A viagem começou a 8 de março de 1948 em Vila Cã, freguesia pertencente ao município de Pombal. Depois, continuou mundo fora, com espaço na mala para duas grandes paixões: os livros e a música. Mas, para já, fiquemos um pouco mais por Vila Cã, para conhecermos melhor a infância de António Freire.
“É uma vila que não tem nada de extraordinário, a não ser o facto de eu ter nascido lá”, graceja. “Foi lá que fiz a instrução primária, e que fui imensamente feliz com os meus amigos de então. Era um meio marcadamente rural, onde as pessoas eram muito solidárias: havia pobreza, mas havia partilha”, faz saber. Para além de terem algumas propriedades, os pais de António Freire eram comerciantes. "Eram pessoas conhecidas e muito estimadas na região", indica.
A infância foi feliz e, por isso, guarda dessa altura boas memórias, especialmente as que dizem respeito aos momentos vividos com os amigos e os irmãos. “Tenho dois irmãos mais velhos, um irmão e uma irmã, com quem aprendi imenso, nomeadamente a ler, tanto que, quando entrei na escola, já dominava muitas das matérias lecionadas. Lembro-me com muito carinho da professora que tive, uma senhora espetacular, que me punha a ajudar no ensino da turma”, conta.
Da escola, diz lembrar-se também com precisão das características da sala de aula. “Em miúdo, a sala parecia-me enorme... Era uma sala com muita luz, embora muito fria no inverno. Tinha quatro filas de secretárias de madeira, com cadeiras de madeira também, e as secretárias tinham o tinteiro onde mergulhávamos as canetas”, recorda.
“E claro, era uma sala de aula com outras especificidades próprias daquela época, que não posso deixar de apontar: o quadro preto e as duas fotografias penduradas na parede [de Óscar Carmona e António de Oliveira Salazar]”, complementa.
“A infância e o ensino primário em Vila Cã marcaram-me muito. Era o tempo da descoberta, da aventura e do risco, numa terra onde não havia praticamente risco”, brinca, “com estradas em macadame e terra batida”, percorridas vezes sem conta de bicicleta ou a pé.
“Aprendi a nadar no rio – também aí, sem grandes riscos, já que no verão a água teria pouco mais de um metro de profundidade – e vivia em liberdade total. Aprendi a ser livre e responsável”, afirma.
Findo o ensino primário, prosseguiu os estudos em Pombal. “Mudei-me para lá. Fiquei alojado numa pensão, onde já estava a minha irmã. Também aí vivi momentos memoráveis e, como tinha a presença da minha irmã, a proximidade do meu irmão e as visitas do meu pai pelo menos uma vez por semana, não senti propriamente um afastamento da família”, indica.
O ensino liceal foi concluído em Leiria. “Aí, o afastamento era já maior, e senti muito a ausência da minha mãe. Mas rapidamente me adaptei àquele meio”, recorda. “As coisas por lá correram normal e naturalmente bem. Tive uma boa integração e fiz amizades espetaculares, que ainda hoje mantenho”, afirma.
Foi apenas nesta altura que o interesse pela Medicina surgiu, dado que, em criança, o que António Freire desejava ser quando fosse grande era… ser grande apenas. “Foi no ensino liceal que esse interesse começou a ganhar forma… O meu irmão estudava Engenharia Civil e a minha irmã Engenharia Química, e o meu coração palpitava entre a Engenharia Eletrotécnica e a Medicina. No dia em que tive mesmo de escolher, decidi ir para Medicina”, refere. “Foi algo que surgiu quase por acidente na minha vida, mas não posso deixar de dizer que o seu exercício é algo a que me dedico, ainda hoje, de alma e coração”, garante.
António Freire afirma, por isso, que fez a escolha certa, embora acredite que se adaptaria a qualquer outra área que escolhesse. Assim, mudou-se para Coimbra para ingressar em Medicina, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), curso que terminou em 1972.
“Considero que Coimbra é muito maternal em relação aos estudantes. É uma cidade que os recebe muito bem, que considera os estudantes seus filhos. Comigo, não foi exceção. Fui muito bem recebido, quer pela cidade, quer, obviamente, pelos meus colegas”, observa.
“Entrei para Medicina no final dos anos 60 e, naquela altura, a academia fervilhava com movimentos progressistas e lutas académicas, que tinham tido início nas gerações que precederam a minha”, conta.
António Freire recorda, desses tempos, o combate à ditadura, ao conservadorismo e a um ensino que, de certa forma, considerava obsoleto em muitas áreas. “Toda essa contestação culminou na crise de 69, nas circunstâncias que bem conhecemos. Gostei muito de viver de perto essa época. Foram momentos riquíssimos, que pude viver da forma que quis, já que os meus pais sempre me apoiaram e deram total abertura para tomar as minhas próprias decisões, ensinando-me a ser autónomo e responsável”, destaca.
“A crise de 69 prolongou-se, na verdade, por dois anos, até 1971, com forte presença policial, com manifestações estudantis, prisões de colegas e colegas destacados para cumprirem serviço militar… Lembro-me, entre outras, de uma manifestação que fizemos em frente ao [Teatro Académico] Gil Vicente, de contestação a um espetáculo organizado por um grupo conservador. Houve carga policial pesada e tiroteio… Tivemos de dispersar”, relembra.
Desse tempo, António Freire enfatiza a generosidade da academia, embora admita que existia alguma divisão, que considera, sobretudo, de natureza económica. “O facto é que nem todos os colegas tinham possibilidade financeira de fazer greve e arriscar perder o ano. Claro que, ideologicamente, existia também na academia gente conservadora, bem conhecida, que fazia o seu papel, tal como hoje, aliás”, menciona.
Por tudo isto, afirma que o ano de 1969 foi especialmente marcante. “Marcou-me por ter sido o ano da crise estudantil, do primeiro transplante renal, feito em Coimbra pelo Professor Linhares Furtado, e do primeiro passo na Lua do Neil Armstrong”, elenca.
Em 1979, sete anos depois de se ter licenciado em Medicina, António Freire obteve o grau de especialista em Neurologia, tendo estado, também nesse ano, a fazer um estágio de alguns meses em Londres, antes da obtenção deste grau. “Sempre gostei do cérebro. O cérebro é a mãe de todas as coisas… é uma estrutura espetacular, presente em todo o corpo, com exceção do cabelo e das unhas. Controla tudo, e é, para os neurocientistas, uma matéria de estudo fascinante”, salienta.
António Freire destaca a dificuldade que é exercer atividade nesta área. Não obstante a grande evolução em termos de diagnóstico, muitas doenças do foro neurológico, apesar de serem hoje facilmente identificáveis, nem sempre têm tratamento. “O mais difícil na Neurologia, e na Medicina em geral, são as lágrimas de mãe. Aí, não temos nada a fazer, a não ser chorar com elas”, observa.
“Houve um acontecimento que marcou também profundamente a minha vida, e que penso que, de certa forma, pode ter influenciado esta minha escolha de especialidade”, começa por referir. “Eu sempre tive uma grande adoração pelos meus pais, em especial pela minha mãe – sem desmerecer o meu pai –, e quando eu tinha cinco anos de idade, ela foi operada ao que penso ter sido um meningioma [tumor benigno], no Hospital de Santa Marta, pelo Doutor Moradas Ferreira”, continua.
“A memória que ela dizia ter da cirurgia era de uma picada no pescoço, ou seja, da angiografia feita por punção direta, e da sensação de fogo no cérebro… O relato dessa experiência marcou-me. Foi por isso, aliás, que ainda estive um ano em Neurocirurgia, mas é uma especialidade de tal maneira dura, até do ponto de vista físico, que desisti”, revela.
Mas para este fascínio e interesse pelo cérebro, garante que muito contribuiu também a postura daquele que considera ter sido o seu melhor professor: Nunes Vicente. “É uma figura marcante da academia, pela proximidade que mantinha com os alunos e pelo brilhantismo das suas aulas, mas também pela sua postura e pelo apoio inequívoco que deu aos estudantes em 1969 e ao longo de toda a sua carreira”, destaca.
Foi, aliás, Nunes Vicente quem, depois de António Freire ter concluído a prática clínica, o convidou para Assistente de Neurologia da FMUC, por forma a seguir a carreira académica. “Adorava dar aulas, sobretudo a grupos mais pequenos, e, quando comecei, sentia-me mesmo muito bem, até pela proximidade que tinha dos alunos, que tinham praticamente a minha idade”, indica.
António Freire esteve apenas cerca de um ano como Assistente. “Em 1974, dá-se a revolução. Depois do 25 de abril, comecei, juntamente com os colegas que tinham terminado a prática clínica comigo, a acompanhar o movimento nacional no sentido de se criar um serviço de apoio médico às populações mais afastadas. Foi assim que surgiu o Serviço Médico à Periferia, e eu deixei a carreira docente para ser novamente integrado na carreira clínica”, conta.
A equipa de seis médicos que integrou no âmbito do Serviço Médico à Periferia prestou atividade em Avelal, no concelho de Sátão, distrito de Viseu. “Era uma aldeia parecida com aquela onde nasci, pelo que, de certa forma, posso dizer que, nessa altura, voltei ao meu mundo, embora Avelal fosse já uma localidade mais desenvolvida, fruto da evolução dos tempos. Tinha a estrada principal asfaltada e um pequeno hospital, construído graças ao financiamento de um benemérito local que tinha enriquecido no Brasil. Avelal é outro sítio do qual guardo excelentes memórias, por tudo o que lá vivi”, observa.
António Freire concluiu o doutoramento em Medicina em 1987 e a Agregação em 1997 na FMUC, instituição na qual lecionou até 2018, ano da jubilação. Foi Chefe do Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) de 1989 até 2018, e diretor do mesmo Serviço de 2017 a 2018.
Foi ainda Presidente da Sociedade Portuguesa de Neurologia (SPN) de 2005 a 2007, na qual já tinha presidido o Grupo de Estudos de Doenças Cerebrovasculares de 2003 a 2005. Concomitantemente, desenvolveu também investigação. “Embora de natureza clínica, trata-se de trabalho científico muito baseado na investigação fundamental, e na qual a Catarina [Resende de Oliveira] teve um papel essencial”, afirma.
“Foi o que aconteceu, aliás, com o trabalho de dissertação em que a colheita de dados foi feita essencialmente nos Açores, ao longo de três anos, com a colaboração de vários colegas, ao mesmo tempo que prestávamos assistência à população na área de Neurologia. Foram tempos inesquecíveis”, relata.
Atualmente, preside o Conselho Português para o Cérebro, membro do European Brain Council, com sede na FMUC, tendo sido o principal dinamizador e responsável pela sua criação em 2017, e continua a exercer a prática clínica numa unidade privada de serviços de saúde em Coimbra. “Com a jubilação, perdemos os postos, por assim dizer, mas a atividade profissional continua. Eu continuo com uma atividade clínica intensíssima que me leva a observar 20 a 30 doentes por semana”, revela.
Do ponto de vista do ensino, continua também ativo. “A Universidade Nova de Lisboa convidou-me para a organização de um curso anual em doenças neurodegenerativas, e a Universidade de Aveiro para uma formação também anual na área da linguagem, inserido no mestrado em terapia da fala. Também aqui na FMUC, participo, de vez em quando, em uma ou outra aula de pós-graduação”, afirma.
Gerir a vida familiar e a vida profissional foi, para António Freire, tarefa simples ao longo dos anos e de uma extensa atividade clínica e docente. “A verdade é que tenho uma família excelente, com dois filhos fantásticos que tiveram a felicidade de ter uma mãe extraordinária, sempre presente e pediatra 24 horas por dia, tendo passado agora esse cuidado para os nossos netos. Tenho um núcleo familiar forte, e uma grande proximidade aos meus filhos e netos”, declara.
Nos tempos livres, gosta de escrever, ler, ouvir música e viajar. “Aliás, nos congressos que tinha fora, costumava aproveitar para ficar mais uns dias para conhecer melhor as cidades”, faz saber. “Já visitei cinco continentes. À Antártida é que nunca fui: é muito longe e lá não há congressos!”, afirma, em tom de brincadeira.
Mas, para António Freire, ler – gosto adquirido na infância – ou ouvir música é também viajar, pelo que todas as noites, antes de adormecer, faz sempre uma pequena ‘viagem’. “À noite, na cama, ponho música e leio, sobretudo poesia. Devem ser textos curtos, pois há que dormir. A cama é, para mim, um lugar de poesia e de música e, consequentemente, de viagem”, refere.
“Aliás, o nosso corpo é já em si uma viagem, com impulsos cerebrais, células e sangue a circular. E, na viagem, eu gosto de todos os momentos: da partida, do percurso e do regresso, em que voltamos ao lugar que amamos e ao nosso conforto”, afirma. Por isso, que prossiga a viagem.
por Luísa Carvalho Carreira
fotografias por António Freire