Do curso
de Medicina 

Uma vida dedicada à arte médica…
e a outras artes

Sempre quis ser médico, e foi à área da Medicina Intensiva que dedicou mais de quatro décadas de serviço no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) e na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), entre os anos de 1972 e 2018.

Nos anos 70, arriscou dedicar-se ao que então se chamava de “Reanimação”, longe de ser considerada área médica especifica; foi sócio fundador da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos (SPCI), pertenceu aos Conselhos da Sociedade Europeia e Federação Mundial de Medicina Intensiva, sempre esteve ligado ao ensino e, desde há quatro anos, mantém a prática clínica no setor privado, como coordenador de uma Unidade de Cuidados Intermédios e Intensivos. A acompanharem um extenso percurso clínico e académico, estiveram sempre a fotografia e a música, das quais é um grande entendedor e admirador, e que confessa serem um escape às duras realidades e aos dramas humanos que presencia na prática clínica.

Nascido em Vagos, no distrito de Aveiro, em 1948, Jorge Pimentel quase nunca pensou em ter outra profissão que não fosse a mesma do seu pai. “Ele era médico de aldeia, e era médico por vocação. Costumo lembrar que, para estudar, o meu pai fugiu de casa, ao contrário do que acontecia na época: fugia-se para não ter de estudar…!”, refere.

Concluída a instrução primária em Vagos, Jorge Pimentel mudou-se para Aveiro, onde estudou no Liceu Nacional. “Aos 12 anos, estava sozinho em Aveiro e tive de apender a governar o meu tempo, algo que costumo dizer aos meus netos mais crescidos, o mais velho agora com 18 anos”, afirma. “Claro que estávamos nos anos 60, em tempos diferentes dos de hoje. E eu sempre tive o privilégio – ou a sorte – de ir encontrando por lá, e ao longo da vida, gente boa, alguns fora de série, que me ajudaram e acompanharam”, observa.


Uma dessas pessoas foi o professor de Religião e Moral. “Era padre, pedagogo por natureza, que levava para as aulas um leitor de fita Grundig, topo de gama para a época, do qual saía uma música absolutamente espetacular… Dava aulas muito interessantes e fora do comum, que não eram vincadamente marcadas pela só religião ou pelos bons costumes”, refere. “Devo dizer que hoje não sou católico, mas, naquela altura, estas aulas faziam parte do percurso educativo, e devo dizer também que foi lá que conheci as histórias da Bíblia, absolutamente fascinantes, do Antigo Testamento”, indica. “Já na faculdade, tive oportunidade de me debruçar sobre os escritos do Concílio Vaticano II e seu arquiteto, João XXIII, e de um Jesuíta critico, que acreditava na evolução das espécies… Pierre Teilhard de Chardin”, complementa.

Nos tempos do Liceu, Jorge Pimentel adquiriu o “vício da leitura”, porque tinha conta aberta na livraria. Vício que, admite, depois deixou um pouco de parte. “Quando saí do quarto que tinha em Aveiro, para vir estudar para Coimbra, levei todos os livros que tinha lido durante o liceu para a minha casa na aldeia, que eram já mais de uma centena”, destaca. “Esses livros eram, na sua maioria, de autores com prémios Nobel, como Ernest Hemingway e John Steinbeck. Já médico, voltei à leitura para ler Jorge Amado, que continuo a reler, Gabriel Garcia Márquez, …”, relata.

Quando se mudou para Coimbra para ingressar na FMUC, foi tempo de deixar as simulações clínicas, “da meninice, feitas em abóboras da quinta”, para começar a pensar em exercer a sua atividade diretamente com os doentes. “Eu tinha um fascínio pelos instrumentos médicos do meu pai. Antes de ir para a faculdade, de cada vez que ia ao consultório dele, que ficava ao lado, na casa dos meus avós, encantava-me com os bisturis e as seringas de vidro”, conta “até que, um dia, tirei mesmo um bisturi de lá e levei-o para ir ‘operar’ abóboras”.


A vida mudou brutalmente, da pacatez de Aveiro para o movimento de Coimbra.

Estas intervenções cirúrgicas eram sempre bem-sucedidas no mundo da fantasia, mas tinham como consequência a inevitável interrupção do crescimento das abóboras no mundo real, o que deixava a mãe de Jorge Pimentel muito intrigada. “É que eu abria cuidadosamente um tampão na abóbora, tirava-lhe as pevides, fingindo que eram apêndices e, depois, colocava de volta o tampão que tinha tirado, ‘suturava’ com uns palitos e punha essa parte da abóbora virada para baixo, para não se notar. Durante bastante tempo minha mãe ficava a perguntar-se por que razão as abóboras apodreciam, se tinham crescido tão bem…”, refere.











Jorge Pimentel diz ter “boas memórias dos tempos de caloiro”, embora confesse que tenha sentido um forte impacto ao mudar-se para a Cidade dos Estudantes. “A vida mudou brutalmente, da pacatez de Aveiro para o movimento de Coimbra. Faculdade, latadas, as lições magistrais de anatomia...”, recorda. “Lembro-me bem das Repúblicas Rapó-Táxo e Prá-Kys-Tão, onde tinha amigos, esta última que era retratada com frequência, num edifício que faz esquina ali naquelas ruas muito estreitas, perto de um cinema que já não está em funcionamento, o ‘Sousa Bastos’”, indica.

Nos primeiros dois anos de curso na FMUC, frequentou, igualmente, o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra. “Tinha ficado profundamente impressionado com as imagens de pintores impressionistas, como Degas… Foram dois anos espetaculares, em que aprendi muito, até que cheguei a uma conclusão complicada: a de que a Arte e a Anatomia Descritiva não eram propriamente compatíveis”, graceja, “por isso, deixei o Círculo e dediquei-me ao curso de Medicina. Mas creio, ou tenho a certeza, que foi aí que aprendi princípios que, mais tarde, utilizei na fotografia”.

Foi ainda enquanto frequentava o Círculo de Artes Plásticas de Coimbra que Jorge Pimentel começou a fazer fotografias, adquirindo o gosto por esta atividade, nessa altura apenas como o “registo do momento”, conforme faz saber. “Quando me formei, o meu irmão mais velho e padrinho de batismo perguntou-me que prenda queria receber, e eu respondi-lhe que queria uma máquina fotográfica: uma Asahi Pentax Spotmatic, que, naquela altura, era a máquina fotográfica que os repórteres da National Geographic Magazine utilizavam, e que recebi. A partir daí, a prática da fotografia passou a ser coisa séria!”, constata.

Jorge Pimentel era aluno da FMUC quando se deu a crise académica, em abril de 1969. “Entre fugas à polícia e greves aos exames, lá chumbei o ano, e o meu pai ficou zangado, como devia! Fiquei apenas a fazer a cadeira de Anatomia Patológica com o Professor Renato Trincão e, quando tive de escolher a turma de aulas práticas, só havia vagas na turma do Dr. Franklin Figueiredo, o primeiro grande citopatologista que tivemos em Portugal, mas que todos os alunos temiam, por ser muito altivo e sério. O facto é que comecei a ir às aulas dele e achei, logo desde o início, que eram espetaculares: ele era um contador de histórias”, revela, “mas… exigente!”. Foi com Franklin Figueiredo que, na FMUC, Jorge Pimentel aprendeu a fazer fotografias no microscópio. “E aprendi no microscópio dele, onde mais ninguém tocava!”, indica. “Mas, mais do que isso, ensinou-me a ler um artigo e, sobretudo, a pensar sozinho.”, admite.

Houve um dia em que ele me trouxe uns três Yearbooks of Photography europeus – quando os livros de fotografia eram raros – nos quais tinha algumas fotografias publicadas”, afirma. “Aí percebi que ele também conhecia muito bem a fotografia nos domínios técnico e estético, para além da fotografia na área da Citopatologia. Foi assim que o meu percurso na fotografia teve início, que vai desde fotografar a ‘Arte Xávega’ [pesca artesanal no mar] às diversas fotografias que hoje faço também com o meu telemóvel. Tenho obrigatoriamente de citar o nome de Varela Pé Curto, fotógrafo profissional de Coimbra, que me ensinou os truques da revelação”, complementa.

Em 1972, Jorge Pimentel concluiu o curso de Medicina. Nessa altura, era já Monitor da cadeira de Anatomia Patológica desde o ano anterior, a convite de Renato Trincão, face aos 19 valores obtidos no exame à cadeira, cargo que desempenhou durante quatro anos, até 1975. “Não sabia bem que especialidade havia de seguir, tanto mais que cheguei a ser contratado como Assistente da FMUC, para seguir carreira na Anatomia Patológica, pelo que estava indigitado para fazer o doutoramento na área da patologia pulmonar”, observa.

“Mas acontece que eu acabo o curso e resolvo dar o meu ‘grito do Ipiranga’: com a mochila às costas, meti-me no Sudexpress e fui até Paris, sozinho”, refere. “Levava apenas a indicação do Professor Luís Oliveira, pneumologista, para contactar Carrington da Costa, que estava em Paris a trabalhar no seu doutoramento, caso precisasse de alguma coisa. A viagem foi complicada: 24 horas de comboio!”, afirma.

“Como apanhei um susto e, nessa altura, cheguei a pensar que tinha inclusive uma hepatite, fui mesmo ter com Carrington da Costa, ao Hospital Claude-Bernard. Quando me reconheceu e lhe contei o que se passava comigo, acabou por rir-se de mim e, como era hora de almoço, levou-me a almoçar com ele e a equipa com quem trabalhava. Por mero acaso, éramos vizinhos na cidade universitária de Paris, eu na Casa das Províncias de França e Carrington da Costa na Casa de Itália. Ele desafiou-me para o ajudar durante a manhã na tarefa de ditar valores que ele tinha de colocar numa máquina Olivetti, de cartões perfurados, já que não existiam computadores, para fazer a parte estatística do trabalho e, desta forma, arranjava maneira de eu almoçar no hospital sem pagar”, conta.

Jorge Pimentel afirma que, deste modo, acabou por ter uma vida “relativamente facilitada” na capital francesa. “Conheço melhor Paris do que Lisboa, porque ele dava-me indicações para ir ver tudo e mais alguma coisa”, salienta. “Ainda estávamos na época salazarista, dois anos antes do 25 de abril, pelo que vi lá tudo o que, em Portugal, era proibido: filmes, teatro… tudo!”, acrescenta.

“Assim foi a minha época em Paris, até que houve um dia em que o Professor Carrington da Costa me levou à área clínica”, começa por indicar. “Lá conheci gente importante, como o Professor Vic Dupont, médico pessoal de Charles de Gaulle, e sobretudo Professor Mollaret, autor que descreveu o ‘Coma Ultrapassado’, primeiro pilar importante para o diagnóstico de ‘morte cerebral’”, explica.

“Devo dizer que ainda hoje fico impressionado com essa memória… Ao entrar na área clínica, entrei também noutro planeta. Lembro-me perfeitamente do primeiro doente que vi. Tinha quatro tubos na barriga, dois de cada lado, nos quais circulava um líquido azulado: estava a fazer diálise peritoneal… outro, tinha uns tubos na traqueia ligados a um aparelho… e estava a ler o jornal!” recorda.

Jorge Pimentel ficou fascinado com a prática clínica nesta área. “Nessa altura, percebi que era aquilo que queria fazer. Foi difícil voltar a Portugal, dar o dito pelo não dito, e dar conta dessa decisão ao Professor Renato Trincão, que sempre me tinha tratado bem, mas a verdade é que ele foi muito simpático e compreensivo”, salienta.










Assim, seguiu a especialidade de Medicina Interna, na qual obteve o respetivo grau no ano de 1980. “O Professor Carrington da Costa disse-me que, para ali trabalhar, no serviço do hospital, tinha de ser internista.”, refere. “Para mim, a Medicina Interna era, realmente, a ‘mãe’ de todas as especialidades”, enfatiza.

A par da especialidade em Medicina Interna, que fazia “durante o horário normal no Serviço de Medicina II, dirigido pelo Professor Antunes de Azevedo”, Jorge Pimentel passou a frequentar, ao mesmo tempo, o Serviço de Reanimação, que funcionava no piso da urgência do antigo hospital. “Deste modo, fiz praticamente duas especialidades ao mesmo tempo, tendo, efetivamente, feito o exame final de ambas”, afirma.

“Em 1989, e até 1994, tive, uma vez mais, o privilégio de trabalhar com a ‘elite’ científica no grupo da OMS [Organização Mundial da Saúde], no International Program for Chemical Safety [IPCS]. Estava em presença dos autores de artigos e livros por onde eu tinha estudado… As reuniões eram, para mim autênticas ‘provas de caras’, mas muito agradáveis”, revela.


Acho que fui conseguindo conciliar tudo porque tive sorte.

Em setembro de 1994, e por morte de Carrington da Costa, Jorge Pimentel foi nomeado diretor do Serviço de Medicina Intensiva dos HUC, os Hospitais da Universidade de Coimbra, agora CHUC, sendo já chefe de Serviço da carreira hospitalar e docente na área da Medicina Interna, no bloco dedicado à Medicina Intensiva. As provas de doutoramento tiveram lugar em 2000.

Entre os anos de 2003 e 2007, Jorge Pimentel foi também adjunto do diretor clínico dos HUC e, a par da prática clínica, foi docente da FMUC, assumindo a regência da cadeira opcional de Medicina Intensiva, lecionada no 5º ano do Mestrado Integrado em Medicina (MIM), de 2008 até à data da jubilação, em 2018, experiência que considera extraordinária e gratificante, já que teve sempre “bastantes alunos nas aulas”.

No meio de uma intensa atividade profissional, houve sempre tempo para dois hobbies, aos quais Jorge Pimentel revela ser muito dedicado: a música e, de forma muito especial, a fotografia. “Acho que fui conseguindo conciliar tudo porque tive sorte: tinha resistência física para isso, para ser acordado a meio da noite para resolver problemas e depois ir dormir mais um pouco e levantar-me cedo, sem qualquer problema”, revela.

São milhares as fotografias que, atualmente, Jorge Pimentel guarda no seu arquivo e também no telemóvel, tiradas nos mais variados contextos, e são já três as exposições fotográficas que, até ao momento, fez. “Agora, vêem-se muito menos fotografias, porque ficam no telemóvel e só se mostram aos amigos mais chegados… Ainda hoje, tenho o vício de fazer impressões em papel das fotografias que tiro. Antigamente, fechava a cozinha depois do jantar, que se transformava num estúdio de revelação fotográfica, mas deixava-a sempre limpa e impecável para o pequeno-almoço do dia seguinte!”, ressalva.

“Acho que todas as imagens podem contar uma história, embora uma pessoa possa gostar de uma imagem e outra não. Eu gosto de fotografar pelo vício de ‘olhar para’… Já fotografei janelas antigas, flores, ferrolhos, feiras populares, pescadores, circos, pessoas, que são mais difíceis de fotografar…”, conta. “Há uns anos, fiz uma exposição na Faculdade de Medicina de Lisboa sobre ‘Remendos’, sob o mote de que existem remendos bem feitos, remendos mal feitos e rasgões sem remendos, tal como acontece na vida”, salienta.

No que diz respeito à música, Jorge Pimentel conta que são cerca de 4 mil os CD’s que tem em casa, para além dos velhos LP de 33 rotações. Esta é também uma paixão antiga. “Quando saí da escola primária e fui para o liceu, pouco mais tinha ouvido do que a música dos ranchos folclóricos e dos bailes da aldeia. Onde é que comecei a ouvir música? Nas tais aulas de Religião e Moral de que falei, para as quais o Padre Arménio, o professor, levava o seu gravador de bobine Grundig, na altura topo de gama, e nos dava a conhecer músicas”, faz saber. Assim, Jorge Pimentel foi tomando o gosto por esta arte. “A música é uma linguagem universal… Sei exatamente qual foi a primeira peça de música clássica que me foi explicada: a sinfonia popularmente conhecida como Sinfonia do Novo Mundo, de Dvořák”, revela.

“A fotografia e a música foram e continuam a ser muito importantes para mim, porque, a meu ver, me permitem lidar com a morte todos os dias”, destaca. Hoje, embora continue com uma vida profissional muito intensa, Jorge Pimentel está já a preparar a publicação de um livro sobre a sua paixão pela fotografia. Parece que “vício da leitura” até pode ter ficado, em tempos, um pouco esquecido. Mas, talvez agora, seja a vez da fotografia e da música passarem a dar algum espaço para mais uma paixão: a escrita.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Jorge Pimentel