Do curso
de Medicina 

De coração na Pediatria

No final do curso de Medicina, diz ainda ter pensado em seguir Cardiologia, embora a Pediatria já lhe ocupasse o pensamento. "A Pediatria esteve sempre presente, mas eu temia não aguentar, tinha receio...", revela. Mas aguentou, muito bem (e ainda bem).

Ao longo de quase quatro décadas, Jeni Canha dedicou-se – de coração – às atividades clínica e docente, sendo uma figura incontornável da Pediatria no País, especialmente pelo notável trabalho que desenvolveu na luta contra os maus-tratos a crianças e jovens. “Passei a vida a dar voz a estas crianças nos tribunais. Isso é extremamente duro e muitíssimo desgastante, mas não dou por tempo perdido”, assegura. “As minhas coronárias é que talvez tenham sofrido as consequências desse desgaste!”, brinca.

Nascida no dia 1 de setembro de 1949, em Alpiarça, Jeni Canha fez a instrução primária na terra onde nasceu, “uma vila ribatejana média, de predomínio rural”. Depois, frequentou ainda em Alpiarça um colégio particular, entretanto fundado, do primeiro ao quinto ano [atuais 5º e 9º anos]. O sexto e sétimo anos [ensino secundário] foram feitos no Liceu Nacional de Santarém.

Dos tempos de criança e adolescente, guarda as melhores memórias. “Cada vez mais me dou conta de que tive uma infância muito feliz, e isto não é cliché… Tendo vindo depois a dedicar-me à área a que me dediquei, percebo ainda mais o valor da minha infância”, constata. “Quando agora andei à procura de fotografias, estive a ver algumas de quando era pequena. Tenho um irmão, mas, como sou a primeira filha, vi que, realmente, o meu pai fez uma boa reportagem fotográfica!”, graceja.

Jeni Canha afirma ter-se sentido sempre uma criança desejada e louva o “papel excecional” dos pais nesse sentido, especialmente o do pai. “Admiro-o muito. Estamos a falar de uma infância passada em meados dos anos 50, no Ribatejo, numa altura em que os homens praticamente não saíam com os filhos e não sabiam nada deles”, contextualiza. “O meu pai não era assim. Era uma pessoa humilde, mas atenta. Tenho esta recordação muito viva na minha memória: ele foi o único pai que acompanhou a filha no primeiro dia de aulas”, enaltece.


“Sempre fui muito aventureira! Em criança, fiz coisas incríveis que, se visse os meus filhos, ou, agora, os meus netos, fazerem, ficava arrepiada…”, admite. “E sempre gostei muito da escola também. Fiquei amiga, inclusive, de vários dos meus professores”, afirma.

“Lembro-me ainda de, em criança, gostar muito do circo e de adorar os palhaços, tanto que, na ginástica, dizia que andava a treinar para o circo! Estávamos numa vila pequena, pelo que a vinda do circo era marcante. Tínhamos lá cinema, mas, para os miúdos, os filmes passavam praticamente só no Natal e no Ano Novo. Ou o filme, porque era sempre o ‘Bucha e Estica’! Sabíamos aquilo de cor…”, conta. “Já com uns 12 ou 13 anos de idade, li uma entrevista feita a um senhor que trabalhava como palhaço no circo, na qual ele dizia que a vida deles podia ser extremamente triste, mas, que no palco, essa tristeza não podia existir. Aquilo tocou-me imenso”, revela.

Em 1967, Jeni Canha entra para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), tendo concluído o curso no ano de 1973. “Sempre disse aos meus pais que queria ser médica, mas não faço ideia da razão pela qual sempre tive essa vontade. Os meus amigos de infância até se queixavam, porque eu massacrava-os um bocado: fazia, com água e farinha, uma espécie de gesso, que lhes colocava com umas ligaduras!”, recorda.

Jeni Canha afirma, por isso, que não houve qualquer tipo de influência na escolha do curso de Medicina. “Sou, aliás, a primeira médica lá da terra. Ao contrário do que, naquela altura, já acontecia aqui nas Beiras, em que as pessoas que tinham essa possibilidade, iam para a universidade fazer uma licenciatura, lá isso não acontecia. Não havia esse hábito, por assim dizer, e não havia especialmente para com as raparigas, que eram educadas para saberem fazer modas, bordados e cozinhar, para ‘casarem bem’ e ficarem no lar”, observa.

Já dos tempos de estudante universitária, Jeni Canha recorda as “amizades que ficaram para a vida”, mas também a crise académica de 1969, que aconteceu quando frequentava o segundo ano de curso. “Tive uma participação ativa nessa época. Já tinha uma cultura política muito razoável no contexto familiar. O meu pai foi preso político, e isso marcou-me, tanto a mim quanto ao meu irmão. Por isso, tínhamos uma certa solidez na formação política”, constata.

Ainda durante o curso, Jeni Canha, que admite ter tido sempre um certo acanhamento em integrar grupos teatrais, apesar de ter o “bichinho do teatro”, chegou a estar no GEFAC, o Grupo de Etnia e Folclore da Academia de Coimbra. “Estava convencidíssima de que dançava muito bem, porque sempre dancei, desde miúda, mas quando entrei para o GEFAC, em 67, 68, eles já tinham os grupos formados e não me convocavam para os espetáculos. Por isso, resolvi dizer-lhes ‘Adeus, boa tarde!’ e saí de lá muito enxofrada”, conta, entre risos.

Após o curso, Jeni Canha fez o ano de internato geral e, no ano seguinte, esteve no Serviço Médico à Periferia. “Fiz este serviço integrada num grupo de seis amigos, cada um já com uma orientação para uma determinada especialidade. Eu recebia muitos casos da Cardiologia, mas também me eram passados casos de Pediatria, que começou aí a ganhar uma maior relevância no meu percurso”, faz saber.

Em 1977, o Serviço de Pediatria, que já tinha tido instalações no antigo hospital [atual Colégio de São Jerónimo] e na Maternidade Doutor Daniel de Matos, muda-se para o agora antigo Hospital Pediátrico de Coimbra (HPC), que oferecia melhores condições. “Aí, a escolha da Pediatria como especialidade a seguir tornou-se ainda mais premente, não apenas pelas instalações, mas principalmente pelas pessoas que me influenciaram positiva e decisivamente”, adianta.


Não faria vida académica e docente, imagino eu, se não fosse o Professor.

“Falo de figuras e pilares-mestre da Pediatria em Portugal: Professor Carmona da Mota, Doutor Nicolau da Fonseca, Professor Torrado da Silva e Doutor Luís Lemos”, elenca, “que aqui fizeram uma escola de Pediatria que foi a base de toda a Pediatria portuguesa”. Jeni Canha afirma que foi a partir dessa altura que se deu “a grande viragem na Pediatria”, com a redução da mortalidade infantil, e que houve um grande envolvimento de todos aqueles que integraram a equipa que fez o internato desta especialidade. “Vestíamos a camisola… Saíamos do hospital e íamos aos centros de saúde fazer ações de formação. Foi um período maravilhoso”, relembra.  

É no ano de 1985 que Jeni Canha passa, igualmente, a dedicar-se à docência na FMUC, uma atividade à qual nunca antes pensou dedicar-se. “Só aceitei por ter sido a convite do Professor Carmona da Mota. Não faria vida académica e docente, imagino eu, se não fosse o Professor”, indica.

Apesar de não fazer parte dos seus planos, afirma ter gostado imenso da atividade docente, embora o desempenho das suas atividades tenha sido predominantemente de âmbito hospitalar, conforme faz saber: “estive sempre como Professora Convidada na FMUC, onde fiz depois o meu doutoramento, em 1998”.

Jeni Canha, que assumiu a regência da cadeira de Pediatria a partir do ano de 1999, dando seguimento a Carmona da Mota, conta que sempre tentou transmitir aos seus alunos a vertente prática desta especialidade, e que acredita ter sido essa postura que fez com que as suas aulas fossem tão frequentadas, apreciadas e bem avaliadas por todos.










“A partir do ano de 2000, fui sempre eleita como a melhor professora do quinto ano médico, e a cadeira de Pediatria considerada a mais bem organizada do curso. É um motivo de muito orgulho… Da primeira vez que recebi esta distinção, no Dia da Faculdade de Medicina, o Professor Carmona da Mota estava na assistência, e foi muito bom ter podido viver com ele esse momento, do qual não estava à espera”, confessa.

Ao longo dos seus extensos percursos académico e clínico, Jeni Canha criou a Unidade de Doenças Metabólicas do HPC e dedicou-se ao estudo e acompanhamento de crianças vítimas de maus-tratos. Nesse âmbito, coordenou o Núcleo de Estudo da Criança de Risco do HPC, que fundou em 1985.

O particular interesse pelos casos de crianças maltratadas surgiu ainda no decorrer do primeiro ano do internato de Pediatria. “Estávamos em 1978, e apareceu o caso de uma bebé transferida de um hospital distrital, porque tinha equimoses, entre muitas outras coisas… Era pequenina, tinha apenas três meses de vida”, começa por relatar.

Ainda me arrepio ao pensar nisso.

“Ela já tinha sido observada e estudada no hospital distrital. Foi depois observada por nós e não conseguíamos descobrir o que se passava com ela… Fizemos todo o tipo de exames, incluindo de coagulação, e não conseguíamos descortinar explicação para aquele quadro clínico”, continua.

“Foi quando, após termos passado a visita clínica, o Professor Carmona da Mota me deteve para perguntar se não estaríamos perante um caso de uma criança maltratada. Eu fiquei chocadíssima… Lembro-me de ter achado que isso era impossível, que só uma mente perversa poderia pensar em algo assim. O choque foi brutal, nunca tinha ouvido falar no assunto. Ainda me arrepio ao pensar nisso”, admite.

Na altura, a equipa médica não estava preparada, nem na teoria, nem na prática, para os melhores procedimentos a tomar numa situação deste tipo. “Os pais desta criança eram de origem muito humilde, mas pessoas inteligentes que, a certa altura, se aperceberam da nossa desconfiança e exigiram a alta da criança, acabando por levá-la”, indica.

“Uns meses mais tarde, tive conhecimento de que a criança faleceu…”, revela, antes de remeter-se, por alguns segundos, ao silêncio. “Aquilo teve um efeito devastador em mim. Pensei ‘isto não pode acontecer’ e, a partir daí, comecei a estudar e a acompanhar casos de maus-tratos a crianças”, explica.

Questionada acerca do que poderá levar pais ou tutores a maltratarem crianças que têm a seu cargo, Jeni Canha tem uma opinião bem formada: “uma das grandes lições que retirei de todo o trabalho desenvolvido neste âmbito é a de que há circunstâncias da vida que podem levar a situações e atitudes extremas”. Assim, afirma que desde sempre percebeu que, ao lidar com estas situações, deveria manter uma atitude compreensiva, e não acusatória.

E quando os maus-tratos a crianças são psicológicos, e não deixam marcas físicas? “Esses casos são, realmente, os mais difíceis de diagnosticar… Fundamentalmente, ocorrem em famílias de nível cultural mais elevado, nas quais os pais sabem maltratar os seus filhos sem deixar marcas visíveis. Mas essas marcas são terríveis”, declara. “Nestes casos, há que saber olhar para a criança, ouvir os seus silêncios. Uma criança diz tudo na sua expressão, se estivermos bem atentos”, afirma.

Na sua tese de doutoramento, que foi publicada no livro Criança maltratada - O papel de uma pessoa de referência na sua recuperação. Estudo prospectivo de 5 anos, galardoado com uma Menção Honrosa no Grande Prémio Bial de Medicina, em 1998, Jeni Canha demonstrou que as crianças vítimas de maus-tratos que recebiam apoio da chamada ‘pessoa de referência’ divergiam das que não tinham esse apoio. “Estas crianças apoiadas por uma pessoa de referência demonstravam melhor aproveitamento escolar, comportamento e tinham mais objetivos de vida definidos”, esclarece, “e, com essas evidências, passei a ter, de certa forma, autoridade moral e científica para intervir nestas famílias”.

É sabido que os médicos assistem a realidades complexas e dramáticas no acompanhamento dos doentes, mas quando esses doentes são crianças que foram maltratadas, fica a dúvida de como consegue uma pediatra conviver com essas duras realidades no seu dia-a-dia. “Muitas pessoas me perguntavam como é que eu aguentava porque, realmente, assisti a coisas inacreditáveis e de forma intensa… Há situações que não esqueço, em que tenho presente tudo o que vi e em que me lembro do nome completo dos doentes”, observa.

“Emocionalmente, era difícil. Dizia antes que não fui para o teatro, mas a verdade é que fazia teatro: o médico é um verdadeiro ator, tem de dar boas e más notícias mantendo sempre uma postura profissional. Quantas vezes não me apeteceu também chorar com o doente e a família?”, confessa.

“Pessoalmente, conciliar a carreira e o doutoramento com a família foi também um pouco complexo!”, revela. “Tenho dois filhos, que acredito que sempre consegui acompanhar. Dormia poucas horas, e consegui fazer o meu doutoramento sem licença sabática. Fi-lo, como dizia um amigo, aos serões! E é verdade, porque só nos últimos dois meses da escrita da tese é que me deram um período para dedicação exclusiva ao doutoramento”, conta.

Aposentada desde 2012, Jeni Canha continua, a convite, a dar aulas. “Faço parte do Centro de Direito da Família, onde participo em cursos de pós-graduação a juristas e a técnicos de Serviço Social, na área dos maus-tratos infantis, e continuo a orientar algumas teses de mestrado”, afirma. “Acredito que posso ter um papel importante na formação de educadores e professores, que podem realmente ser salvadores destas crianças… Há muitos que não o são, que preferem não ‘ver’ estes casos de maus-tratos, porque é algo que incomoda muito, como é óbvio”, menciona.

Nos tempos livres, diz ser uma leitora compulsiva, que cultiva a amizade e que também gosta muito de escrever. “Tenho tentado escrever algumas das histórias que, ao longo do meu percurso, mais me marcaram, desde o Serviço Médico à Periferia aos casos das crianças que acompanhei. Sinto, no entanto, que ainda não estou suficientemente distante destes casos para conseguir acabar de escrevê-los…”, refere.

“A verdade é que a criança que vive num ambiente violento, de maus-tratos, de negligência e de humilhação, não conhece outro ambiente e, por essa razão, não sabe o que perde, por assim dizer. Eu sim, acompanhei estas crianças estando em perfeitas condições de perceber que perderam algo extremamente importante. Por isso, ainda me emociono muito ao recordar estes casos”, garante.

E são várias as histórias de que Jeni Canha se recorda, umas respeitantes ao exercício da atividade clínica, e outras mais recentes, em que tem a oportunidade de reencontrar crianças – agora já adultas – que acompanhou. “Uma vez, estava numa fila para pagamento num supermercado, e a moça que me atendeu estava a olhar, com insistência, para o meu cartão bancário. Percebi depois que estava a tentar ver o meu nome, quando me perguntou se eu era ‘a Doutora Jeni Canha’. Respondi-lhe que sim e perguntei se ela me conhecia”, conta.

Tratava-se de uma mulher que, em criança, tinha frequentado a consulta de Jeni Canha no HPC. “Voltei depois a encontrá-la, e ela confidenciou-me que a ida às minhas consultas era um momento de mimo tão grande e tão bom na vida dela e das irmãs, que também acompanhei, que elas nunca mais se tinham esquecido disso”, conta, visivelmente emocionada. “Ao fim de 30 anos, ouvir uma coisa destas, como diz uma das assistentes sociais que trabalhou comigo, é o melhor diploma que se pode ter. São estas situações que nos marcam… neste caso, para o bem!”, observa.

Se é verdade que, de certa forma, o médico tem um pouco de ator, é também verdade que é um contador das histórias que foi vivenciado ao longo do seu percurso. E a vida de Jeni Canha está repleta dessas histórias marcantes, que nos foi relatando e que são bem mais do que aquelas que puderam aqui ficar brevemente descritas.

Uma vida intensa e imensamente dedicada a crianças em situação de vulnerabilidade, num percurso do qual se orgulha, embora trilhado com sacrifício. “Tudo aquilo que fiz, foi à custa de muito sacrifício: físico, pessoal, afetivo, emocional. Mas, se voltasse atrás, eu faria exatamente o mesmo, sabe?”, conclui.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Jeni Canha