Do curso
de Medicina 

Com a Medicina nos genes

“Ainda não dei fé!”, comenta prontamente quando a pergunta se refere à jubilação. Afinal, ainda é tudo muito recente, e apesar de já não ocupar o lugar de professor catedrático de Genética na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), Fernando Regateiro não está propriamente parado. São vários os projetos e as iniciativas em que está e continuará envolvido. A proatividade e a energia que o caracterizam não permitiriam que fosse de outra forma.

Fernando Regateiro nasceu e cresceu em Ermida de Mira, distrito de Coimbra, a 25 de julho de 1952. É casado com uma Médica de Família e pai de dois filhos, um médico e professor da FMUC e o outro farmacêutico e médico. E tem as melhores memórias da infância, moldadas pelo contacto próximo com os familiares, os habitantes da sua aldeia e a natureza.

“Felizmente, cresci num ambiente onde reinava o provérbio africano que diz ser precisa toda uma aldeia para educar uma criança”, constata. “Com os meus pais como primeiros educadores, mas também os meus avós, toda a família mais próxima e todos os ‘tios’ e ‘tias’ da aldeia… Cresci num ambiente de honra pela palavra dada, de confiança no ‘outro’, com espaço e tempo para brincar com as demais crianças. Tive uma infância feliz”, complementa.


Não me lembro do momento ou da razão que me levaram a querer ser médico…

Fernando Regateiro frequentou o ensino primário na sua aldeia. “Tive uma professora extraordinária, que já tinha sido professora do meu pai”, indica. Depois, foi para o colégio de Mira, onde fundou o jornal ‘O Pirilampo’. “Também aí tive professores muito bons, dedicados e exigentes”, observa. “Lá recebi os meus dois primeiros prémios: um, como melhor aluno de Matemática – a biografia de Edison, um livro inspirador que guardo como preciosidade –, e outro, pela melhor classificação a Português, no exame do antigo quinto ano”, conta. Os dois últimos anos do ensino liceal foram já feitos em Coimbra, no liceu D. João III, onde também teve professores que o “marcaram”, findo o qual Fernando Regateiro ingressou no curso de Medicina da FMUC. Também no liceu fundou um jornal: ‘O Estudante’. “Sempre tive outras atividades, para além do estudo”, esclarece.

“Não me lembro do momento ou da razão que me levaram a querer ser médico…”, admite. Certamente, não foi devido aos conselhos da mãe, que sempre lhe dizia que não iria gostar, porque não gostava de ver sangue. “O facto é que vim aqui parar e não me arrependo!”, salienta.

“Tenho a impressão de que decidi estudar Medicina não tanto para fazer atividade clínica, mas para, através da investigação e da criação de conhecimento, contribuir para melhorar o conhecimento das doenças e o seu tratamento… Sim, era isso que me aliciava, na minha presunção de infante!”, assume. Hoje, constata que “a Ciência é feita de pequenos nadas que, no conjunto, dão em muito. Por isso, passar da clínica para o laboratório foi um pequeno passo”.

Decorria o ano de 1977 quando terminou o curso de Medicina. Nessa altura, Fernando Regateiro já dava aulas na FMUC, uma vez que, em 1975 e face ao grande número de alunos na instituição, foi necessário contratar monitores.

“Houve um concurso na Faculdade e a minha primeira preferência era a Patologia Geral. Contudo, os processos de seleção vigentes levaram-me para a Histologia e Embriologia”, menciona. “Gostava de Patologia Geral porque, na verdade, apreciava muito o Professor António Robalo Cordeiro. Estava sempre disponível para os alunos. E, logo nas primeiras aulas, incentivava-nos a fazer investigação”, indica.

“Motivado pelo convite, passei a frequentar o Laboratório de Patologia Geral e Imunologia, durante o terceiro ano do curso, onde tive o primeiro contacto com a investigação e pude aprender e executar algumas técnicas laboratoriais. Foi uma experiência de que gostei muito! Isto marca um aluno, não se pense que não”, garante.

“O Professor Renato Trincão também apresentava um desafio aos alunos – prepararem um tema de Anatomia Patológica para apresentar nas suas ‘quintas-feiras’. Aceitei o desafio, preparei o tema “Inflamação” e dei a minha primeira aula!”, regista, com evidente satisfação.

Acabado o curso, Fernando Regateiro foi contratado como Assistente Convidado de Histologia, cargo que desempenhou durante dois anos, enquanto fazia o internato. Findo o internato, foi convidado para Assistente a tempo completo, tendo lecionado Histologia por mais cinco anos.

Os bons resultados académicos, ter tido professores que admirava, ter contactado com a investigação e, inclusive, ter dado uma “aula”, logo seguidos de convite para assistente, ajudaram a definir o seu futuro. Seguiria a carreira universitária, na FMUC.

“Como assistente, dava aulas, escrevia artigos de revisão e textos pedagógicos, e frequentava formações, múltiplas, sobretudo em Biologia Molecular e Genética”, indica. A atração por estas áreas, levou-o, em 1981, até Gottingen, onde fez um estágio de um ano, no Instituto Max-Planck.

A partir de 1980, fez parte da redação da então reativada revista Coimbra Médica, a convite do seu diretor, Agostinho Almeida Santos. “A minha função era ler e corrigir os trabalhos ainda no granel, entregar aos autores as provas paginadas para correção, rever as provas finais e acompanhar a impressão. Muita clínica assim aprendi, com os autores da Coimbra Médica!”, salienta.

Em 1985, passou a assistente de Genética. “O Professor Agostinho Almeida Santos sabia, da Coimbra Médica, como eu trabalhava. Se as coisas tinham de ficar feitas num determinado dia, ficavam e pronto! Por isso, quando assumiu a regência da cadeira de Genética, telefonou-me a perguntar se queria ser seu Assistente. Respondi, de imediato, que sim, pois gostava verdadeiramente da Genética e há muito pensava nisso”, conta.

Fernando Regateiro concluiu o doutoramento em 1990, tendo como orientador Arsélio Pato de Carvalho. “Foi e é um ilustríssimo Professor da nossa Universidade, que muito admiro, com ele criei uma sincera relação de amizade e dele guardo memórias extraordinárias”, enfatiza.

Seguiram-se o concurso para professor associado em 1993, as provas de agregação em 2000 e o concurso para catedrático, concluído em 2004. “Prioritariamente, dediquei a minha vida à academia, focado na docência, na investigação, na divulgação e na participação nos diversos órgãos e estruturas da Universidade de Coimbra. Outra parte, dediquei-a à intervenção em saúde e à gestão e administração da saúde. E sempre com algum tempo para a intervenção política, cívica e social”, faz saber.

Fernando Regateiro sempre gostou muito do ensino. Para os alunos de Genética escreveu o livro “Manual de Genética Médica”, editado pela Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC), em 2003. Globalmente, é co-autor de 15 livros e autor ou co-autor de mais de 200 trabalhos científicos.

“Não senti a transição entre aluno e professor, por ter começado a dar aulas ainda no quarto ano do curso. Durante muitos anos, não tratava os alunos por ‘você’, o que só veio a acontecer bem mais tarde… Foi aí que pensei: ‘estou a ficar muito catedrático!’”, graceja. “Mas os alunos nunca me faltaram ao respeito”, observa.

Os alunos da FMUC reconheceram o mérito de Fernando Regateiro por diversas vezes. Em 2001, já regente de Genética, os alunos de Medicina distinguiram-no, no Dia da Faculdade, com o prémio de “Melhor Professor do 2º Ano”, pela excelência pedagógica e organização geral da cadeira.

Nos anos de 2003 e de 2004, nas Comemorações do V e do VI Dia da Faculdade, o Núcleo de Estudantes de Medicina da Associação Académica de Coimbra (NEM/AAC) atribuiu-lhe o “Prémio de Excelência Pedagógica e Académica” para “A Melhor Cadeira do 2º ano”. Em 2005, o Núcleo de Estudantes de Medicina Dentária (NEMD/AAC) atribuiu-lhe o “Prémio Melhor Cadeira 2004-2005”.

“Devo dizer que as placas alusivas a estas distinções atribuídas pelos alunos estão expostas no espaço mais nobre da minha casa e que as conto entre o que mais me orgulha”, assume.

O currículo de Fernando Regateiro é, com efeito, muito vasto e extenso. Em 2005, assumiu a presidência da Administração Regional de Saúde do Centro (ARS Centro) e, em 2007, a presidência do Conselho de Administração dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), cargo que desempenhou até 2011. Entre 2017 e 2020 retomou funções na administração hospitalar, agora como presidente do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC).

A nível da Universidade de Coimbra (UC), destaca-se ainda o seu envolvimento na constituição e coordenação da rede de infraestruturas UCGenomics, e a condição de membro do Conselho Científico-Cultural, da Assembleia de Representantes da Universidade e do Conselho Social. Na FMUC, a regência das Unidades Curriculares de Genética, as funções de diretor do Instituto de Genética Médica da FMUC e a proposta e coordenação do curso pós-graduado “Genética e Cancro Hereditário” do Programa de Doutoramento da FMUC em Ciências da Saúde.

No Reitorado de Fernando Rebelo, foi nomeado Pró-Reitor da Universidade e primeiro diretor da IUC, após a sua refundação em 1998.

Fernando Regateiro foi ainda conselheiro do Conselho Nacional de Educação, entre 1995 e 2002, diretor do Centro de Histocompatibilidade do Centro, entre 1999 e 2005, conselheiro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV). Entre 2003 e 2009, foi coordenador nacional da reforma do Serviço Nacional de Saúde, na área dos Cuidados de Saúde Hospitalares, entre 2016 e 2019. 

Em paralelo, teve diversificada atividade associativa, destacando as funções de presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais, de primeiro presidente da direção da Orquestra Clássica do Centro e de presidente da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra.

No âmbito político, foi eleito, por quatro vezes, deputado à Assembleia Municipal de Mira e seu presidente em dois mandatos, presidente da Assembleia da Comunidade Intermunicipal do Baixo Mondego e presidente da Assembleia da Grande Área Metropolitana de Coimbra.

A nível internacional, releva as funções de consultor para a instalação do Mestrado Integrado em Medicina da Universidade de Cabo Verde (UniCV) e de seu coordenador-geral, bem como as de presidente do Conselho de Diretores do World Health Summit/M8 Alliance, em 2017-2018.

Em 2016, foi condecorado, pelo Governo da República de Cabo Verde, com o 1º grau da Medalha de Mérito.

Com uma vida profissional que sempre demandou uma grande dedicação, resta a dúvida de como esta se equilibra com a vida pessoal. “Com sacrifício do descanso e com gosto pelo que se faz! O maior sacrifício foi para a família, sempre. Felizmente, tenho uma família extraordinária, e tanto a minha esposa quanto os meus dois filhos compreendiam as minhas ausências. Mas quando estava para eles… era para estar mesmo”, observa.

“No verão, a preferência era para nos metermos no carro e sairmos para o mundo, sem hotéis marcados, sem destino definido… uma aventura completa! Ou então voarmos para destinos novos”, conta. “Saber que tinha na família um pilar, um suporte absolutamente férreo e seguro, foi – e é – extremamente importante”, enfatiza.

Jubilado desde julho deste ano, Fernando Regateiro continua a ser membro externo cooptado do Conselho Geral da UniCV, função que desempenha desde 2016. É ainda coordenador do “Projeto de Capacitação da Região Centro para a Medicina Personalizada/de Precisão, de base genómica”, cujo financiamento pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC) ultrapassa o milhão de euros.

Recentemente, foram-lhe confiadas as funções de presidente da Comissão Executiva da Fundação Rotária Portuguesa, uma instituição de solidariedade social que, anualmente, atribui um número elevado de bolsas a alunos carenciados dos ensinos secundário e superior e apoia projetos de intervenção nos campos educativo, científico, cultural, humanitário e social.

“Tenho gosto em continuar a trabalhar, a pensar e a intervir, agora como jubilado. Enquanto os neurónios funcionarem e os músculos obedecerem! Por ora, não sinto mudança de estado”, conclui.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Fernando Regateiro