No final dos anos 70, quando estava no último ano do curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), José Carlos Pinto Noronha viveu um episódio que acabou por ditar a especialidade médica que escolheu e na qual tem vindo a trilhar um notável percurso.
“De certa forma, estou na Ortopedia porque, um dia, fui ajudar um camionista que teve um acidente”, começa por contar. “Vinha de carro com um colega – ele ia a conduzir – quando, subitamente, o camião que seguia à nossa frente despista-se e bate numa barreira. Apercebemo-nos logo da gravidade da situação e, na tentativa de ir ajudar o condutor do camião, saí do carro ainda em andamento: é aí que faço uma entorse terrível e uma lesão no ligamento cruzado anterior”, complementa.
Nessa altura, tal como refere José Carlos Pinto Noronha, o diagnóstico deste tipo de lesão era ainda difícil e pouco claro, pela falta de acesso a exames como a ressonância magnética. Por esse motivo, apenas três meses depois da lesão, quando tentou jogar futebol novamente – como sénior no Desportivo Santa Cruz de Alvarenga – e faz uma rotura do menisco, o cirurgião verificou a existência da lesão do ligamento, o que o levou a ter de abandonar a prática do futebol, iniciada nos Juniores do Sporting Clube de Lamego.
“Aí, comecei logo a pensar em ir para a Ortopedia. Por isso, penso que sou um daqueles casos em que ‘há males que vêm por bem’ porque, se não tivesse rompido o ligamento cruzado anterior, talvez nunca tivesse optado por esta especialidade, nem tivesse tido a oportunidade de fazer este trajeto profissional agradável e que, modéstia à parte, tem tido sucesso”, observa.
Criado em Alvarenga, freguesia do município de Arouca, José Carlos Pinto Noronha veio viver para Portugal aos 3 anos de idade. Até aí, viveu no Brasil, no Rio de Janeiro, onde nasceu a 27 de fevereiro de 1954.
“Antes de conhecer a minha mãe, o meu pai estava no Brasil há alguns anos. Acontece que, numa das vezes em que veio a Portugal, foi levar uma caneta ao meu avô, professor do ensino primário. Nesse percurso, encontrou uma estudante de Filologia Clássica da Universidade de Coimbra – a minha mãe – e daí nasceu um amor e um casamento”, conta.
A mãe de José Carlos Pinto Noronha acaba por interromper o curso e muda-se também para o Brasil. “Foi lá que nasceu a minha irmã mais velha e que, um ano depois, nasci eu”, indica. Após o nascimento de José Carlos Pinto Noronha, a sua mãe começou a ter alguns problemas de saúde. “Confrontado com essa situação, o meu pai viu-se na necessidade de voltar para Portugal”, menciona, “e, por isso, quando eu tinha 3 anos de idade, viemos todos para Alvarenga, terra natal dos meus pais”.
A instrução primária foi feita em Alvarenga, “com as traquinices típicas da infância”, e o curso liceal em Lamego. Depois, José Carlos Pinto Noronha mudou-se para Coimbra, quando ingressou no curso de Medicina da FMUC, que concluiu em 1979.
“Os tempos de estudante universitário da FMUC foram muito agradáveis, e ainda mantenho amigos dessa época. A vivência académica era diferente da das outras cidades, um pouco maiores”, constata. “Não sendo uma cidade muito grande, Coimbra permitia-nos um convívio mais próximo, com as malandrices habituais dessa altura”, relembra.
Já como ortopedista, e dada a sua experiência pessoal, interessou-se particularmente pelas lesões ligamentares do joelho, tendo concluído a especialidade em 1990. Enquanto Interno de Ortopedia no Hospital Geral de Santo António, no Porto, entre outubro de 1983 e janeiro de 1990, José Carlos Pinto Noronha fez dois estágios no Institut Català de Traumatologia i Medicina de l'Esport, sob a orientação de José María Vilarrubias, e um estágio no Centre Hospitalier Lyon-Sud, sob a orientação de Henry Dejour.
Entre 1990 e 2000, e já como Assistente Hospitalar de Ortopedia no Hospital Geral de Santo António, foi Assistente Convidado e, mais tarde, Professor Auxiliar Convidado do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS), fez estágios na Clinique Emilie de Vialar, no Centre Hospitalier Universitaire de Saint Étienne, no Hôpital de la Salpêtrière e no Buffalo General Medical Center - Kaleida Health, desempenhando também as funções de cirurgião do Hospital da Ordem da Trindade.
Entre 2008 e 2016, foi Professor Convidado do Curso de Pós-Graduação em Medicina Desportiva da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e é, desde 2014, Diretor Clínico da Unidade de Saúde e Performance da Federação Portuguesa de Futebol (FPF).
Pelo caminho, fez ainda o doutoramento em Ciências Biomédicas do ICBAS, que defendeu em 1999, precisamente com a tese ‘Isometria na Reconstrução do Ligamento Cruzado Anterior’. Amplamente conhecido pelo seu trabalho, não restam dúvidas de que é um dos mais prestigiados especialistas em Ortopedia a nível mundial.
E também pelo caminho, influenciou certamente futuros médicos a seguirem as suas pisadas. “Em 2011, convidaram-me para ir operar seis jogadores com rotura do ligamento cruzado a Ho Chi Minh, antigamente conhecida como Saigão. Estava lá o Henrique Calisto, que à época treinava o Dong Tam, um dos principais clubes do Vietname. Certa noite, fui jantar com a minha mulher, com ele e com o Fausto, um engenheiro Químico de Coimbra”, refere. “A meio da conversa, o Fausto disse-me que o filho tinha entrado em Medicina, e eu respondi que, caso ele fosse para Ortopedia, eu poderia ajudá-lo naquilo que estivesse ao meu alcance”, continua
“Quase quatro anos depois, recebo um telefonema dele, a dizer-me que o filho, João Pedro, estava prestes a escolher a especialidade, com base na conversa que, anos antes, tínhamos tido no Vietname”, conta. “Em resumo, o João Pedro tirou Ortopedia, está a acabar o doutoramento e, como há coisa de cinco anos precisei de mais um elemento na minha equipa cirúrgica, ele começou a trabalhar comigo desde essa altura”, afirma. “Essa coincidência do engenheiro Fausto estar no Vietname quando lá fui operar seis joelhos acaba por ser um momento marcante para mim, dado que hoje trabalho com o filho dele”, constata.
Já na prática clínica desenvolvida no âmbito das funções na FPF, José Carlos Pinto Noronha tem contribuído – e muito – para o sucesso da carreira de diversos jogadores e, consequentemente, também para o sucesso de grandes clubes. “Já operei jogadores de 59 países”, declara, como são os casos de Cristiano Ronaldo, Drogba e Pepe, entre muitos outros. E também de Éder, autor do histórico remate que deu a Portugal a vitória do Campeonato Europeu de Futebol de 2016.
O selecionador Fernando Santos telefonou-me uns dias antes da convocatória para perguntar se seria possível que eu visse o Éder e o ajudasse por forma a que conseguisse jogar pela seleção”, recorda. “À data, o Éder jogava no Lille e tinha derrames frequentes… Eu lá o observei e tratei na Ordem da Trindade, onde na altura operava. Lavei-lhe o joelho e meti-lhe fator de crescimento, pedindo ao Fernando Santos que o dispensasse dos dois primeiros dias de treino. Todos os dias, durante uma semana, eu ia ver como o Éder estava”, acrescenta.
“O facto é que o joelho secou e, assim, foi possível que o Éder jogasse na final. E é por essa razão que eu tenho uma camisola dele na qual escreveu ‘Para o amigo Noronha, o homem que fez com que o meu joelho brilhasse no Europeu’”, revela.
Atualmente, José Carlos Pinto Noronha mantém ainda uma prática profissional bastante ativa, na qual se incluem, por exemplo, as várias viagens que faz para acompanhar a Seleção Portuguesa de Futebol, embora admita que, a partir de certa altura, começou a reduzir o volume de trabalho.
“Antes, tinha imenso trabalho todos os dias… Doutorei-me aos 45 anos de idade. A partir dos 50, 55 anos, começamos a ter uma visão diferente no que diz respeito à necessidade de qualidade de vida e do ambiente familiar, porque o dinheiro não é tudo”, assegura.
Por esse motivo, José Carlos Pinto Noronha começou a trabalhar três dias por semana. “Opero à segunda-feira, e faço consulta à terça-feira e à quarta-feira”, declara. Às vezes, se a agenda estiver mais preenchida, ou se estiver prevista alguma viagem, há alguns sábados que são também dedicados à cirurgia.
Entre quinta-feira e sexta-feira, há espaço para a visualização de vídeos de cirurgias e para leituras científicas e, ao fim de semana, é tempo para estar com a família e os amigos, ou para dedicar-se, quando tal é possível, ao seu hobbie: a caça. “Gosto muito, não tanto pela caça em si, mas pelo convívio com os amigos e com a natureza”, esclarece. “Como fui criado na aldeia e o meu pai era caçador e costumava levar-me com ele, sempre tive um gosto apreciável pela natureza”, complementa.
por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por José Carlos Pinto Noronha