Do curso
de Medicina 

Quem corre por gosto não cansa

Dizem que quem corre por gosto não cansa. E parece que quem nada, pedala ou faz cirurgia também não. Pelo menos, é o que acontece com Júlio Leite. A par da extensa atividade académica e clínica, o cirurgião sempre encontrou tempo para um dos seus hobbies preferidos: a prática desportiva. “O outro é a leitura de revistas da minha especialidade médica”, confidencia. 

Nasceu a 15 de agosto de 1948, e é o mais novo de cinco irmãos. Foi em Guimarães, cidade que o viu nascer, que fez a instrução primária e o ensino liceal. O gosto pelo desporto surgiu logo na infância. “Em criança, todos os meus tempos livres eram dedicados à prática desportiva e, claro, à brincadeira. Joguei futebol, mas também voleibol e andebol”, conta.












“Além disso, estive sempre ligado ao desporto escolar. Às quartas-feiras, costumava haver jogo de futebol com equipas de diversas escolas da região. Lembro-me, por exemplo, dos jogos – e da rivalidade – com Braga! Jogávamos futebol muitas vezes no Campo de São Mamede, perto do Castelo de Guimarães”, complementa.

A vontade de ser médico e de frequentar o curso de Medicina naquela que é conhecida por ser a Cidade dos Estudantes tiveram a forte influência do pai, médico formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC) e um dos fundadores da República dos Kágados.

No entanto, por um tempo Júlio Leite manifestou ainda interesse em seguir outro rumo profissional. “Quando era mais novo, queria ser alfaiate, porque sabia que, desse modo, poderia ter acesso a roupa nova. Em vez disso, tornei-me cirurgião… De certo modo, são profissões que partilham algumas semelhanças!”, afirma, em tom de brincadeira.

O pai era médico de família, e Júlio Leite acompanhava-o, muitas vezes, nas visitas que fazia aos doentes. “Eu esperava por ele no carro, e lembro-me também de, com frequência, estar em casa e ver a minha mãe aflita, a atender telefonemas de doentes e a procurar pelo meu pai. Não havia serviços de urgência, eram os médicos de família que tratavam das situações mais críticas”, explica, “e acredito que isso tenha criado em mim, desde cedo, uma certa curiosidade e fascínio pela profissão médica”.

Naquela altura, “eram muito frequentes os casos de tuberculose”, que o pai tentava tratar. “A minha mãe tinha um pavor enorme da doença e, por isso, tinha muitos cuidados para evitar uma infeção, como a higienização constante das mãos, até porque muitos dos doentes batiam à nossa porta. Eu achava aquilo exageradíssimo e nunca cumpria com o que ela pedia. Mas, como vemos hoje, ela é que estava certa!” conta.

Em 1966, Júlio Leite muda-se para Coimbra para ingressar em Medicina, curso que veio a terminar em 1973. Pelo caminho, colecionou boas memórias enquanto estudante universitário da FMUC, e vivenciou de perto a crise académica de 1969.

“A Praça da República, onde nos encontrávamos para conviver, era o centro da cultura e da comunicação”, indica. “Quanto à crise académica, foi um acontecimento que vivi com intensidade, e que me fez ver que, de facto, a sociedade da época era antidemocrática e a censura existia”, acrescenta.

A propósito da censura, Júlio Leite conta que, um ano antes da Revolução de 25 de abril, escreveu dois artigos que foram vetados pelo regime. “Esses artigos foram publicados apenas no ano seguinte, na Vértice, uma revista de cultura. Um dos artigos era sobre a prática social da medicina, e o outro sobre os serviços de saúde no mundo”, faz saber.

Os professores que teve ao longo do curso na FMUC também o marcaram pela positiva. “Tenho uma ótima impressão dos professores que me ensinaram, particularmente de Gouveia Monteiro, Carmona da Mota e de Armando Porto”, destaca.

Em 1973, ano em que terminou o curso, Júlio Leite foi convidado para Assistente por Antunes Azevedo, um dos professores que teve na FMUC, para lecionar Patologia e Terapêutica Médica. “Assim, fui fazendo o chamado internato geral e, em teoria, deveria enveredar por essa área médica, até que veio o 25 de abril e as contratações de Assistente diretas terminaram”, indica.


A verdade é que tive muitas dúvidas quanto a essa escolha.

Após a Revolução, “facto que, naturalmente, foi bem acolhido”, Júlio Leite começou a circular pelas diversas especialidades médicas que existiam nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), até decidir que a especialidade que queria seguir era a Cirurgia.

“A verdade é que tive muitas dúvidas quanto a essa escolha”, admite. “Mas penso que aquilo que me fez querer seguir Cirurgia foi ter verificado ficar com muitas dúvidas no diagnóstico dos doentes internados nas Enfermarias de Medicina, pois nessa altura não havia ecografias ou TAC”, recorda.

“Para além disso, o Serviço de Cirurgia, a cargo do Professor Bártholo Pereira, que foi para mim um mentor, tinha um ótimo ambiente. Ele era uma pessoa com imensas qualidades e capacidades em termos profissionais, que advinham dos estágios que tinha feito no estrangeiro”, acrescenta.

Apesar de garantir que não se arrepende da especialidade médica que escolheu seguir, Júlio Leite assume que a Cirurgia Geral já não é a primeira opção dos Internos que gostam das áreas cirúrgicas, pois “é muito exigente e numa atividade muito hierarquizada, o que leva a que, durante muito tempo, os médicos desta especialidade não sejam autónomos no ato cirúrgico”, observa.

Júlio Leite salienta, igualmente, que o facto de, em cirurgia, muitas horas de serviço decorrerem em contexto de urgência faz também com que os médicos tenham alguma dificuldade em conciliar a prática médica com a vida pessoal, especialmente em início de carreira.

“No entanto, tenho de admitir que existem outros tantos fatores, positivos, que fazem com que os cirurgiões gostem muito da sua profissão, como a capacidade que, por vezes, temos de resolver problemas graves aos doentes… A gratidão que os doentes, depois, nos demonstram, é algo que não tem preço! É um sentimento mesmo muito agradável”, garante.

Júlio Leite concluiu o Internato da especialidade em Cirurgia Geral no ano de 1983. Já como especialista, começou a dedicar-se à investigação de forma mais intensa, fazendo estágios fora de Portugal, em hospitais como o St. Mark’s, “a catedral da cirurgia colorretal", o Hammersmith, em Londres, a Mayo Clinic em Rochester, no Minnesota, e a Universidade de Washington em St. Louis, nos Estados Unidos da América.

Em 1990, terminou o doutoramento sobre o tema “Proctocolectomia reconstrutiva com bolsa ileal – estudo experimental e clínico”, e em 1995 fez as Provas de Agregação sobre “Avanços na biologia e no tratamento do cancro colo-rectal”.

“O modelo de exame nas Provas de Agregação, embora criticável em vários aspetos pedagógicos, tinha a vantagem de dar a conhecer a todo o corpo docente a qualidade da investigação produzida na nossa Faculdade”, nota.

Além das atividades clínica e académica, foi ainda presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia e da Sociedade Portuguesa de Coloproctologia.

Em 2005, tornou-se professor catedrático da FMUC. A experiência na docência foi, garante, muito enriquecedora. “Fui regente de Introdução à Medicina, inicialmente, e depois de Propedêutica Cirúrgica”, indica.

“Dediquei-me com muito gosto a ambas as unidades curriculares, embora às vezes o tempo fosse pouco para a atividade letiva, há que dizê-lo… Lembro-me de dar aula das 8 às 9 horas e de logo depois ir operar. Andava sempre um pouco a correr!”, refere.

Júlio Leite desenvolveu ainda atividade no atual Gabinete de Educação Médica da FMUC. “Gostei também muito dessa experiência. Embora não seja especialista na matéria, sou uma pessoa interessada, e por isso acho que consegui algumas contribuições positivas, tais como a promoção do ensino centrado na aquisição de competências clínicas e a avaliação da qualidade do ensino praticado através de inquéritos pedagógicos”, afirma.

No Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), Júlio Leite assumiu a direção do Serviço de Cirurgia em maio de 2017, aquando da jubilação de Castro Sousa, tendo reorganizado o Serviço em cinco Unidades: Cirurgia Hepatobilio-Pancreática, Cirurgia Colorretal, Cirurgia Esofagogástrica e Obesidade, Cirurgia Endócrina e Cirurgia Geral.

No mesmo ano, em outubro, com a jubilação de Fernando J. Oliveira, ficou também encarregue da direção do Serviço de Cirurgia B e promoveu a fusão dos dois serviços. O objetivo principal desta fusão era orientar a Cirurgia Geral no sentido da sua especialização, ideia que sempre defendeu durante várias décadas e tendo como exemplo os Hospitais em que trabalhou nos diversos estágios. “Passaram então a existir os Centros de Cirurgia especializada – Centros de Referência – com maior dimensão no nosso País e consequentemente com a responsabilidade de se situarem entre os melhores do País”, indica.


Se ainda me sinto bem, acho que faz todo o sentido continuar a minha atividade.

A Jubilação aconteceu cerca de um ano depois, em 2018. Atualmente, Júlio Leite continua a exercer atividade clínica e operatória num hospital privado de Coimbra, dedicando-se ainda ao treino de médicos, coaching, em técnicas cirúrgicas mais complexas, “tais como a abordagem transanal nas neoplasias do reto ou a exérese alargada dos órgãos pélvicos, situações que muito beneficiam com a experiência adquirida”.

Júlio Leite confessa que poder ajudar novas gerações de cirurgiões, nomeadamente nesta formação de técnicas cirúrgicas complexas, enche-o de satisfação. “É algo que gosto de fazer, que me entretém e que, acima de tudo, resulta num benefício direto para os doentes. Se ainda me sinto bem, acho que faz todo o sentido continuar a minha atividade e fazer este tipo de formação, em que posso ver as gerações mais novas de clínicos a crescer”, observa.

“Sempre que possível, vou também aos congressos internacionais mais importantes da minha especialidade médica. Felizmente, mantenho as minhas capacidades físicas e mentais, o que me permite continuar a trabalhar.

Os tempos livres são, como já referido, dedicados à leitura de revistas científicas e ao desporto. “Gosto muito de nadar e de andar de bicicleta. E também gosto de jogar ténis, ping-pong e padel. Considero muito importante a prática desportiva: estar bem fisicamente é essencial, até pela minha profissão”, salienta.

Mesmo com dias preenchidos, sempre houve e continua a haver tempo para a família: a esposa, os três filhos e os quatro netos. “Considero que tenho sorte, porque a minha esposa sempre compreendeu perfeitamente as minhas ausências, causadas pela atividade profissional, e tratou muito bem de tudo em casa. E tenho também sorte porque os meus filhos ficaram a viver em Coimbra. Por isso, é fácil conseguir estar com eles e com os meus netos, com quem gosto muito de brincar e ajudar em tudo aquilo que é necessário”, revela.

Para além da continuidade da atividade profissional e da dedicação ao desporto, Júlio Leite tem também tentado impulsionar uma avaliação dos resultados clínicos dos Centros de Referência, como membro da CNCR (Comissão Nacional dos Centros de Referência), por serem o expoente mais elevado de competências na prestação de cuidados de saúde em situações clínicas delicadas, que exigem recursos técnicos e tecnológicos diferenciados, bem como um elevado nível de conhecimento e de experiência.

“Tenho essa vontade de ajudar a que haja uma melhoria no tratamento das doenças e, para isso, considero fundamental que exista uma avaliação da qualidade desse tratamento. Já não estamos, felizmente, na fase em que precisamos de assegurar que todos tenham direito ao tratamento. A grande necessidade agora, na minha perspetiva, é garantir a qualidade do tratamento realizado. Essa qualidade deve ser avaliada através de auditorias clínicas digitalizadas sobre os resultados do tratamento imediatos e à distância, para o bem de todos”, evidencia.

Júlio Leite não pára, mas quem corre por gosto não cansa, não é? “É verdade: nunca senti que ir trabalhar fosse custoso, por exemplo. Sempre senti que o que faço profissionalmente é algo agradável para mim. Aliás, tudo aquilo que faço, faço com gosto. A minha mulher até costuma dizer que nunca me viu chegar a casa cansado!”, conclui.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias por Júlio Leite