Isto é FMUC
Diretor da Clínica Universitária de Nefrologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC) desde o ano de 2001, Rui Alves revela, com um notável entusiasmo, o seu fascínio por esta especialidade médica, dada a importância que um órgão como o rim, cujo peso ronda os 150 gramas, tem no desempenho de diversas funções vitais para o nosso organismo.
Uma especialidade abrangente
“É preciso desde logo dizer-se que a Nefrologia é um ramo da Medicina Interna”, esclarece Rui Alves. “Nós, nefrologistas, somos verdadeiramente médicos internistas que se dedicam a um órgão em particular: o rim”, complementa.
Conforme faz saber, a Nefrologia é uma especialidade médica abrangente, nomeadamente sob o ponto de vista fisiopatológico. “Não há nada, no funcionamento do corpo humano, com o qual o rim, de forma mais ou menos direta, não se relacione. E isto não é puxar a brasa à minha sardinha”, brinca, “é uma evidência!”.
Por esse motivo, o diretor da Clínica Universitária de Nefrologia da FMUC explica que, a partir de finais do século XIX e primeira metade do século XX, muitos internistas dedicaram-se intensivamente ao estudo da fisiologia renal. “Era de tal forma complexa e profunda que era preciso ter argúcia e sagacidade para enveredar por esse caminho. A pouco e pouco, o conhecimento progressivo que daí adveio permitiu descortinar aspetos extraordinários dos mecanismos fisiológicos renais, e também sistémicos, e permitiu também um considerável avanço no diagnóstico e na terapêutica”, destaca.
“A partir dessa altura, começou a perceber-se que talvez fosse importante a Nefrologia separar-se da Medicina Interna, autonomizando-se, embora grandes hospitais como os da América do Norte, por exemplo, mantivessem, e alguns ainda mantenham, essa tradição de tratarem os doentes com patologia renal em unidades de Medicina Interna. Em Portugal, destacámo-nos um pouco nessa perspetiva pioneira de separação destas duas especialidades médicas comparativamente a muitos outros países europeus, com exceção da Inglaterra, que já a vinha a praticar”, observa.
É a diálise, processo artificial que permite a remoção de resíduos e excesso de líquidos do organismo, necessário quando os rins não funcionam de forma adequada, que “catapulta a expressão da Nefrologia em termos de conhecimento científico e médico”, faz saber o diretor desta clínica universitária.
O surgimento da clínica universitária e as suas vertentes
A Clínica Universitária de Nefrologia iniciou a sua atividade em 1976, ano em que o Serviço de Nefrologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) foi criado. Adelino Marques, Professor Jubilado da FMUC, dirigiu ambas as estruturas de 1976 a 2001.
“Não me considero velho, mas já tenho alguns anos e, por isso, tive a oportunidade de observar e vivenciar a transformação progressiva de uma especialidade, que é relativamente nova, no que diz respeito aos conhecimentos fisiopatológico, histopatológico e terapêutico. Existiram alguns grandes marcos, nomeadamente na área da substituição da função renal – hemodiálise, diálise peritoneal e transplante renal – ao longo destes últimos 40 e tal anos em Portugal e, mais concretamente, aqui em Coimbra, acompanhámos esta evolução”, enaltece Rui Alves.
Constituída pelo seu diretor e por mais 11 assistentes, a Clínica Universitária de Nefrologia da FMUC tem três vertentes: de ensino, assistencial e de investigação. No que diz respeito à lecionação da unidade curricular de Nefrologia, esta acontece ao longo de dois semestres do Mestrado Integrado em Medicina (MIM). “Nesta unidade curricular, são transmitidos conhecimentos fundamentais do ponto de vista fisiológico, como base essencial para que os estudantes possam depois apreender as principais entidades nosológicas renais: o que é uma doença renal crónica, o que é uma lesão renal aguda, o que é uma síndrome nefrítica, o que é uma síndrome nefrótica, ou em que medida o rim tem um papel importante na hipertensão arterial ou na diabetes, entre outros conhecimentos importantes”, menciona.
As aulas teóricas decorrem nos anfiteatros do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), e as práticas no espaço físico do Serviço de Nefrologia. “A interação entre a clínica universitária e o CHUC é positiva e gratificante porque tem corrido bem. Sou regente de Nefrologia e diretor desta clínica universitária desde 2001 e, entretanto, assumi também as responsabilidades de diretor do Serviço de Nefrologia do CHUC. Por isso, tenho o privilégio de poder combinar estas duas visões, enquanto professor da FMUC, mas também enquanto diretor de Serviço no CHUC. Essa combinação permite fazer uma gestão integrada da componente letiva e da componente assistencial”, afirma.
Rui Alves esclarece que, embora com estilos de ensino diferentes, a sua preocupação e a do anterior regente da disciplina, Adelino Marques, para além de procurar dar uma perspetiva de ensino assente na transmissão de conhecimento, sempre foi, sobretudo, a de tentar “ensinar os alunos e as alunas a pensarem, a raciocinarem”, e não apenas a memorizarem a matéria dada.
“Costumo dizer aos alunos que, se vêm para a Nefrologia tentar fazer esta unidade curricular, de Patologia do Sistema Urinário, com o estudo realizado de um dia para o outro e com uma noite mal dormida… isso não funciona”, garante. “Na Nefrologia, e na Medicina em geral, o gozo está na possibilidade de abordarmos os problemas, de refletirmos sobre eles, de questionarmos as ideias dos outros, confrontando-as com as nossas próprias ideias e, muitas vezes, em questionarmos princípios que são considerados major. Os alunos têm de ser curiosos, procurando respostas que os grandes avanços clínicos e científicos ainda não foram capazes de nos dar. É sob esta premissa que temos vindo a trilhar o nosso trajeto dentro desta clínica universitária”, adianta.
Intimamente ligadas à vertente de ensino, estão as vertentes de investigação e a assistencial. “Há uma verdadeira combinação e uma interligação fundamental destas três vertentes, que são sinérgicas”, indica Rui Alves. “O ensino tem este importante componente pedagógico; já a parte da investigação, que é muito dinamizada na Nefrologia, é estimulada pela vertente clínica. Aqui temos a oportunidade de olhar para os doentes e para as suas patologias, tentando perceber em que medida o nosso conhecimento e a nossa intervenção podem contornar ou ultrapassar problemas, fazer a diferença, e depois refletir em termos mecanísticos: todos os dias aqui se faz, por assim dizer, translação, constata.
O funcionamento da clínica universitária
Rui Alves indica que a direção da Clínica Universitária de Nefrologia da FMUC tem decorrido sem grandes percalços. “A faculdade não me coloca nenhum tipo de entrave… Além disso, acho que me tenho portado sempre bem!”, graceja. “Cumpro com o que me pedem e, de uma forma geral, tenho uma boa relação com os meus pares. Há um registo de grande reciprocidade e de cordialidade no trato e há bom senso mútuo, creio eu. Gosto de ensinar, de interagir com os alunos, e tenho uma equipa de excelentes assistentes que me acompanha. Mas é evidente que nem tudo está bem e há sempre aspetos que podem ser melhorados”, indica.
Um desses aspetos diz respeito ao espaço físico, numa área de assistência clínica, que esta clínica universitária ocupa no CHUC. “O nosso espaço físico é limitado, e isso é algo comum a todas as áreas clínicas”, observa. “Apesar de a clínica ter 11 assistentes – 12, contando comigo, que também dou aulas práticas –, o que nos permite ter uma relação docente-discente muito boa e próxima, o facto é que, quando os alunos vão para a enfermaria, ou, quando é possível, para os gabinetes de consulta, há sempre uma concentração excessiva. Mas devo sublinhar que nada substitui o ensino presencial em Medicina”, explica.
O diretor desta clínica universitária conta que, com a atual pandemia, houve a necessidade de fazer uma gestão mais organizada desse espaço, que incluiu o recurso ao ensino remoto. “Mas, se calhar, era bom continuar a pensar-se que este é um problema onde se deveria refletir para melhorar. Talvez agora, com o CACC [Centro Académico Clínico de Coimbra], se possa pensar num novo modelo de contacto entre assistentes, alunos e os próprios doentes, que não se circunscreva a doentes internados, mas que também permita dar uma visão da patologia crónica do ambulatório. Isso podia permitir aos alunos a observação de uma maior variedade de patologias, não tão focadas, quase de modo exclusivo, no doente agudo, e em melhores condições de trabalho”, destaca.
As implicações da pandemia de COVID-19 na Nefrologia
Questionado acerca das implicações da COVID-19 na prática clínica, nomeadamente no âmbito da Nefrologia, Rui Alves entende que, apesar das limitações, o País soube adaptar-se e responder de forma adequada às exigências que a atual pandemia trouxe à realidade hospitalar.
“Acredito que respondemos bem a esta ‘afronta’ viral, em boa parte devido à nossa resiliência, de que tanto se fala. Além disso, a nossa fiel e tradicional capacidade de adaptação, o ‘desenrasca’, tomado no bom sentido, desempenhou também aqui um importante papel. A verdade é que, de facto, conseguimos seguir em frente, minimizando as consequências, tentando fazer o melhor possível dentro das circunstâncias que vivemos”, denota.
À semelhança do que sucedeu noutros serviços hospitalares, no Serviço de Nefrologia do CHUC essa adaptação à realidade pandémica passou, inicialmente, por substituir as consultas presenciais pelo contacto telefónico com os doentes, “as chamadas consultas não presenciais”. Para além das alterações na gestão do internamento, a diálise de doentes COVID-19 positivos passou, nessa altura, a realizar-se exclusivamente no polo do Hospital Geral.
Rui Alves considera igualmente que, agora que as consultas retomaram já, na sua maioria, um caráter presencial, não houve necessariamente uma falha de diagnósticos no que respeita a patologias renais, nem uma falha a nível do acompanhamento médico dos doentes nos últimos dois anos, em que o contacto direto com os doentes foi fortemente condicionado. “Tenho a noção de que conseguimos acorrer à grande maioria dos doentes e, efetivamente, não me lembro de termos casos retumbantes de doentes em situação grave que, devido à COVID-19, não tenham tido o devido auxílio na altura própria”, releva.
“Ainda no ano de 2020, houve realmente uma fase em que fiquei muito preocupado, porque o número de casos positivos estava a aumentar consideravelmente e o meu receio era o de que não houvesse capacidade, no hospital, de fazer diálise a todos doentes infetados”, assume.
“Para além das alterações na gestão do internamento e diálise a doentes COVID-19 positivos, que passou a realizar-se no polo do Hospital Geral, e que implicou um esforço enorme por parte da coordenação logística do CHUC, foi em conjunto com a ARS [Administração Regional de Saúde] do Centro que foram criadas condições para fazer hemodiálise a doentes com COVID-19 em unidades privadas da nossa área de influência. Foi graças a isso que conseguimos gerir esta complexa situação originada pela pandemia. Felizmente, não foram casos que precisavam de hospitalização, mas sim casos de doentes renais crónicos infetados com COVID-19 que puderam cumprir o seu tratamento em áreas de isolamento nestas unidades, porque de outra forma teriam de ser internados”, complementa.
A avaliação de duas décadas na docência
Professor da FMUC desde 1999, Rui Alves afirma que a experiência na docência tem sido muito boa. “Felizmente, faço um bom balanço. E esse balanço vem, obviamente, do bom feedback dos próprios alunos”, refere. A Clínica Universitária de Nefrologia distingue publicamente, no Dia Mundial do Rim, desde 2003, os seus dois melhores alunos em cada ano letivo.
“É uma recompensa absolutamente fantástica a de sabermos que o nosso trabalho é reconhecido por eles. Saber que passámos algo de positivo e de útil para o futuro de cada um é fundamental na nossa atividade”, acrescenta.
O diretor da Clínica Universitária de Nefrologia da FMUC afirma também que o “Porquê?” deve estar sempre presente na mente dos alunos. “Tem de haver essa interrogação permanente, uma curiosidade que os faça irem ganhando gosto por aquilo que estão a fazer, e os faça avançar”, afirma.
Neste âmbito, Rui Alves considera que, para que os alunos se sintam mais motivados e envolvidos, tal poderá implicar novas modificações na estrutura do curso. Para isso, indica que deve ser feito um trabalho, a priori, de diálogo entre a direção da FMUC e os seus diversos docentes. “Acredito que, quem dirige a Escola, apesar da miríade de coisas que tem para fazer e resolver, deveria conversar um pouco mais com os seus docentes, e entender melhor a organização e funcionamento das respetivas Unidades Curriculares. Seria um trabalho pessoal e progressivo que pode demorar dois anos, mas estou convicto de que seria importante para a Escola no seu todo, e para o desempenho dos alunos”, refere.
Para o diretor desta clínica universitária, é igualmente importante perceber se os seus colegas, assistentes convidados, estão satisfeitos com os resultados do seu trabalho, e se os alunos crescem em formação e conhecimentos, através do real interesse pelos conteúdos lecionados e pela forma como são transmitidos. “Nós, docentes, captamos isso imediatamente”, assegura. “Neste sentido, era muitíssimo importante apurar e melhorar em muito a ferramenta de aferição de que se dispõe e aplica atualmente.
O diálogo continuará a ser sempre essencial, entre alunos, entre alunos e docentes, entre todos e a sociedade civil, e particularmente, com a nossa cidade – Coimbra”, declara.
“Olhando estes anos de experiência profissional, como médico e professor de Medicina na FMUC, não tenho a menor dúvida de que o filósofo estava certo: ensinando, aprende-se!”, finaliza.