Do curso 
de 1959

Diniz de Freitas

Os 15 dias que mudaram uma vida

VOICEmed #4
“Não me arrependo desses 15 dias. Agora, se me arrependesse, não havia nada a fazer. Mas não me arrependo [risos]”. A conversa não começou desta forma com o antigo diretor do Serviço de Gastrenterologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) e docente da Faculdade de Medicina da UC, Diniz de Freitas. Homem de conversa fácil e humor apurado, contou a meio da entrevista de onde veio esse intervalo de tempo. Mas já lá vamos.

Poveiro de nascença, corria o ano de 1935, foi na infância que o antigo médico percebeu que queria ser o que viria a ser. Com o pai professor de liceu em Braga, Diniz de Freitas vivia em Duas Igrejas, aldeia perto de Vila Verde, distrito de Braga, com a mãe e os irmãos. Tinha “cinco ou seis anos” quando uma vizinha e colega de escola, com quem costumava brincar, “a Anabela”, adoeceu. “Era a febre tifoide, que naquela altura era quase sempre fatal. Um dia apareceu lá um médico, espécie de João Semana, de uma aldeia próxima. Figura imponente, de barbas brancas. Estava a um canto e vejo-o aproximar-se da cabeceira, observá-la, dizer aos pais que era coisa grave, dar a medicação. Nunca mais me esqueci daquela imagem na minha vida”.

Às vezes, no nosso subconsciente, há relações que não conseguimos
apreender e que ditam muito das escolhas que fazemos 

Anabela recuperou e Diniz de Freitas ganhou uma espécie de chamamento. “Não sei se terá sido isso, mas às vezes, no nosso subconsciente, há relações que não conseguimos apreender e que ditam muito das escolhas que fazemos”. Desses anos recorda também as caminhadas de seis quilómetros até à escola primária de Pedregais, onde a mãe também era professora. “Fizesse chuva ou sol”. A adoração à mãe e ao pai é patente sempre que se refere a eles. “Eram pessoas humildes, embora com os seus estudos”, salienta.

De Duas Igrejas rumou a Braga, para fazer o liceu. Continuou a andar a pé, como fazia quando era mais pequeno. Na família, todos tinham boas notas e as ambições acabaram por ser naturais. “Os meus pais sabiam que eu queria ser médico, o meu irmão mais velho queria ser advogado, os outros queriam ser professores, e lá fizeram o esforço” de colocar os filhos no ensino superior.

É assim que surge Coimbra na vida de Diniz de Freitas e, mais tarde, da sua família. “O primeiro a vir para Coimbra fui eu. Não tinha cá pessoas conhecidas, nada. Coimbra, naquela altura, tinha um certo encanto, que agora já não tem. Era considerada a cidade do conhecimento”.
O irmão mais velho é o segundo a vir, mas para Direito, dado que o curso não existia no Porto.

FMUC

Em Coimbra faz o percurso similar a muitos. Excelente aluno, por forma a manter a bolsa atribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian, o antigo médico começou por viver numa república que existia nas traseiras da atual Biblioteca Geral. Essa rua ia, aliás, dar ao edifício que era ocupado à data pela Associação Académica de Coimbra, e que hoje alberga os Serviços Académicos da UC, o Palácio dos Grilos. Aí, Diniz de Freitas deu asas a uma das suas paixões de estudante, cantar.


Tive a sorte de ter como companheiros o Zeca Afonso, que cantava ao meu lado,
o Rolim e o Machado de Soares, cantores de fado notáveis, e o Luiz Goes. 

“Andei no Orfeon durante sete anos, enquanto estudante. Tive a sorte de ter como companheiros o Zeca Afonso, que cantava ao meu lado, o Rolim e o Machado de Soares, cantores de fado notáveis, e o Luiz Goes. Quatro celebridades da canção coimbrã”. Nota-se o orgulho na voz, em especial quando refere o nome de Zeca Afonso, uns anos mais velho, mas uma pessoa com quem desenvolveu uma relação próxima.

Dos tempos de mocidade na faculdade de Medicina, como refere, relembra ainda a mudança dos pais para Coimbra, “porque já não conseguiam aguentar as despesas”. Foi ainda presidente do Lactário do Centro Académico de Democracia Cristã (CADC). O CADC, atual Instituto Universitário Justiça e Paz, era uma instituição “um bocadinho do contra”, onde foi desenvolvendo o seu perfil cívico e a sua postura política, a neutralidade e imparcialidade que são próprias do seu carácter e do seu temperamento. “Nunca tive filiações partidárias e sempre comunguei tanto com ideias de esquerda como com ideias de direita”, acentua Diniz de Freitas.

No último ano de faculdade, durante o estágio, o jovem Diniz de Freitas está, uma tarde, sentado nos claustros dos antigos Hospitais da Universidade de Coimbra. Este é o início da história dos 15 dias que lhe mudaram a vida. “Às tantas aparece um senhor que se senta à minha beira. Não o conheci porque eu ia pouco às aulas teóricas, mas parecia-me o professor Gouveia Monteiro”. Parecia e era. Tinha estado em Filadélfia, nos Estados Unidos, e queria dedicar-se à Gastrenterologia. “«Perguntei a colegas seus como é, tenho boas referências suas, e gostava muito de o convidar para ser meu assistente», disse-me ele”. Diniz de Freitas pediu um tempo para pensar, no qual todas as pessoas com quem partilhava a história o chamavam louco e diziam que tinha de aceitar, “qualquer um aceitava”.

Então não é que quinze dias depois, chama-me outro professor da área da Cardiologia, Mário Trincão. 

Assim foi. “Fui ter com ele à Pneumologia, em Celas, para dizer que aceitava”. Pequeno parêntesis na história: durante o curso, Diniz de Freitas tinha inclinação para a Cardiologia, onde até faz o estágio, e que é, curiosamente, a especialidade que viria a ser escolhida por um dos seus irmãos mais novos “Então não é que quinze dias depois, chama-me outro professor da área da Cardiologia, Mário Trincão. «Oh Diniz de Freitas, queria falar consigo, tinha aqui um lugar de assistente...». Tive de lhe contar a verdade, que tinha sido convidado pelo professor Gouveia Monteiro. «Pronto, está muito bem entregue»”.

Passa então a ter a Gastrenterologia como paixão. “Na altura, a especialidade ainda não estava autónoma. Mas em meia dúzia de anos, com o aparecimento da endoscopia, houve uma evolução brutal. Como tive a sorte de ter grandes mestres, inclusive no estrangeiro, acabei por gostar da endoscopia digestiva, mas também das doenças do aparelho digestivo”. É no estrangeiro, mais precisamente na Alemanha, que contacta com os últimos avanços tecnológicos, que revolucionam a forma como a especialidade era praticada. “Por causa dos resquícios da guerra, a Alemanha mantinha ótimas relações com o Japão, que era um país tecnologicamente evoluído, em especial na endoscopia digestiva moderna. Assim, eram enviados protótipos de endoscópios modernos para Hamburgo”, uma das cidades onde esteve.

Mas antes, a guerra colonial. Esteve 28 meses em Angola. Revive esse tempo em que foi para África recém-licenciado, com uma “preparação clínica elementar”, longe de estar pronto para o que viria a encontrar.
Diniz de Freitas
Diniz de Freitas

“Um dia tive de fazer uma amputação a um soldado que foi apanhado por um autotanque. Ele estava a dormitar e o condutor andou com o autotanque para trás. Chamaram-me à pressa e lá fui eu, com uns enfermeiros do Porto. Parte da perna estava completamente esfacelada, de maneira que tive de a serrar -andávamos sempre com um serrote- e fazer ali uma hemóstase”. Ouve-se a história e fica-se boquiaberto. “Está a ver o que é uma pessoa ter apenas conhecimentos elementares, teóricos? Na prática, nunca o tinha feito, mas o certo é que, no Hospital Militar de Luanda, os médicos ficaram surpreendidos com o resultado”.

Conta outras histórias, mas pede segredo. Não é o caso da do parto que também teve de efetuar. Já tinha visto muitos, mas nunca tinha feito um. “Levaram-me à sanzala e eu entro na cubata, tudo escuro, e vejo uma velha, a curandeira, que não me queria deixar entrar, lá entendia que era ela que sabia. O chefe pôs cobro à proibição e mandou-me avançar. Vi-me à rasca, até suava. Via a cabeça do bebé, a jovem em esforço, mas às tantas, talvez ao fim de meia hora, com a ajuda do enfermeiro, lá saiu a criança. Se aquilo tinha corrido mal, era uma chatice, a curandeira ainda dizia que eu é que tinha matado a criança”. E pelas palavras percebe-se qual poderia ter sido o desfecho.


Julguei que o gajo me ia dar um tiro

Tem mais episódios caricatos, já em Portugal, no seu consultório na Rua Alexandre Herculano. Ri-se enquanto fala do senhor da Polícia Judiciária que foi a uma consulta por causa de uma úlcera no estômago, começa a disparatar e pega numa arma que trazia na mala. Vociferava sobre alguém e ameaçava dar um tiro nessa pessoa. “E então pega na pistola e vira-a para mim.

- Há dias quase que lhe dava um tiro.

- Ouça lá...

- Não esteja com coisas, estou a dizer-lhe...

Julguei que o gajo me ia dar um tiro.

- Ele merecia um tiro!

Com muita calma, lá lhe disse «Ouça, dou-lhe toda a razão, o senhor tem toda a razão». Respondeu-me «O senhor é que me entende!». O certo é que consegui acalmar o homem
e enfiar-lhe a pistola na pasta dele”. Dias mais tarde apanhou-o novamente no hospital
e chamou a Psiquiatria.

O que mais marcou Diniz de Freitas durante a sua prática foi diagnosticar cancros, em especial a jovens. “Gostava muito de fazer endoscopias e recordo três ou quatro casos de tumores no estômago que me arrepiaram completamente. É incrível uma pessoa introduzir uma sonda, começar a espreitar e ver um cancro num jovem com 20 e poucos anos, acabado de casar”.

Tem de se encontrar um sistema em que o doente seja central 

Hoje em dia, o antigo médico dedica-se a pôr a leitura em dia, a refletir sobre o atual estado da saúde e a escrever. Pensa que tem de haver mudanças no Sistema Nacional de Saúde, discorda das polarizações que se atingiram, totalmente estatal ou totalmente privatizado.
O foco, na sua opinião, está desviado daquele que deveria ser o cerne da questão. “Tem de se encontrar um sistema em que o doente seja central. E o doente devia ter, na minha perspetiva, o direito de escolher o médico ou a instituição hospitalar que desejasse. Isto é, para mim, o sistema de saúde ideal. É quase uma utopia, mas não seria se houvesse uma reflexão coletiva em torno do tema”. Para si, o doente, e escutar o doente, sempre foi primordial.
Diniz de Freitas

Homem crente, tem ainda um livro para terminar de escrever. Chama-se “Em busca de Deus e de um mundo melhor”. A conversa aproxima-se do final. Cita, desiludido com o individualismo da sociedade atual, Baltasar Grácian: “é material o peso do ouro, é moral o peso do homem”. Percebe-se a sua dimensão. 

por Paulo Sérgio Santos
Fotografias gentilmente cedidas por Diniz de Freitas