Do curso
de Medicina 

Uma vida a contribuir
para novas vidas

Na clínica de fertilidade que dirige, no centro da cidade de Coimbra, várias paredes dos corredores estão repletas de fotografias de bebés e crianças que, ao longo dos 20 anos de existência deste centro especializado em problemas da infertilidade, nasceram graças aos tratamentos ali realizados. “Até já tenho, inclusive, fotografias de crianças a apontarem para uma determinada fotografia, indicando que são elas que ali estão”, refere, com vivacidade, Isabel Torgal, e também com orgulho. Afinal, são já milhares as crianças nascidas com recurso aos tratamentos realizados nesta clínica.

Nasceu em Coimbra, “na rua Venâncio Rodrigues”, a 6 de novembro de 1948, e foi nesta cidade que fez a instrução primária, o ensino secundário no Liceu Infanta D. Maria e a licenciatura em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). “Nasci, cresci e estudei aqui. Fiz tudo em Coimbra!”, declara.

A vontade de ser médica surgiu ainda cedo, quando tinha apenas seis anos de idade. “Sinceramente, teria de pensar muito para indicar outra profissão que gostasse de ter, porque acho que sempre quis ser médica”, indica. Nessa altura, uma tia havia entrado em Medicina na FMUC, e esse facto influenciou Isabel Torgal quanto à profissão que desejava ter “quando fosse grande”.

“Eu entrei para a escola primária quando a minha tia entrou para a faculdade”, conta. “Ela vivia connosco e nós dormíamos as duas no mesmo quarto. Eu ouvia-a falar e ler alto sobre assuntos médicos, e aquilo influenciou-me de tal forma que decidi que também iria ser médica”, acrescenta.

O plano, traçado em tão tenra idade, cumpriu-se. Em 1972, Isabel Torgal concluiu a licenciatura em Medicina da FMUC. Dos tempos de estudante universitária, guarda, essencialmente, boas memórias, e a recordação de uma relação professor-aluno que considera bem diferente da atual e daquela que teve, posteriormente, enquanto professora universitária.

“Naquele tempo, os professores mantinham uma certa distância de nós. Ficávamos com os nossos olhos à altura dos pés deles, praticamente, e não era admissível contestar o que nos diziam. Tive professores que não deixavam que os alunos entrassem na sala de aula sem gravata”, conta. “Claro que, entre nós, estudantes, contávamos piadas sobre os professores, mas o facto é que havia sempre muito respeito”, salienta. “E eu tive professores excecionais, porque a verdade é que ainda hoje me lembro daquilo que me disseram. Ficaram-me coisas marcadas na memória que são de extrema utilidade e me ajudam a raciocinar”, constata.











Isabel Torgal guarda também recordações da crise académica de 1969, e de esse ter sido um momento mais conturbado nos tempos de estudante. “A altura da crise foi complicada. Eu vivia em casa dos meus pais e tinha uma bolsa de estudo, razão pela qual não pude aderir à greve, já que podia perder a bolsa se não fosse a exame, e isso criou constrangimentos com alguns dos meus colegas que, hoje, estão naturalmente ultrapassados”, revela. “De certa forma, arrependo-me de não ter aderido à greve, mas a verdade é que estava na dependência dos meus pais… Se fosse eu a decidir, tinha adotado outra postura”, observa. 


Disse-me que lhe tinha constado que eu tinha boas aptidões para realizar uma ambição dele.

Em 1973, “quando ainda estava a fazer o estágio, o Professor Ibérico Nogueira”, tendo obtido informações acerca das capacidades de Isabel Torgal, transmitidas pelos diretores de serviço que orientavam os internatos que frequentou, convidou-a para fazer o doutoramento em Ginecologia. “Disse-me que lhe tinha constado que eu tinha boas aptidões para realizar uma ambição dele, que era a de ter a primeira mulher doutorada em Ginecologia. E eu concordei em fazer o doutoramento, mas só depois de fazer a especialidade”, menciona.

Este foi, contudo, um plano que ficou temporariamente suspenso, dado que, entretanto, chegou o ano de 1974 e, com ele, o 25 de abril. Nessa altura, Ibérico Nogueira vai para o Brasil e, em 1975, é criado o primeiro ano de Serviço Médico à Periferia, extinto no ano de 1982.

“No âmbito do Serviço Médico à Periferia, que cumpri durante um ano, de 1975 a 1976, fui colocada em Penela. Fazia consulta pelas aldeias e ia a sítios quase inacessíveis, atender uma população que era muito pobre. Ainda assim, foi um ano muito produtivo e agradável”, indica. “Por isso, só em 1977 dei início ao internato da especialidade em Ginecologia”, complementa.

“Desde o começo do internato, tive um enorme interesse por áreas de endocrinologia ginecológica, infertilidade e genética, e no segundo ano procurei encontrar serviços de ponta nestas áreas, onde pudesse fazer curtos estágios”, revela.

Assim, em 1978 Isabel Torgal fez um estágio em Israel, no Instituto de Reprodução Humana e Desenvolvimento Fetal B. Gattegno, no Laboratório de Citogenética do Hospital Hasharon, e no Chaim Sheba Medical Center em Telavive, “com o Professor Bruno Lunenfeld, pioneiro no tratamento da infertilidade com gonadotrofinas”.

Em 1980, fez o exame final do internato em Ginecologia. “Depois disso, passei a ter uma maior ligação à infertilidade e à Medicina da Reprodução”, indica.

Como havia frequentado, em Israel, um Laboratório de Citogenética, o “Professor Almeida Santos sugeriu a criação de um laboratório semelhante nos Hospitais da Universidade de Coimbra [HUC]”, à data com instalações no Colégio de São Jerónimo, no Polo I da Universidade de Coimbra.

“Em 1982, montei o Laboratório de Citogenética dos HUC, estrutura pela qual fiquei responsável. A criação deste laboratório só foi possível graças à colaboração com o Professor Albert Netter [médico francês especialista em Ginecologia]”, assegura. “A Associação para o Estudo da Endocrinologia e Esterilidade de França fez a oferta de material para a montagem deste laboratório”, complementa.


Eu gostava era de dar aulas!

Em 1983, o Professor Ibérico Nogueira, regressado do Brasil e de novo diretor do Serviço de Ginecologia dos HUC, abriu um concurso para assistente da cadeira de Ginecologia. Isabel Torgal concorreu a este concurso e, a 29 de maio desse ano, iniciou as suas funções. “Durante dez anos, dei aulas práticas de Ginecologia a três turmas”, refere.

Dois anos depois, e a convite de Almeida Santos, Isabel Torgal integrou uma equipa multidisciplinar que se dedicava à Reprodução, embora continuasse a manter a sua atividade noutras áreas da Ginecologia. “Em novembro de 1985 foi fundado o SEMER [Setor de Estudos da Medicina da Reprodução] e, assim, tiveram início as técnicas de PMA [Procriação Medicamente Assistida]”, explica. Em 1987, as instalações do Serviço de Ginecologia passaram para o novo hospital, em Celas, que englobava já um laboratório para técnicas de PMA e outro de Citogenética.

Corria o ano de 1986 quando foi proposta para o doutoramento em Ginecologia, sob a orientação de Almeida Santos, tendo defendido a respetiva tese a 18 de junho de 1992. No decorrer do doutoramento, Isabel Torgal realizou ainda, em 1988, um estágio de três meses no Laboratório de PMA no Riggshospitalet, na Dinamarca. “Tive como orientadora a Professora A. G. Byscov neste estágio, que serviu como complemento das investigações que tinha em curso para a minha tese”, esclarece.

A partir da conclusão do doutoramento, Isabel Torgal continuou a sua atividade clínica enquanto ginecologista, embora dedicasse mais tempo à área da infertilidade. Além disso, manteve sempre também a sua atividade enquanto docente, dando aulas práticas e teóricas de Ginecologia. “Eu gostava era de dar aulas! O ambiente era sempre muito bom e agradável”, confessa, com entusiasmo.

A par da prática clínica e da docência, Isabel Torgal desempenhou vários outros cargos ao longo do seu extenso percurso profissional. Foi presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução entre 1996 e 1999, tendo feito parte de todas as direções desta sociedade desde a respetiva fundação, pertencendo, atualmente, ao Conselho Técnico). Foi ainda vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia em dois mandatos, tendo pertencido à respetiva direção em vários outros mandatos.

Pertenceu também ao President’s Meetings do European Board and Royal College of Obstetrics and Gynecology de Londres; obteve, em 1998, o título de sub-especialista em Medicina da Reprodução e integrou o Conselho de Coordenação da Ordem dos Médicos na área da sub-especialidade em Medicina da Reprodução.

No ano de 2000, com a mudança de instalações do SEMER para o Edifício de São Jerónimo, o Serviço de Ginecologia acabou por ficar separado fisicamente deste. “Optei por continuar no Serviço de Ginecologia dos HUC por influência do Professor Henrique Miguel Oliveira, com quem tenho uma relação de grande amizade. No entanto, por sentir a falta da prática desta sub-especialidade, em 2002 fundei um centro privado de Medicina da Reprodução para técnicas de PMA, com a colaboração da minha filha e marido”, conta.

Até 2003, Isabel Torgal foi ainda redatora da Revista da Sociedade Portuguesa de Ginecologia e, em 2006, revisora científica da Fertility and Sterility, a revista oficial da American Society for Reproductive Medicine. “Até 2009, fiz toda a carreira médica e submeti-me a todas as provas públicas da carreira hospitalar, até chegar a chefe de serviço”, indica. “Nesta evolução, foram determinantes o apoio, os incentivos e, sobretudo, o exemplo de dinamismo e grandes qualidades humanas do Professor Carlos de Oliveira, a quem vim a suceder”, enfatiza.

Entre 2010 e 2015, foi diretora do Serviço de Ginecologia dos HUC e regente da cadeira de Ginecologia da FMUC. Aposentou-se em 2016, mas não para ficar parada, já que assumiu, desde essa altura, a direção do centro privado que criou, bem como as funções de ginecologista da mesma instituição em dedicação exclusiva.











“Hoje, a minha rotina é praticamente a mesma. Só mudaram os sítios!”, afirma. Dessa rotina, fica atualmente de fora a docência, facto que Isabel Torgal lamenta. “Confesso que, mesmo continuando ativa, sinto falta de dar aulas”, refere. 

A leitura e, principalmente, o cinema, são aquilo que ocupam os poucos tempos livres que vai tendo. “Gosto mesmo muito de ver filmes, e a pandemia estragou um pouco as minhas idas ao cinema!”, constata. “Antes, ia duas a três vezes por semana ver um filme, e não há uma pergunta sobre cinema no Joker [concurso de televisão] que eu falhe”, garante.

Isabel Torgal assume que o trabalho que desempenha é, sobretudo, gratificante, pelos resultados visíveis associados, embora, como é natural, seja sempre difícil lidar com os casos de insucesso dos tratamentos de fertilidade. “Ficamos tristes quando as coisas não correm bem”, afirma. “As pessoas tendem a ouvir sempre o lado bom. E, por vezes, a falha também é nossa, enquanto médicos. Quando dizemos que a taxa de êxito de um tratamento de fertilidade é de 60 por cento – e atenção que, quando comecei a trabalhar nesta área, era apenas de 10 por cento –, provavelmente deveríamos antes dizer que a taxa de insucesso é de 40 por cento”, declara. 

“É por isso que seria importante que as mulheres fizessem a congelação de óvulos enquanto estão na idade fértil. A partir dos 35 anos de idade, a qualidade dos óvulos começa a declinar, e, atualmente, é com essa idade que as mulheres começam a pensar ser mães”, observa. “Falta alguma sensibilização nesse sentido, e claro que este é um procedimento que é caro e que o serviço público não oferece, infelizmente. Mas o ideal seria congelarem-se os óvulos por volta dos 25 anos de idade”, refere. 

Quem observa o interesse que Isabel Torgal tem pela atividade clínica que desenvolve, ou vislumbre um pouco do seu notável currículo, certamente terá dificuldade em acreditar que a Ginecologia era a última especialidade que considerava tirar. “Na verdade, a especialidade que me interessava era a Pneumologia. Mas então agora, com a pandemia, não tenho pena nenhuma de o meu caminho não ter seguido por aí!”, graceja. 

Ao longo da sua vida, há quatro marcos de que Isabel Torgal se orgulha especialmente. “Orgulha-me o facto de ser mulher e de ter conseguido ocupar cargos e atingir patamares que, antes, só tinham sido atingidos por homens. Por quatro vezes, fui a ‘primeira mulher’: a primeira mulher doutorada em Ginecologia, a primeira mulher presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, a primeira mulher regente da cadeira de Ginecologia da FMUC e a primeira mulher diretora do Serviço de Ginecologia dos HUC”, destaca.

Outro importante motivo de orgulho são os “muitos netos” que, fruto da sua atividade, diz ter. Esperamos, por isso, que as taxas de êxito destes tratamentos continuem a evoluir favoravelmente, e que as tais paredes nos corredores da clínica de fertilidade que Isabel Torgal dirige se tornem, em breve, demasiado pequenas para mais fotografias.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Isabel Torgal