Rui Miguel Fragas;
Ana Catarina Lopes (Ilustração)
Céu e Inferno
Acossam-me matilhas às portas da noite, injeções de
insulina, eletrochoques, constelações luminosas de
comprimidos lá ao fundo dos buracos negros do
pensamento.
Pios incertos de corujas ecoam pelas torres do telhal.
Nas sombras que se adiantam ratos e percevejos
traçam o rigor do medo.
Digo-vos: se me enfiarem mais vozes brocas e
bichos na cabeça garanto que me esgueiro por um
buraco e, pronto, desapareço.
Não me peçam que caia sempre no mesmo engodo.
Bem sei que as lebres acossadas por latidos que lhes
encanam os ouvidos correm em direção aos dentes
aguçados do canzoal.
Mas hoje estou muito calmo: de repente o mundo
rodopiou e vejo tudo claramente. Sento-me num
banco do jardim e olho os homens em frente,
suspensos na mão de deus, sobre os andaimes, a
caiar as paredes do asilo.
A manhã sorri e nada me dói. Os homens despejam
baldes de cal por cima de mim, doces líquidas
frescas alvuras de nuvens ou anjos.
Desde a fonte da alma às unhas dos pés estou todo
vestido de branco. O mundo é tão belo que neste
entremeio me esqueço de mim.
Se morro ou já morri louvada seja a morte que me
leva e inspira. Subjugo-me ao céu ou ao inferno,
pouco me importa, desde que me deixem em paz.
2017
Nota: dedicado a António Gancho, que viveu 40 anos (e morreu) em instituições psiquiátricas.