Editorial


Ao fim de quase dois anos de grandes restrições, receios e incertezas, eis que conseguimos vislumbrar, finalmente, alguma luz ao fundo do túnel. Ainda que com cautela e moderação, podemos voltar a sonhar com uma vida “normal”. Isto se a normalidade a que estávamos habituados voltar a ser o que era. Depois de tantas mudanças que fomos obrigados a introduzir nas nossas vidas, temo que não sejamos já o que éramos antes. Vai, seguramente, demorar algum tempo até que nos recomponhamos deste forte abanão que sofremos e retomemos os nossos costumes. 


No entanto, é possível, nesta altura, voltar a acreditar e sentir que, depois de um enorme pesadelo, um despertar melhor nos espera. Isto deve-se à contribuição de diversos fatores, nomeadamente ao altruísmo e generosidade da ciência, que permitiu avanços científicos e tecnológicos céleres e frutíferos, à colaboração do vírus, que aparentemente tem dados sinais de algum “enfraquecimento" quanto à sua patogenicidade, e ao civismo e colaboração da esmagadora maioria da população, que desde o primeiro momento acreditou na ciência e se disponibilizou a colaborar, quer através do cumprimento das restrições impostas, quer pela adesão massiva ao processo de vacinação. Foi uma enorme lição de respeito e educação cívica que os cidadãos portugueses deram. 


Apesar da grande admiração que merece o povo português, por esta sua postura e atitude, há outras coisas que me deixam desconcertado, triste e desapontado. Sinceramente, não sei o que passa na cabeça das pessoas quando adotam comportamentos próprios de quem vive sozinho num mundo só seu, onde não há espaço, nem necessidade, para o respeito pelos outros. Não se trata apenas de apreciar, ou não, atos egoístas ou comportamentos egocêntricos. Refiro-me mesmo a atitudes inaceitáveis de falta de civismo e desconsideração pela lei e, acima de tudo, por todos com quem partilhamos lugar e tempo. Não consigo tolerar gente que, sem qualquer pudor, conspurca os espaços públicos com a sua superior e patológica necessidade de expelir o que entope as suas vias respiratórias... o vulgo ato de cuspir para o chão! É, para mim, difícil de aceitar que certos donos possam achar que os dejetos dos seus cãezinhos sejam um abençoado fertilizante para jardins ou passeios. Atrevo-me a pensar que essas mesmas pessoas, seguindo o mesmo princípio, não têm por hábito carregar num botão mágico que obriga à circulação de água numa sanita após a sua utilização. Quem me consegue explicar o que vai na alma de alguns condutores quando, talvez achando que não são apanhados nas suas infrações, utilizam alegremente o telemóvel enquanto conduzem (seguramente só para atender uma chamada que era mesmo urgente!), ou estacionam carros em cima de passeios (desprezando todos aqueles que, com maior ou menor dificuldade, utilizam estes percursos construídos com o propósito de serem usados por pessoas enquanto caminham!)? Muitas vezes, acredito que seja eu que não esteja a valorizar devidamente a generosidade das pessoas. Deve ser o caso quando sou presenteado com a conversa, ao telemóvel, do meu vizinho de mesa de café ou de carruagem de comboio. É ainda mais irritante quando somos privados de metade da conversa, uma vez que não conseguimos saber, na maioria dos casos, o que se diz do outro lado da linha, o que nos obriga a um esforço acrescido para imaginar a parte muda da conversa, com base no discurso meio misterioso que nos dão a conhecer. Também os chicos-espertos, prontos a dar o golpe nas filas de trânsito ou do supermercado, são uma espécie de indivíduos que não merecem o meu apreço. Compreendo a sua satisfação e o seu sentimento de vitória cada vez que conseguem ganhar uns lugares numa competitiva e dura corrida para chegar primeiro ao destino! Enfim, desabafos de inconformismo...


Voltemos ao que de bom, e civilizado, esta Voice*MED nos oferece. Em 4'33'', o Vice-Reitor João Nuno Calvão da Silva explica o significado, o peso e o amor que transporta a Alma Mater para todos aqueles que um dia tiveram a sorte e o privilégio de estudar na Universidade de Coimbra. Será Maria Helena Figueiredo, “Do Curso de Medicina” de 1970, que nos contará, microscopicamente, todas as aventuras e peripécias de uma vida “dupla”, dedicada à Histologia e aos alunos. Em “Isto é FMUC”, através do Diretor do Instituto de Imunologia, Manuel Santos Rosa, uma das personalidades mais marcantes da nossa Faculdade nos últimos anos, faz-nos uma visita guiada pelo mundo da Imunologia e mostra-nos como este Instituto esteve sempre um passo à frente do seu tempo. Eliane Sanches, com a sua morabeza, conta-nos, em Lucerna, como a sua paixão pela ciência, inspirada pelos seus avós, a levou de Cabo Verde ao Brasil e, depois, a trouxe até Coimbra. Num momento em que tanto se fala dos problemas da gestão de um recurso tão precioso como a água, nesta edição visitamos o Museu da Água de Coimbra, para conhecermos os segredos deste guardião instalado na margem do rio Mondego. Por fim, Filomena Botelho prescreve uma visita a um episódio épico da história de Portugal, pela mão de Pêro da Covilhã, um Indiana Jones do Século XV.


Henrique Girão


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