Os 15 dias que mudaram uma vida
Anabela recuperou e Diniz de Freitas ganhou uma espécie de chamamento. “Não sei se terá sido isso, mas às vezes, no nosso subconsciente, há relações que não conseguimos apreender e que ditam muito das escolhas que fazemos”. Desses anos recorda também as caminhadas de seis quilómetros até à escola primária de Pedregais, onde a mãe também era professora. “Fizesse chuva ou sol”. A adoração à mãe e ao pai é patente sempre que se refere a eles. “Eram pessoas humildes, embora com os seus estudos”, salienta.
De Duas Igrejas rumou a Braga, para fazer o liceu. Continuou a andar a pé, como fazia quando era mais pequeno. Na família, todos tinham boas notas e as ambições acabaram por ser naturais. “Os meus pais sabiam que eu queria ser médico, o meu irmão mais velho queria ser advogado, os outros queriam ser professores, e lá fizeram o esforço” de colocar os filhos no ensino superior.
É assim que surge Coimbra na vida de Diniz de Freitas e, mais tarde, da sua família. “O primeiro a vir para Coimbra fui eu. Não tinha cá pessoas conhecidas, nada. Coimbra, naquela altura, tinha um certo encanto, que agora já não tem. Era considerada a cidade do conhecimento”.
O irmão mais velho é o segundo a vir, mas para Direito, dado que o curso não existia no Porto.
Em Coimbra faz o percurso similar a muitos. Excelente aluno, por forma a manter a bolsa atribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian, o antigo médico começou por viver numa república que existia nas traseiras da atual Biblioteca Geral. Essa rua ia, aliás, dar ao edifício que era ocupado à data pela Associação Académica de Coimbra, e que hoje alberga os Serviços Académicos da UC, o Palácio dos Grilos. Aí, Diniz de Freitas deu asas a uma das suas paixões de estudante, cantar.
“Um dia tive de fazer uma amputação a um soldado que foi apanhado por um autotanque. Ele estava a dormitar e o condutor andou com o autotanque para trás. Chamaram-me à pressa e lá fui eu, com uns enfermeiros do Porto. Parte da perna estava completamente esfacelada, de maneira que tive de a serrar -andávamos sempre com um serrote- e fazer ali uma hemóstase”. Ouve-se a história e fica-se boquiaberto. “Está a ver o que é uma pessoa ter apenas conhecimentos elementares, teóricos? Na prática, nunca o tinha feito, mas o certo é que, no Hospital Militar de Luanda, os médicos ficaram surpreendidos com o resultado”.
Conta outras histórias, mas pede segredo. Não é o caso da do parto que também teve de efetuar. Já tinha visto muitos, mas nunca tinha feito um. “Levaram-me à sanzala e eu entro na cubata, tudo escuro, e vejo uma velha, a curandeira, que não me queria deixar entrar, lá entendia que era ela que sabia. O chefe pôs cobro à proibição e mandou-me avançar. Vi-me à rasca, até suava. Via a cabeça do bebé, a jovem em esforço, mas às tantas, talvez ao fim de meia hora, com a ajuda do enfermeiro, lá saiu a criança. Se aquilo tinha corrido mal, era uma chatice, a curandeira ainda dizia que eu é que tinha matado a criança”. E pelas palavras percebe-se qual poderia ter sido o desfecho.
Homem crente, tem ainda um livro para terminar de escrever. Chama-se “Em busca de Deus e de um mundo melhor”. A conversa aproxima-se do final. Cita, desiludido com o individualismo da sociedade atual, Baltasar Grácian: “é material o peso do ouro, é moral o peso do homem”. Percebe-se a sua dimensão.