Do curso
de Medicina 

Um percurso feito de histórias marcantes  

Diz ter sido marcada pelas pessoas com quem se foi cruzando ao longo dos anos, mas a forma como se expressa ao narrar histórias da sua vida deixa antever que, certamente, terão sido também muitas as pessoas que Helena Goulão marcou de forma profunda e positiva. A empatia e o respeito que, no seu discurso e nas suas atitudes, mostra ter pelo próximo são prova disso, e são também sentimentos que desde sempre a acompanharam, logo a partir da infância.

Nasceu em Vilar de Besteiros, perto de Tondela e da Serra do Caramulo, há quase 82 anos. “Sou a sexta de uma família de sete filhos, seis raparigas e um rapaz. Imagine-se como isto molda a nossa aprendizagem, no sentido da responsabilidade, da capacidade de partilha, da convivência e do respeito pelos outros”, observa.

“A minha infância foi muito feliz, na terra onde nasci e, embora gozando-a todas as férias, fui muito cedo para o colégio. Vilar de Besteiros era uma aldeia que, nos anos 40 e 50 do século passado, estava realmente isolada… havia uma pequena escola primária, e o liceu existia apenas a alguns quilómetros de distância”, conta. “Por isso, logo aos cinco anos de idade, vim estudar, tal como minhas irmãs, para o Colégio Alexandre Herculano, em Coimbra, propriedade de familiares muito próximos do meu pai. Aqui, fiz todo o meu percurso escolar, primário, liceal e até universitário”, refere.

“É impossível falar de mim, da minha história de vida, sem uma referência muito especial a Maria Aurora dos Santos Coelho, minha madrinha batismo, prima do meu pai e diretora do colégio onde estudei”, destaca. “A par da minha mãe, ambas foram, efetivamente, os meus modelos comportamentais. Senhoras de grande sensibilidade social, grande cultura, enorme personalidade, com um coração do tamanho do mundo e uma capacidade infinita para educar”, complementa. As idas para o colégio como aluna interna foram sempre assumidas com grande entusiasmo. Helena Goulão confessa que “sempre foi uma alegria” estudar no Colégio Alexandre Herculano. “Eu encabeçava tudo o que era disparate, brincadeira e convívio, como os espetáculos que fazíamos, com grande sentido de responsabilidade, no saudoso Teatro Avenida, de gratas recordações académicas. Era uma escola com um complemento artístico muito forte: tive aulas de pintura, piano e dança…embora já nada saiba!”, afirma.

“Mas se há algo desta altura de que me tenho lembrado ultimamente, de forma especial e intensa, até pela similitude com a situação de guerra vivida atualmente, é a vinda de crianças refugiadas da Áustria quando eu tinha entre oito e nove anos de idade. Nessa altura, crianças austríacas do pós-guerra vinham para Portugal para serem acolhidas por famílias de acolhimento e aqui permanecerem por cerca de três anos”, explica.

Não é, por isso, de estranhar que Helena Goulão se lembre com precisão do dia em que, acompanhada pelos seus familiares, foi até Lisboa para, numa sala do Mosteiro dos Jerónimos, ir ao encontro de duas meninas austríacas, que acolheriam em sua casa e no colégio, ao abrigo de uma ação da Cáritas. “Lembro-me daquela fila sem fim de crianças de mão dada… lembro-me também da minha tristeza no regresso a Coimbra, uma vez que as duas crianças que iríamos acolher não apareceram, porque não vinham naquele contingente”, recorda. “No entanto, no dia seguinte, recebemos a indicação de que elas viriam para Coimbra e nos seriam entregues ao Seminário Maior”, conta.

Por ter sensivelmente a mesma idade das duas meninas que a família acolheu, Helena Goulão afirma que estabeleceu uma forte ligação afetiva com ambas, com quem partilhou também as vivências da escola, das férias, quer na Praia de Espinho, quer na sua pequena aldeia de Vilar de Besteiros, “onde o Avô Zé era também o Avô Zé das pequenas austríacas”, observa.



A minha vida é pautada por um ‘antes’ e um ‘depois’.

“Saltando muito no meu percurso de vida, há cerca de 10 anos, estava no meu consultório na rua Antero de Quental, quando uma colaboradora veio dizer-me que havia um casal na sala de espera que queria muito falar comigo, e que era urgente! Era a Irene, uma das austríacas que tinha vivido connosco, e o seu marido, a quem sempre tinha dito que não queria morrer sem voltar a Portugal e encontrar a sua família de acolhimento, isso seria a sua prenda dos 50 anos de casada… E encontrou! Vibro profundamente ao recordar estes episódios”, enfatiza.

“Toquei a rebate e a família juntou-se. Jantámos todos juntos nessa noite, aqui em casa, vimos as fotografias antigas que trazia consigo da sua estadia em Coimbra, não acontecesse não a reconhecermos! Contou histórias da nossa infância e recordava-se da segurança que sentiu no Seminário, onde, em criança, tinha estado à espera de que a fôssemos buscar, porque se lembrava de, nesse dia, a minha madrinha ter posto a mão no seu ombro e aconchegá-la… disse-nos que, nesse momento, tinha sentido uma tranquilidade como não havia sentido durante toda a viagem, pois tinha tido medo, era muito pequenina. Isto marca-nos…”, refere, com emoção. “Esse regresso aconteceu numa noite de verão e, a seu pedido, levei-a aos jardins do Seminário, onde entrou só com o marido. Eu fiquei no carro à espera”, complementa.

Dos muitos momentos marcantes na vida de Helena Goulão, um foi particularmente trágico. “A minha vida é pautada por um ‘antes’ e um ‘depois’. E o que marca de forma tão vincada esses dois momentos é a morte do meu marido, quanto ele tinha apenas 41 anos de idade e eu 39. Ele era Professor Catedrático da FMUC à época, e as nossas três filhas eram pequenas… a mais nova tinha cerca de um ano e meio”, relata.

Houve, por isso, uma viragem no seu percurso, que se previa com uma determinada orientação que, face a este acontecimento, interrompeu o seu curso. “Antes do meu marido falecer, eu ia começar o meu doutoramento, para o qual estava convidada, na sequência da minha estadia em França, mas isso já não veio a acontecer”, conta, “porque foi necessário interromper esse caminho e deitar mãos à obra mais importante da minha vida, a de educar as minhas três filhas”, afirma.

Comecemos por falar do ‘antes’. São boas as recordações que Helena Goulão guarda dos tempos em que frequentava o curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). “Fiz um grupo fantástico de colegas e de amigos, com quem ainda hoje mantenho contacto”, destaca. No entanto, afirma que este foi também um período de grande responsabilidade. “Foi-me atribuída, durante todo o curso, pela Fundação Gulbenkian, uma bolsa de estudos destinada a estudantes de famílias numerosas, cujo aproveitamento escolar anual teria de ser, no mínimo, ‘Bom’, e sem deixar cadeiras em atraso. Consegui mantê-la até ao fim”, esclarece. “Apesar de tudo, houve sempre tempo para os célebres ‘convívios’, muito em voga na época, para as Festas da Queima das Fitas, para a récita do 6º ano médico e para a viagem de curso! Belos tempos…”, relembra.

Quando ainda se encontrava a frequentar o último ano do curso, Helena Goulão foi convidada pelo professor de Fisiologia a integrar o quadro docente enquanto segundo assistente da FMUC. “Nessa altura, o Centro de Gastrenterologia da faculdade estava a ser planeado pelo seu diretor, e com alguns colegas, após a minha formatura, fiz parte do seu núcleo fundador”, conta. No âmbito do plano de desenvolvimento do Centro de Gastroenterologia, foi atribuído a Helena Goulão o estudo do pâncreas exócrino, que poderia ser desenvolvido num centro de referência mundial, existente em Marselha e dirigido por Henry Sarles, no Hospital Sante Marguerite, e no centro de investigação Inserme.

Assim, Helena Goulão foi para a cidade francesa de Marselha, com uma bolsa do Instituto Português de Alta Cultura, onde viveu cerca de dois anos e meio, e para onde se mudou logo após a conclusão do curso de Medicina, em 1967. Miguel Goulão, seu marido e com quem tinha casado há muito pouco tempo, após o seu regresso da Guiné, “havia já programada e estruturada a ida para o Instituto de Medicina Legal também nesta cidade – feliz conjugação das estrelas – para o desenvolvimento do seu projeto de investigação, visando as provas de doutoramento que veio a realizar no seu regresso”.

Em Marselha, viveu aquele que diz ter sido um “período de encantamento profissional e cívico” na sua vida, embora pautado por momentos de alguma tensão social. Foi quando esteve em Marselha que se deu o célebre maio de 68. “Foi uma altura conturbada, de difícil acesso a informação e comunicação com familiares, que era feita apenas por radioamadores… não havia telemóveis, recorde-se. Tivemos de saber conviver com uma cidade bloqueada, sem transportes, sem Bancos, sem lojas de abastecimento ou restaurantes, e com grande agitação de rua. Valeu-nos a solidariedade de amigos que já tínhamos granjeado á época”, constata.

Em termos profissionais, foi um “período de riquíssima aprendizagem”, tendo trabalhado sob a direção de Henry Sarles, quer no Hospital de Sante Marguerite, quer no centro de investigação Inserm, “com uma bolsa solicitada pelo Professor Henry Sarles após uns meses de estadia no departamento”, conforme faz saber. “O Professor tinha para com os seus três bolseiros uma profunda preocupação, que ultrapassava as suas obrigações de mestre e orientador científico”, ressalva.

Foi também em Marselha que Helena Goulão diz ter tido, pela primeira vez, a verdadeira noção do que era a solidão. “Não por mim, que estava com o meu marido, mas por uma senhora velhinha, a Madame Chantal, que vivia no quarto de hotel ao lado do nosso, nas águas-furtadas, para onde subia com grande dificuldade”, explica. “A dona do hotel dizia-nos que esta senhora apenas recebia uma visita por mês, a do neto, que vinha buscar quase todo o dinheiro da sua reforma. A Madame Chantal não esperava nada da vida!”, observa, relembrando também a noite em que, ao ouvi-la tossir muito, foi bater-lhe à porta do quarto para saber se precisava de alguma coisa. “Era noite de Natal, e entre a tosse do seu tabaco, descrevia, ao seu companheiro de solidão, o periquito Kiki, a beleza das luzes da Missa do Galo a que tinha acabado de assistir”, conta. “Ela agradeceu-me e respondeu-me que não era preciso nada, que aquilo iria passar… nem sequer entrei no quarto!”, indica.

Quando Helena Goulão e o marido deixaram o hotel e foram despedir-se dela, no regresso a Portugal, a senhora tinha uma pequena lembrança para oferecer. “Era um pequeno alfinete de porcelana, sem valor real, mas que tenho guardado, religiosamente, como joia valiosa, e cuja história vou contando aos meus netos. Quando mo ofereceu, disse-me: «Helena, quero oferecer-te isto porque, na minha vida, ninguém me bateu à porta para saber se eu precisava de alguma coisa.» São lições de vida que vamos aprendendo”, destaca.

Sobre o regresso a Portugal, Helena Goulão tem também uma história para contar, de alguma forma caricata, mas que põe em evidência algumas das dificuldades e barreiras a transpor com vista ao êxito dos projetos de investigação, já que, na verdade, não regressou apenas na companhia do marido. “O Zé Miguel [marido] estudava a ação do tabaco na reação imunológica do tecido pulmonar a este tóxico numa determinada estirpe de ratinhos, e não poderia continuar a investigação em Portugal com uma estirpe diferente”, começa por indicar. “O que aconteceu foi que eu vim com um saco desportivo ao ombro, cheio de ratinhos ‘clandestinos’, que se reproduziriam já em Coimbra, e que ia abrindo com muita frequência para que eles pudessem respirar… Foi uma aventura!”, conta.

Já em Coimbra, Helena Goulão ingressa novamente na equipa do Centro de Gastrenterologia, dando também aulas práticas no Serviço de Propedêutica Médica, montando e fazendo uso das técnicas que havia aprendido em Marselha. Tem, nessa altura, a sua primeira filha. Em seguida, veio a segunda e, nove anos depois, nasce a terceira filha. “Se a vida se pudesse fragmentar em capítulos, eu diria que a minha tem apenas dois, como dizia: o primeiro antes da morte do meu marido, e o segundo após a catástrofe que foi o seu desaparecimento”, comenta.

Com efeito, é aqui que começa o ‘depois’ na sua vida: cerca de um ano e meio após o nascimento da terceira filha, conforme referido, o marido de Helena Goulão adoece e acaba por falecer. “Foi um pai extremoso e exemplar… A sua dedicação à FMUC e ao seu trabalho, aos seus colaboradores e, muito particularmente, aos seus alunos, era total e exclusiva. Cedo chegou ao topo da carreira académica”, destaca.

“Permitam-me que utilize esta prestigiada tribuna, onde tive a honra de participar, para fazer uma brevíssima referência à memória de Miguel Goulão, fazendo a menção a um pequeno excerto escrito pelo Insigne Mestre Professor Vaz Serra, na revista de Medicina e Cirurgia ‘Coimbra Médica’, de 1981”:

A notícia por inesperada para a maioria trouxe, no meio, geral consternação.
Um dos Professores mais novos da Faculdade, o Doutor Goulão vivia numa atmosfera de alto renome onde os alunos e colegas eram unânimes em reconhecer nele uma personagem privilegiada, digna do apreço e respeito dos seus contemporâneos.

“Quando o Zé Miguel faleceu, tive um apoio fantástico de muitos amigos e companheiros de trabalho, especialmente do Professor Diniz de Freitas, cujos agradecimentos serão sempre insuficientes face ao muito que me ensinou e apoiou nesse difícil período. Dizia-me: «Maria Helena, vá dar consulta à Guarda. Direi aos nossos colegas que não seria necessário o envio dos doentes a Coimbra para a realização de tecnologia endoscópica.» A partir daí e durante cerca de 30 anos, ia aos fins de semana a essa cidade que, carinhosamente, me acolheu” refere.

Foi também na Guarda que Helena Goulão desenvolveu o trabalho de campo de um projeto de investigação sobre o cancro do estômago, pelo facto de, à data da investigação, essa ser a região com maior incidência deste tipo de cancro. “Foi um projeto desafiador. Fizemos vários inquéritos alimentares in loco e verificámos que a maior parte da alimentação daquela população, além de débil e carenciada, tinha erros graves na conservação dos alimentos, por falta de uma rede de frio eficaz. As técnicas utilizadas eram ancestrais, como a conservação em potes de barro da Malhada Sorda, forrados a pez-louro [alcatrão], ou secas em fumeiros rudimentares, provocando o depósito de hidrocarbonetos policíclicos em grandes quantidades no fumeiro consumido”, explica.

“Acabei por não fazer o doutoramento, mas, felizmente, não abandonei a minha carreira de investigação, sempre ligada à FMUC, num percurso do qual me orgulho.

Participei também de forma ativa na vida académica da universidade e da escola como representante dos investigadores da Universidade de Coimbra [UC] no Senado, durante vários anos, nos quais foi aprovada a carreira de investigação na universidade, e fiz ainda parte do Conselho Diretivo da FMUC”, salienta.

A par da atividade profissional enquanto investigadora, Helena Goulão dedicou-se igualmente de forma intensa à prática clínica, enquanto especialista de Gastrenterologia. “Embora com consultório em Coimbra, foi na Guarda que adquiri um complemento formativo da minha personalidade comportamental como médica, como a aceitação, com empatia e humildade, da pobreza social, mas, sobretudo, cultural, como a de numerosas crendices e bruxarias ligadas à patologia cancerosa, em pleno século XX”, observa.


Foi realmente a pessoa de que precisava naquele momento, e que me deu coragem e ajuda.

São da Guarda muitas histórias das quais se lembra e que aconteceram no âmbito das suas funções enquanto médica daquela região, como o caso de um doente idoso com cancro gástrico que, mesmo sabendo da gravidade da situação, não aceitava tratar-se. “Era ele que alimentava os seus animais domésticos, e estes seriam o suporte da sua débil economia e o sustento de duas netas pequenas, ao seu encargo, órfãs de pai e com a mãe emigrada em França. São histórias de uma profundidade e realidade tal que quase tive vergonha de me ter questionado, com espanto, o porquê desse senhor ter recusado cuidados médicos… Mas, neste caso, falei com o médico de família, que lá o convenceu a tratar-se”, conta. 

Helena Goulão salienta o “profundo agradecimento ao Professor Diniz de Freitas”, que lhe possibilitou o desenvolvimento desta atividade profissional na Guarda, tendo também prestado um incondicional apoio no momento mais difícil da sua vida. “Foi realmente a pessoa de que precisava naquele momento, e que me deu coragem e ajuda”, enfatiza. “Já na cidade que me acolheu, encontrei Silvano Marques, eminente cirurgião, diretor do hospital, que me recebeu desde a primeira hora com a disponibilidade de instalação e logística, mas, sobretudo, com o coração aberto, ele e a sua esposa, como se de uma filha se tratasse”, relata.

Durante o seu percurso profissional, Helena Goulão ainda foi convidada pelo Presidente do Conselho de Administração da Fundação Bissaya Barreto, Nuno Viegas Nascimento, a “fazer parte do Conselho de Administração desta prestigiada instituição”. O seu pelouro foi a área Social, na qual destaca o Centro de Apoio Social da Casa do Pai, onde são acolhidas crianças cujo ambiente familiar necessita de intervenção externa. “Ali, a criança tem estabilidade para prosseguir o seu desenvolvimento, bem como os seus estudos. Alguns conseguem atingir formação académica superior, tendo a Fundação instituído uma bolsa de inserção social para que, quando acabam o curso, se possam instalar profissionalmente e possam organizar a sua vida de forma autónoma”, observa.

A Fundação Bissaya Barreto tem também desenvolvido projetos de intervenção social dirigidos à pessoa idosa, através de ações de enorme relevância social. “Exemplo disso são o projeto SOS Pessoa Idosa e a Residência Sénior Luiz Viegas Nascimento, na Figueira da Foz, entre outras ações igualmente relevantes”, indica. “Também aqui, a solidão e o isolamento familiar trazem-nos duras histórias que gostaríamos de esquecer, mas que a Fundação Bissaya Barreto procura contrariar com a sua sabedoria”, afirma. 

A carreira académica de Helena Goulão terminou em 2007, acontecimento pontuado por votos de louvor do Senado da UC e do Conselho Diretivo da FMUC, presidido, à data, por Francisco Castro e Sousa, que assinalavam a “extrema competência” com que sempre exerceu a sua atividade. Já a atividade clínica teve o seu fim em 2020, e acabou por ser potenciada pela pandemia, embora Helena Goulão tivesse já a intenção de parar de trabalhar antes de completar 80 anos de idade.

“A pandemia incomodou-me, porque eu sou uma pessoa decidida, e gosto de ser eu a programar a minha vida. Sentia-me bem para continuar a exercer a minha atividade, mas a pandemia acabou por empurrar-me para a aposentação mais cedo… E a decisão de parar era minha, não era da pandemia, mas tive de aceitar!”, brinca. “Achei, há dois anos, que era oportuno parar, que não devia violentar o destino e a sorte”, explica, “e, por isso parei”.

Hoje, Helena Goulão tem mais tempo para visitar a sua terra natal. Diz muitas vezes às três filhas, aos três genros e aos oito netos, que adora e estima de especial maneira, que “não cortou as raízes quando saiu da aldeia”, e que estas elas continuam lá enterradas. “A minha ligação à terra sempre foi muito forte, quer àquela onde nasci, quer a Vale de Canas, aqui mais perto, onde, num pequeno espaço rural, me ocupo com atividades de jardinagem. É algo que tento ensinar aos meus netos”, afirma.

A estima e o apreço que tem pelos oito netos são notórios. “Gostava de dar-lhes uma infância com o encanto do imaginário, da criação de histórias, e que é algo que nos faz falta a todos”, observa. É acerca dos netos que se lembra de mais uma história. “Costumo passar o Natal com toda a família lá na aldeia, junto à Serra do Caramulo. O primeiro Natal em que a Martinha, a minha neta mais velha, e já falava, perguntou-me «Avó, como é que o Menino Jesus vai saber que estou aqui e não em Coimbra?». Eu respondi-lhe que não se preocupasse, porque íamos colocar uma lanterna, daquelas com uma velinha acesa dentro, sobre um enorme penedo existente junto à casa, para sinalizar a sua presença. Assim se fez, e todos os anos se repete esta ação, tornando-se num ritual que ainda se mantém com os netos mais velhos, com 20 anos de idade, levando pela mão os mais novos, com 7 anos, após a ceia de Natal, em procissão, quer chova, quer neve, a colocar, no ‘abençoado penedo’, acreditando ou não na vinda do Menino, as oito lanternas que queimam até ao amanhecer. E creio que a tradição se manterá…”, conta.

Quem conhece Helena Goulão, saberá com toda a certeza de que não couberam neste espaço muitas outras histórias interessantes de vida e que também marcaram a sua forma de ser. Mas, para o leitor que não a conhece, fica a esperança de que tenha tido a possibilidade de vislumbrar, ao longo destas linhas, um pouco do vasto percurso de uma pessoa, também ela, marcante.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Helena Goulão