofundá-lo.


E como vê Coimbra em termos competitivos à escala nacional?
Vejo com preocupação. Neste momento, vemos um instituto como o iMM [Instituto de Medicina Molecular], instituição da Universidade de Lisboa com sede na Faculdade de Medicina, a receber financiamento de uma Fundação para criar um instituto ainda maior.


E, ao que parece, [o iMM] não vai sozinho. Como ex-aluno do programa de doutoramento do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), como vê a possível fusão deste instituto com o iMM?
Uma fusão não leva necessariamente a uma sinergia. Assistimos a isso aquando da fusão de duas universidades de Lisboa [Universidade de Lisboa e Universidade Técnica de Lisboa].

Mas penso que, neste caso concreto, essa sinergia possa vir a existir. Por outro lado, tenho também pena de se perder o espírito do IGC.

Não conheço os pormenores desta possível fusão dos institutos e, por isso, não posso criticar algo que não conheço, a não ser que considero que, deste modo, perdemos diversidade. E eu não sei se, para o País, é bom haver uma única instituição desta dimensão. Não sei se um instituto extraordinário é suficiente para representar o País.

Existe esta lógica centralista de que Portugal é Lisboa e em menor escala o Porto, e de que o resto é paisagem. O País não pode ser só uma capital, e nós não podemos ter apenas uma capital científica e não ter mais nada.


Nesse sentido, como pode Coimbra ser mais atrativa e competitiva?
Puxando a brasa à minha sardinha, há uma área em que nos destacamos, que é nos estudos in vivo e em particular usando a imagem. Mas diria que Coimbra vai precisar de definir nichos, e acredito que, nesse âmbito, temos uma real possibilidade de sermos atrativos e competitivos na área da investigação translacional.

Coimbra tem ainda muito potencial para explorar, inclusive do ponto de vista cultural e urbanístico. Esta cidade é um tesouro.


Coordena o CIBIT, o Centro de Imagem Biomédica e Investigação Translacional, criado em 2018. O que esteve na génese da criação deste centro?
O CIBIT nasce por ser importante haver uma unidade de investigação que representasse a FMUC, mas que pudesse, igualmente, estar ligada a outras unidades orgânicas.

Sendo sincero, o CIBIT teve um “nascimento” que não foi confortável nem consensual, por várias razões. Mas diria que, embora muita gente não concorde com essas razões, a criação do CIBIT foi positiva.

Este centro representa a FMUC, o ICNAS [Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde] e representa, sobretudo, a Universidade de Coimbra. Nós temos aqui engenheiros, psicólogos, bioquímicos, farmacêuticos e médicos. O CIBIT conseguiu isso.

Sei que há muitas pessoas que não concordam com a formação do CIBIT, mas devemos tentar ver as coisas pela positiva. O CIBIT representa várias unidades orgânicas, é indiscutível, e é uma estrutura muito importante para a FMUC.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias de Milene Santos e Rui Oliveira


Voltar à newsletter #45