De olhos postos na nanotecnologia 

Isto é FMUC

Melhorar a permeabilidade do epitélio corneano – a camada externa da córnea, constituída por diversas camadas de células epiteliais – por forma a que não tenha de ser removido no tratamento do queratocone: este é o objetivo do Projeto Exploratório ‘GoldNKer’. Financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT, EXPL/BIA-BQM/0042/2021), este projeto é liderado por Elisa Julião Campos, investigadora do Instituto de Investigação Clínica e Biomédica de Coimbra da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (iCBR-FMUC).


A utilização de nanopartículas no tratamento de doenças oculares
Com início em janeiro deste ano e conclusão prevista para junho de 2023, este é um projeto que pretende validar uma solução baseada na nanotecnologia. Com recurso a um sistema que inclui nanopartículas sensíveis à luz, pretende-se que a sua utilização melhore o tratamento do queratocone, uma doença ocular caracterizada por uma deformação progressiva da córnea, que assume a forma de um cone, levando à diminuição da visão. Esta solução, que preserva o epitélio corneano, permitirá, assim, mais segurança, conforto e um tempo de recuperação mais rápido aos doentes.

Conforme esclarece Elisa Julião Campos, a ideia para este projeto surgiu da colaboração com Lino Ferreira, investigador do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra (CNC-UC) e da FMUC. “O nosso objetivo tem sido o desenvolvimento de nanopartículas sensíveis à luz, isto é, a radiação com um determinado comprimento de onda, como estratégia no tratamento de doenças oculares. Posteriormente, fomos desafiados pela Professora Maria João Quadrado, médica oftalmologista, professora da FMUC e investigadora do iCBR, a desenvolver uma solução alternativa ao protocolo convencional utilizado no tratamento do queratocone, crosslinking da córnea.”, explica.

“Foi já demonstrado, nomeadamente pelo grupo de investigação do Lino Ferreira, que nanopartículas metálicas aumentam a permeabilidade das barreiras biológicas, como, por exemplo, a barreira hematoencefálica. Assim, aquilo que pensámos fazer foi aplicarmos o mesmo princípio, tentando, neste caso, ultrapassar a barreira que existe na córnea”, indica.

No tratamento das doenças oculares, a maioria dos fármacos são aplicados topicamente, através de colírios. “Mas estes têm baixa eficácia, uma vez que apenas cerca de cinco por cento desses fármacos atravessam a córnea: o resto é eliminado pela drenagem lacrimal”, refere. “Ao tentarmos aumentar a permeabilidade da córnea, estamos também a aumentar a biodisponibilidade do fármaco e, por conseguinte, a aumentar a eficácia do tratamento. Assim, acreditamos que a nossa solução não se limita ao tratamento do queratocone apenas, mas de outras doenças oculares cuja abordagem terapêutica consiste na administração tópica de fármacos”, salienta Elisa Julião Campos.


As quatro etapas do projeto
O projeto ‘GoldNKer’ encontra-se dividido em quatro etapas. Numa primeira etapa, transversal a toda a duração do projeto, a principal missão é a de otimizar o sistema. “Este sistema já existe. Aquilo que temos de fazer é melhorá-lo para o fim a que se destina: é nisso que consiste esta etapa de otimização”, observa.

A segunda etapa diz respeito ao estabelecimento de condições de segurança. “Este é um sistema ativado por radiação de um dado comprimento de onda. Esta radiação tem de ser, obviamente, utilizada dentro dos parâmetros de segurança para aplicação no olho, em particular, na retina – a parte do olho que capta a luz e a envia ao cérebro”, indica, “até porque nem toda a radiação pode ser aplicada no olho, e aquela que é aplicável tem tempos de exposição limitados”.


Tal como explica Elisa Julião Campos, esta etapa é especialmente importante. “A segurança de utilização da radiação não tem que ver com o comprimento de onda per se. Por exemplo, uma coisa é uma pessoa estar exposta ao sol durante cinco minutos, e outra coisa diferente é a mesma pessoa estar exposta ao sol durante uma hora; de igual modo, uma coisa é a exposição ao sol durante uma hora no Inverno ou no Verão. É isso que pretendemos definir nesta segunda parte do projeto: quanto tempo e que potência de radiação podemos utilizar sem provocar dano na retina”, conclui.

Na terceira etapa, já com o sistema otimizado e as condições de segurança definidas, o objetivo é o de avaliar se o sistema é eficiente, ou seja, se aumenta a permeabilidade da córnea ao fármaco-modelo. “Para isso, vamos utilizar olhos ex vivo de porco, dado que têm uma anatomia semelhante à dos olhos humanos. Esta etapa é aquela em que fazemos a chamada proof of concept, isto é, em que vamos mostrar que a nossa ideia funciona”, conta Elisa Julião Campos.

A quarta e última etapa diz respeito a um pequeno estudo-piloto que será realizado em olhos humanos, para confirmar se os resultados são semelhantes aos observados no modelo animal. “O olho do porco e do humano é semelhante, mas a córnea do porco tem mais camadas de células epiteliais do que a do humano. A do porco tem cerca de sete camadas, e a humana cerca de cinco. Por isso, provavelmente até teremos melhores resultados neste estudo-piloto, uma vez que a córnea do porco é menos permeável do que a dos humanos”, afirma.

A par destas quatro etapas, existem ainda uma componente de disseminação e comunicação de resultados e outra componente que envolve o doente. “A investigação translacional não é constituída apenas pelo investigador e pelo médico. Desta investigação faz também parte o doente”, começa por indicar Elisa Julião Campos.

“E isso é muito importante, já que o doente é a pessoa que melhor conhece o impacto da doença na sua qualidade de vida. O médico avalia e trata os sintomas, mas quem lida diariamente com a doença é o doente”, salienta. Nesse sentido, este projeto contempla, igualmente, a aplicação de um questionário, realizado no âmbito do trabalho de final de curso de um estudante do Mestrado Integrado em Medicina (MIM) da FMUC.

“Este questionário pretende avaliar o impacto do queratocone no dia-a-dia do doente, em atividades para nós tão banais quanto estar ao computador ou conduzir à noite. Para uma pessoa com queratocone, um dia como o de hoje, seco e com muito calor, é difícil de suportar, e estamos a falar de pessoas jovens. Esta doença tem normalmente início na adolescência, e vai progredindo até aos 20, 30 anos de idade”, destaca.

Este questionário, já validado internacionalmente, foi primeiro realizado na Austrália, e, entretanto, aplicado em diversos países como o Brasil, a Dinamarca e a Itália. Em Portugal, será aplicado pela primeira vez, em colaboração com o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), no âmbito deste projeto. Os seus resultados permitirão conhecer um pouco melhor as pessoas que lidam com esta doença, que sintomas relatam e que impacto esta tem no seu quotidiano.


A consciencialização para o queratocone
Para além da “componente puramente de bancada”, este é um projeto que visa ainda sensibilizar crianças e jovens nas escolas acerca do queratocone, doença ocular com um forte impacto na qualidade de vida dos seus portadores.

“São atividades que vão ser desenvolvidas nas escolas. Serão os próprios alunos a produzirem e divulgarem estes conteúdos sobre o queratocone, orientados, obviamente, por médicos e investigadores”, explica Elisa Julião Campos, adiantando que este será um trabalho desenvolvido por forma a ser abordado numa perspetiva holística, considerando os diversos campos de saber, como as artes, as línguas e a economia, para além da ciência.

“Porque esta doença é bem mais frequente do que pensamos, é importante alertarmos para esse facto. Devemos estar atentos para todas as doenças oculares, não apenas aquelas que possivelmente teremos aos 70 ou 80 anos de idade, mas aquelas que afetam pessoas mais jovens”, observa. “Com estas atividades desenvolvidas nas escolas, pretende-se que os alunos percebam as dificuldades que uma pessoa com esta doença enfrenta”, complementa.

Numa fase inicial, o queratocone manifesta-se de forma semelhante à da miopia, uma vez que também provoca falta de visão ao longe, sendo também confundida com astigmatismo. “É como se fosse [o queratocone] um astigmatismo mais grave”, esclarece Elisa Campos.

“No queratocone, a córnea, que é a parte transparente do olho, fica mais fina e, por essa razão, deforma. Assim, em vez de esférica, a córnea assume a forma de cone, o que provoca alteração na visão. Os doentes apresentam diminuição acentuada da visão, imagens duplas e desfocadas, e alta sensibilidade à luz. De facto, quando olham para luzes, veem halos, como se essas luzes fossem um grande clarão, o que impossibilita, por exemplo, a condução à noite”, observa.

Após o diagnóstico da doença, realizado com recurso a uma análise da topografia e da espessura da córnea, é, normalmente, recomendada a cirurgia. Nessa cirurgia, na qual é feita a aplicação de um fármaco à superfície do olho, é removido o epitélio, o que faz com que o doente fique, durante algumas semanas após o procedimento cirúrgico, sujeito a infeções oculares. “É com o intuito de eliminar essas situações de desconforto que a Oftalmologia está, atualmente, focada em desenvolver uma estratégia que não obrigue à remoção do epitélio corneal”, refere.

“E isso é exatamente o que propomos fazer com este projeto, aumentando a permeabilidade do epitélio para que seja possível a administração do fármaco na córnea sem necessidade da sua remoção, utilizando recursos que os médicos já têm”, menciona Elisa Julião Campos. “No fundo, estamos a propor uma estratégia de baixo custo, já que os médicos podem continuar a utilizar os mesmos fármacos e equipamentos cirúrgicos, sendo que a única coisa que fazem de diferente é a aplicação do sistema que estamos a desenvolver. Neste momento, os nossos resultados preliminares mostram que há, de facto, um aumento da permeabilidade ao fármaco”, destaca.


A equipa multidisciplinar e o impacto esperado
Conforme referido anteriormente, a equipa do projeto ‘GoldNKer’ tem como investigadora responsável Elisa Julião Campos. “A Professora Maria João Quadrado é co-investigadora responsável”, refere.


A componente de desenvolvimento de materiais é feita por Lino Ferreira e por Vítor Francisco, também investigador do CNC-UC. “Na componente das Ciências da Visão, para além de mim está também o investigador Francisco Ambrósio, que coordena o grupo do qual faço parte”, afirma. “Mas no olho não existem apenas células, e neste projeto lidamos com lentes, radiação, difração de luz… Quem nos está a ajudar nessa componente é o Professor Miguel Morgado, do Departamento de Física da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra [FCTUC] e também investigador do CIBIT [Centro de Imagem Biomédica e Investigação Translacional]”, complementa Elisa Julião Campos.

Da equipa de investigação deste projeto fazem ainda parte João Gil, médico oftalmologista do CHUC e aluno de doutoramento da FMUC, e, a colaborar no projeto na componente que diz respeito à tecnologia farmacêutica, estão Carla Vitorino e João José Sousa, professores da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra (FFUC) e investigadores do Centro de Química de Coimbra (CQC).

Elisa Julião Campos afirma que, acima de tudo, este projeto terá um importante impacto em termos clínicos, uma vez que vai garantir mais conforto e segurança aos doentes. “A remoção do epitélio é um processo extremamente doloroso, que, desta forma, será evitado, o que também vai garantir que o doente recupere mais facilmente a sua visão e vida normal, sem riscos acrescidos, como infeções oculares”, enfatiza.

Mas a investigadora responsável por este projeto acredita que o impacto se fará também sentir em termos económicos. “Quando uma pessoa com queratocone é intervencionada cirurgicamente, obviamente que não pode ir trabalhar. Se conseguirmos acelerar o processo de recuperação destes doentes, o absentismo laboral terá menor duração. Além disso, e no caso de doentes ainda dependentes dos pais, há também um impacto positivo nas finanças familiares, já que vai haver uma diminuição dos custos associados ao tratamento desta patologia”, observa.

“Algo que considero também muito importante é que, como esta é uma doença que afeta pessoas em idade escolar, quer no ensino secundário, quer universitário, este procedimento vai acabar por proporcionar uma melhor aprendizagem e também vida social”, salienta.


Do ensino à investigação
Licenciada em Bioquímica, Elisa Julião Campos trabalhou, após a licenciatura e durante seis anos, como professora dos Ensinos Básico e Secundário. “A dada altura, decidi enveredar pela investigação, e optei pelo Mestrado em Engenharia Bioquímica. Desenvolvi o meu trabalho sob a orientação da Professora Helena Gil, em biomateriais poliméricos, curiosamente aplicados à Oftalmologia”, conta.

Esse foi o primeiro contacto que Elisa Julião Campos teve com a área das Ciências da Visão. Depois, seguiu-se o doutoramento no ITQB NOVA, o Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier, em Oeiras. “Fiz o doutoramento em nanotecnologia, em que o trabalho consistia no desenvolvimento de um nanossensor. Aí, por coincidência trabalhei também com nanopartículas, mas como analito”, constata.

No final deste ciclo de estudos, Elisa Julião Campos concorreu a uma bolsa de pós-doutoramento através da FCT no iCBR (à data, IBILI - Instituto Biomédico de Investigação em Luz e Imagem). “Como bolseira de pós-doutoramento, foquei-me no estudo de aspetos celulares e moleculares das doenças da retina, particularmente da retinopatia diabética, tendo acompanhado também um colega médico oftalmologista, Doutor António Campos, do Centro Hospitalar de Leiria, durante o seu doutoramento”, indica.

“Foi uma fase muito importante para mim, apesar de depois não ter seguido esse trabalho de investigação mais fundamental em termos de doenças oculares”, observa, “porque me permitiu estar em contacto direto com os médicos oftalmologistas e perceber como podemos fazer parcerias proveitosas, e porque me permitiu também perceber que, claramente, eu estava mais interessada na aplicação nanotecnológica às Ciências da Visão”.

Hoje, Elisa Julião Campos diz estar motivada e confortável no desempenho do seu trabalho, já que tem oportunidade de fazer investigação em Nanomedicina. A maior dificuldade que enfrenta, afirma, é ter de dedicar-se a várias tarefas para além da investigação. “Há falta de pessoas que realizem tarefas específicas, o que faz com que os investigadores tenham de fazer a investigação propriamente dita, mas, simultaneamente, tenham de desempenhar tarefas de organização, gestão financeira, comunicação… Isto desgasta-nos muito e tira-nos energia para aquilo em que realmente podemos acrescentar valor, que é à investigação”, lamenta.

Mas apesar de “todo o desgaste e de todo o esforço”, Elisa Julião Campos refere que o comprometimento e empenho de todos os envolvidos neste projeto é o que a faz “andar para a frente” todos os dias. “É isso de que gosto mais no meu trabalho: estar sempre em movimento, sempre insatisfeita… Não uma insatisfação no sentido de descontentamento, mas antes de querer sempre, com humildade, recomeçar e saber mais”, garante.

por Luísa Carvalho Carreira (texto e fotografia de topo)
fotografias de Sara Oliveira