Cristina Vaz de Almeida é a presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS). Formalmente criada no passado mês de janeiro, esta sociedade conta já com mais de uma centena de sócios e diversas atividades organizadas.
Nota: Esta entrevista foi realizada no dia 20 de outubro de 2022.
Quando falamos da SPLS, falamos de um projeto que resulta de mais de 10 anos de trabalho prévio. Pode falar-nos um pouco acerca desse processo, daquilo que esteve na origem da criação desta sociedade?
É verdade. A SPLS tem um antecedente de mais de uma década. Foi no ano de 2011 que propus ao ISPA [Instituto Superior de Psicologia Aplicada] a criação de uma formação avançada em Literacia em Saúde.
Eu já me interessava pelo tema, e pensei que esta formação era algo necessário, porque a Literacia em Saúde é uma área que muda comportamentos e que ajuda a salvar vidas.
Assim, e ao longo dos anos, fui preparando médicos, enfermeiros, terapeutas, farmacêuticos, higienistas orais, não só no ISPA, mas também noutros institutos e em diversos centros hospitalares, e a rede foi crescendo.
A uma determinada altura, contava já com centenas de pessoas formadas em Literacia em Saúde, e pensei que era chegado o momento de criar esta sociedade. Reuni um conjunto de 22 sócios fundadores, antigos alunos meus, pusemos a mão na massa e avançámos.
Por isso, quando este ano arrancámos com a SPLS já sabíamos o que íamos fazer. Temos todos muita experiência neste âmbito, e sabemos conjugar a evidência científica com a sua aplicação numa vertente mais prática.
E o facto é que começámos com 22 sócios e neste momento somos já mais de cem, algo que nos deixa muito satisfeitos.
E o que é a Literacia em Saúde?
A Literacia em Saúde é um construto, que tem vindo a evoluir desde 1974, muito ligado à área da Educação. É uma área que implica a aquisição de competências. Isso significa que, ao trabalhar nesta área, temos de fazer com que as pessoas adquiram conhecimento, mas também capacidade para agir.
Neste âmbito, há um elemento muitíssimo importante, que é a motivação. Muitas vezes, desenvolvemos ações que achamos que os outros precisam, esquecendo-nos de os ouvir para saber se o que desenvolvemos é realmente aquilo que querem e precisam. O que motiva as pessoas é aquilo que elas sentem que é significativo para elas, atendendo ao contexto em que se encontram.
A Literacia em Saúde significa que, atendendo ao contexto, ao indivíduo e à comunidade, num processo de interinfluências, nós, enquanto promotores desta literacia, propomos soluções que melhorem o acesso à saúde e a sua compreensão e utilização, tão importantes e necessárias se considerarmos que 50 por cento da população portuguesa tem baixa literacia neste campo.
Falamos de 5 milhões de portugueses com dificuldade em aceder, compreender e utilizar os recursos de saúde e a navegar nesse sistema. Por isso, a Literacia em Saúde trabalha as competências comunicativas, a forma como transformamos linguagem complexa em linguagem simples, sem perder rigor científico.
Nesse sentido, implementei, há 10 anos, um modelo de Comunicação em Saúde, o ACP: Assertividade, Clareza e Positividade. Tal significa que, na relação com o outro, para que o outro consiga participar nos processos e nas decisões, devo comunicar utilizando, pelo menos, estas três competências de comunicação.
De que forma?
A Assertividade integra a empatia, mas sobretudo o respeito mútuo. Depois, eu posso ser assertiva, mas, se utilizar jargão técnico, não sou compreendida.
Assim, é muito importante a Clareza da linguagem. Isso significa que, quando utilizo jargão técnico, tenho obrigatoriamente de traduzi-lo, mesmo para doentes crónicos, com diabetes, por exemplo, que têm muito conhecimento sobre a doença, mas que beneficiam sempre dessa tradução de termos técnicos que, muitas vezes, eles próprios não dominam.
Outra competência é a Positividade, que tem a ver com uma mudança necessária de paradigma na linguagem. Passamos a vida a dizer “não faças isto” ou “não faças aquilo”. Sabemos, pelas Neurociências, que o cérebro não vê a não-ação.
Então, qual a mudança a ser implementada? É, por exemplo, em vez de dizer “Senhor António, não molhe o braço”, dizer “Senhor António, tem de manter o braço seco para a sua ferida sarar”. Parece a mesma coisa, mas não é. A Positividade relaciona-se com uma visão construtiva da linguagem. Falando desta forma, permitimos que exista uma representação simbólica da ação.
Que balanço faz destes quase 10 meses de atividade da SPLS?
Acedendo ao nosso website www.splsportugal.pt/, é possível ver tudo aquilo que já conseguimos fazer. Parece atividade digna de uma sociedade que conta já com uns três anos de existência, mas não. Conseguimos mesmo fazer tudo isso em 10 meses, porque, como referi inicialmente, quando formámos a SPLS já sabíamos muito bem o trabalho que deveríamos desenvolver.
No dia 29 de outubro, temos o congresso ‘Coração, Bem-Estar e Saúde’, que temos estado a organizar e que vai acontecer no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa. Temos um programa diverso, em que, por exemplo, damos voz a pessoas com problemas cardíacos, para que nos contem, de forma construtiva, como vivem com as suas doenças. Essa é a parte do congresso a que chamamos ‘Coração’.
Depois, teremos a parte do ‘Bem-Estar’, constituída por sete estações interativas – música, teatro terapêutico, fotografia e pintura, dança, desporto, estimulação sensorial e natureza – e pela degustação de alimentos saudáveis.
A parte intitulada ‘Saúde’ é dedicada à promoção da saúde e prevenção da doença, através de pequenas conferências de 10 minutos de duração, com recurso a linguagem simples, sobre temas como suporte básico de vida ou risco cardiovascular, entre outros.
No final do evento, teremos um espetáculo inclusivo de dança e música, antes do encerramento. Este congresso resulta de uma parceria muito bem estabelecida com a Ciência Viva, e ocorre em outubro, que é o Mês da Literacia em Saúde.
Ia perguntar-lhe precisamente por isso. Considerando que outubro é o Mês da Literacia em Saúde, que iniciativas preparou a SPLS nesse âmbito?
Para além do congresso ‘Coração, Bem-Estar e Saúde’, que encerra as celebrações deste mês, temos vindo a pedir aos nossos sócios para darem a sua perspetiva e os seus contributos nesta área, através de reflexões que a SPLS tem vindo a partilhar diariamente nas suas redes sociais.
Recentemente, lançámos um Prémio Nacional de Literacia em Saúde. Esperávamos receber 10 candidaturas e recebemos 60. Estamos muito satisfeitos com essa adesão.
Já estabelecemos também parcerias com a Direção-Geral da Educação e com a Agência De Investigação Clínica e Inovação Biomédica [AICIB]. Temos ainda protocolos estabelecidos com a Associação Portuguesa de Jovens Farmacêuticos [APJF], com a Associação Nacional de Estudantes de Medicina [ANEM] e conseguimos, entretanto, financiamento para um concurso de vídeos que estamos a organizar com a ANEM.
Temos outro projeto muito interessante, que vai acontecer também em Coimbra e que envolve a criação de mini-assembleias, nas quais pretendemos dar voz ao utente de forma segmentada, isto é, falar com jovens, com pessoas mais velhas, com pessoas com deficiência, por grupos, tentando auscultá-las e saber o que acham sobre a saúde, sobre o acesso e sobre a compreensão da saúde.
Vamos fazer agora um protocolo com a Ordem dos Farmacêuticos e com a Câmara Municipal de Coimbra, e temos feito diversas conferências.
Temos também uma rubrica muito interessante, a ‘Claramente na Complexidade’, na qual falamos com profissionais cujas atividades médicas são difíceis de compreender, para que nos expliquem que doença tratam e de que formas. Tentamos, assim, descomplicar a ciência médica.
Organizámos já muitas iniciativas, como é possível ver no nosso website, e desenvolvemos também vários materiais de suporte sobre Literacia em Saúde, para partilha nas mais diversas áreas e campos de ação.
É um balanço muito positivo.
Muito! Estamos sempre a criar brainstormings para refletirmos em conjunto. Acredito que temos sempre de trabalhar em conjunto e em rede, inclusive com as universidades.
Este caminho, apesar de ainda curto, é já muito rico. E, de facto, essa riqueza deve-se à sensibilidade que, enquanto fundadores da SPLS, tínhamos relativamente às iniciativas que poderiam funcionar e correr bem, considerando sempre os riscos que corremos.
Quando, de alguma forma, temos os riscos bem medidos, o percurso é muito mais fácil. Não quer dizer que não possamos correr riscos. Todas as organizações correm riscos, mas quando se trata de dar este tipo de contributo à sociedade, considero que é muito importante preveni-los.
O que a levou à Literacia em Saúde? Porque se interessou por esta área?
Tenho várias vidas, como costumo dizer! Comecei pelo Direito. A minha família é toda dessa área, e eu também me licenciei em Direito e fui jurista durante alguns anos. Depois percebi que não era aquilo que eu queria, que deveria mudar de rumo. A família não se zangou, e ainda bem!
Comecei a desenvolver as áreas das relações humanas, da comunicação e da mudança de comportamentos. Fiz pós-graduação em Marketing e estudei Psicologia Positiva. Depois, veio o mestrado em Novas Tecnologias aplicadas à Educação e em seguida o Doutoramento em Ciências da Comunicação. Além disso, gosto muito de partilhar aquilo que faço, de maneira que, por ano, dou cerca de 50 conferências.
Vim parar à Literacia em Saúde precisamente pelo interesse que tenho pelas relações humanas. Preocupa-me muito a falta de conhecimento e de capacidade das pessoas de saberem o que fazer no que toca a aspetos relacionados com a saúde.
A Literacia em Saúde é uma descoberta que nos consegue dar caminhos. Tenho conseguido, ao longo dos anos, criar uma boa rede, com muitos dos meus antigos alunos que se tornaram amigos. Essa rede motiva-me e dá-me energia para continuar neste caminho.
Acho sempre que o ontem é obsoleto. Tenho uma grande necessidade de estar constantemente a dar passos em frente e a aprender. Estou em contínua aprendizagem, sempre.
Gosto muito de falar com as outras pessoas, e a Literacia em Saúde permite-nos isso de uma forma muito transversal. Quando queremos compreender o outro, isso dá-nos uma outra dimensão relativamente à nossa própria vida e intervenção humana.
E eu quero estar aqui para fazer alguma coisa de relevante. Para, pelo menos, contribuir para que existam, na área da saúde, evidências de que é possível melhorarmos estratégias. É isso que me motiva todos os dias.
por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedida por Cristina Vaz de Almeida