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Tiago Reis Marques

VOICEmed #4
Licenciou-se pela FMUC em 2001 e doutorou-se em 2012 em Londres, no Institute of Psychiatry do King's College. Aos 41 anos, o psiquiatra divide-se entre o Imperial e o King's College, onde faz investigação. Faz ainda, com frequência, uma ponte aérea entre a capital britânica e Portugal, para observar doentes.


Qual é, para si, a importância de se ter licenciado na FMUC?

A FMUC foi essencial na minha formação enquanto médico e enquanto pessoa. Enquanto médico obtive uma formação de grande qualidade teórica, exigente e com uma componente prática essencial. Frequentei o primeiro ano profissionalizante no 6º ano, uma mudança essencial e bem feita pela FMUC, que o hospital acompanhou, estando preparado e entusiasmado por nos receber. Obviamente que eram outros tempos, com um número de alunos substancialmente menor - o meu ano médico tinha “somente” 101 alunos. O elevado numerus clausus dos dias de hoje deve ter perturbado este equilíbrio, colocando uma pressão excessiva sobre os médicos e doentes, e interferindo assim numa formação de qualidade.


Hoje em dia, tenho a sorte de dar aulas a alunos de Medicina do King´s College, e comparo obviamente a minha formação com a destes, não considerando que a formação da FMUC fique de alguma forma atrás. No entanto, o ensino médico mudou muito e os alunos atuais no Reino Unido têm uma formação forte em técnicas de investigação e um ensino médico organizado num modelo PBL (problem base learning), o que contribui para saírem da faculdade com algumas aptidões que o ensino em Portugal só recentemente começou a incorporar.

Pessoalmente, a FMUC e o seu enquadramento na UC permitiu-me conhecer pessoas de todo o país num ambiente muito particular que só Coimbra possui. Tive a sorte de ter na FMUC os melhores colegas e amigos com que poderia sonhar, e isso faz com que não trocasse a FMUC por nenhuma outra!


Do que faz em Londres, qual é a principal diferença em relação à realidade portuguesa?

Em primeiro lugar, o tempo que possuo para o meu trabalho académico. Tenho um contrato clinico-académico em que só tenho de ver doentes um ou dois dias por semana, o que permite focar-me grandemente na minha investigação. Em segundo, a estrutura de apoio, permitindo que consulte um ‘expert’ em qualquer área com a qual esteja com dificuldades, seja na parte estatística, ‘software’ de neuroimagem, etc. Em terceiro, uma estrutura de ‘governance’ muito bem organizada, em que as hierarquias, funções e expectativas de desempenho estão construídas e definidas desde o início. Em quarto, uma organização meritocrática, com processos de avaliação regulares, justos e bem explicados. Em quinto, a massa crítica existente, permitindo que um grande número de profissionais esteja dedicado a uma área ou problema específico. A troca de ideias que daí advém é fundamental. Em sexto, a informalidade, onde todos nos tratamos pelo nome próprio. Todos me tratam por Tiago, só para os doentes é que sou o Dr. Marques (ou Marqués, pois o “e” mudo não é fácil de pronunciar). Trato o meu diretor por Oliver, o diretor do meu instituto por Ian e assim sucessivamente. Isto facilita imenso a comunicação, principalmente quando se é novo e se tem algum receio de interagir com quem está numa posição hierárquica superior. Esta informalidade e respeito pelo individuo transparece também para as diferenças entre profissões.

Em Portugal, os médicos criaram uma aura à volta da sua profissão que faz com que os outros profissionais se sintam de alguma forma profissionais de segunda. Talvez seja a minha impressão, mas é o que eu sinto. Tenho o privilégio de trabalhar diariamente com colegas de outras áreas, como biólogos, psicólogos, enfermeiros e técnicos de imagem, e temos todos exatamente as mesmas funções e responsabilidades. Por fim, a existência de estruturas bem financiadas. Se as ideias forem boas, existe sempre dinheiro para as pôr em prática.
Tiago Reis Marques
Trabalha doenças mentais como a esquizofrenia e a depressão.
Vê, lá fora, o estigma com que essas doenças ainda se deparam em Portugal?


Sim, infelizmente está presente um pouco em todo o mundo. No entanto, alguns países já têm feito um esforço recente na redução desse estigma e são cada vez mais visíveis campanhas nesse sentido. O facto de algumas pessoas, vista, socialmente como ‘role models’, terem assumido que sofreram de problemas de saúde mental tem ajudado muito. No Reino Unido, o Príncipe Harry veio assumir que procurou ajuda de um profissional de saúde mental para ultrapassar o luto associado à morte da sua mãe. A família real é, aliás, uma grande apoiante de causas para reduzir o estigma, sendo por exemplo impulsionadora de uma enorme campanha denominada “Heads Together”. Também a Organização Mundial de Saúde escolheu a depressão como seu tema principal em 2017, com o lema “Depression: let´s talk”. É a falar que o estigma se reduz, que as pessoas percebem que não têm de ter vergonha do que sofrem nem que são mais fracas por terem uma destas doenças. Todas estas campanhas visam normalizar a doença mental, pois é ridículo que com a prevalência destas doenças ninguém fale do elefante que está na sala. Em Portugal estamos a dar os primeiros passos e temos de fazer mais para o reduzir.


O que é, na sua visão, urgente mudar em Coimbra, para que a cidade
recupere a sua glória e aproveite o seu potencial?

Sou muito crítico do rumo que a cidade tem tomado, e isso é evidente em vários indicadores, incluindo o último censos, que mostra uma perda de habitantes. Os dirigentes desta cidade só têm de ver as boas práticas assumidas por outras cidades da mesma dimensão e implementá-las. Basta olhar para Braga, Cascais, Aveiro, etc. Copiar o que elas têm feito seria o mínimo! Tem de se captar investimento de qualidade, apostar nalgumas infraestruturas essenciais, promover e dar instrumentos para a fixação de empresas e consequente criação de emprego, ser proativo nessa busca, maximizar os pontos fortes da cidade, criar sinergias e potenciar a colaboração entre diferentes entidades. Ou fazemos isso com urgência ou a cidade irá afundar-se na sua insignificância. Temos de olhar para fora, sermos altruístas e concentrar esforços. Parar de olhar para a grandeza passada da cidade e concentrarmo-nos no futuro.
Tiago Reis Marques

Qual a perspectiva que tem da FMUC, de alguém que está fora, mas conhece e mantém contacto com a “casa”?

A minha visão é que a FMUC está a querer mudar e dou os parabéns por finalmente isso estar a acontecer. São estruturas pesadas, em que a mudança é sempre lenta, compreendo isso. No entanto, tem de se avançar rapidamente pois o tempo perdido foi substancial. Faço minhas as palavras do Prof. Pereira da Silva na entrevista ao #1 desta ‘newsletter’, em que dizia que “ou a FMUC mudava ou estava condenada à sua insignificância”.

Talvez por defeito profissional olho muito para métricas, pois vivo com uma pressão elevada para cumprir alguns indicadores de qualidade, seja na obtenção de bolsas de organismos relevantes (Wellcome Trust, Medical Research Council, etc), na publicação em revistas de alto impacto, ser autor ou coautor de ‘guidelines’ internacionais, entre outros. O caminho será sempre este, pois temos de ser capazes de quantificar o que fazemos. Ao olharmos para o ‘output’ em termos de investigação da FMUC vê-se que está bastante aquém do seu potencial. Se olharmos também para a satisfação dos alunos, não é superior à das outras faculdades, sendo também fraca a capacidade de retenção dos melhores médicos (seja na faculdade ou no hospital).

A eterna desculpa que estas mudanças não são possíveis porque isto é Portugal e são coisas que não dão para mudar, são isso mesmo, desculpas. Basta olhar para Braga, cuja faculdade de medicina, fundada no ano 2000 (Escola de Medicina da Universidade do Minho), é pujante, produz médicos extremamente capazes (melhores notas no exame de acesso à especialidade), produz investigação de qualidade mundial, e hoje em dia é, a meu ver, a melhor faculdade de medicina do país. Se voltasse a ser aluno de Medicina em Portugal, era lá que escolhia fazer a minha formação pré-graduada. Não o querer ver é sermos cegos funcionais, e continuar a insistir no mesmo modelo porque “sempre foi assim” é um suicídio organizacional.

Confio plenamente nos órgãos sociais da FMUC, considero a sua competência e empenho ímpares, temos de avançar rapidamente nas mudanças necessárias. E existem estruturas e organismos dentro da FMUC que já são unidades classificadas como excelentes nos rankings nacionais, só temos de replicar essas boas práticas. Preocupa-me, por fim, o elevado grau de endogamia existente na academia portuguesa, que foi recentemente demonstrado, e à qual a FMUC não escapa. A FMUC tem de se abrir para pessoas que fizeram a sua formação fora e que são capazes de trazer conhecimento de outras unidades. É essa mistura que irá enriquecer a FMUC.



Onde se vê daqui a cinco anos?

O passo natural será dirigir o meu próprio grupo de investigação, com um conjunto de investigadores que me permita continuar algumas das linhas de pesquisa às quais me tenho dedicado. Quero estar enquadrado num ambiente clinico-académico, onde possa fazer alguma investigação translacional, respondendo a questões clínicas em benefício direto ou indireto dos doentes. 


Tiago Reis Marques

Veria com bons olhos a possibilidade de, um dia, voltar a Coimbra?

Fui muito feliz enquanto vivi em Coimbra e continuo a ter uma grande relação afectiva com a cidade, onde está a minha família e amigos de toda a vida. Regresso à cidade com frequência e tenho sempre a sensação de regressar a casa. Quanto a voltar, deixei de fazer planos a longo prazo há já algum tempo. Saí no final de 2006 por três meses para fazer um estágio e, entretanto, passaram-se 11 anos. Se me perguntassem nessa altura se o meu percurso passava por ficar em Londres, responderia categoricamente que não. Sei que provavelmente irei sair de Londres nalguma altura da minha vida, pois é uma cidade onde não me vejo a envelhecer. Agora quando e para onde não sei, vai depender de muitos fatores profissionais e pessoais. Neste momento tenho um contrato com o Imperial e o King´s College até 2021, e apesar de poder sair quando quiser, também me permite pensar com calma os próximos passos. 


por Paulo Sérgio Santos
Fotografias D.R.

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