Do curso
de Medicina 

Uma Professora “fora da caixa” 

Maria Helena Figueiredo nasceu a 23 de fevereiro de 1953 e, como diz, não nasceu sozinha. “Trouxe comigo uma irmã gémea que ainda hoje tenho por perto e com quem partilhei uma vida e um destino comum. Esta constante convivência e a grande cumplicidade que se gerou entre nós teve uma enorme influência nos nossos comportamentos”, assegura.

“Cresci na freguesia da Sé Nova, em Coimbra, mesmo à sombrinha da torre da Universidade, e ainda que com poucos recursos, tive uma infância feliz, com muitas e divertidas confusões”, conta. As gémeas, como vulgarmente eram conhecidas, porque muito parecidas, vestidas quase sempre de igual, alegres e irrequietas, tornaram-se muito conhecidas, tanto na escola como no liceu. “Na Universidade, como já não andávamos constantemente juntas, uma vez que entrei para Medicina e a minha irmã para Engenharia Química, esta confusão tornou-se ainda maior e, às vezes, perigosa”, indica. A este propósito recorda uma frase que, certo dia, lhe disse um professor:

- A Helena tem fases… Às vezes, sorri e cumprimenta. Outras vezes, faz de conta que não nos conhece.

“Mais tarde, para agravar este cenário, tanto eu como a minha irmã fomos professoras na mesma universidade, o que tornava tudo mais complicado. Embora a comunidade universitária já quase toda nos conheça, ainda surgem muitas situações embaraçosas, mas quase sempre com um final feliz e divertido. Lá nos fomos habituando a estes episódios, sempre tão frequentes, que nos acompanharam durante toda a vida…”, refere.

Foi em 1970 que Maria Helena Figueiredo entrou para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). Recorda que no primeiro ano de curso andou “aos papéis”, navegando à vista e tentando fazer o reconhecimento do terreno, pelo que assume ter tido um fraco rendimento escolar. No segundo ano, diz que caiu em si e começou a aquecer os motores e a entrar no ritmo certo. “No terceiro ano, era a Helena à velocidade máxima e no seu melhor rendimento. No quarto ano, deu-se o 25 de abril… foi o deslumbramento!”, destaca. Maria Helena Figueiredo afirma que “uma intensa onda de entusiasmo, agitação e esperança” marcou, para sempre, aquele tempo. “Considero um privilégio ter vivido o 25 de abril como estudante universitária, e continuo a reconhecer e a celebrar este dia como um dia santo de guarda”, observa.

Já no quinto ano de curso, e “graças ao regime democrático em curso”, concorreu para Monitora da FMUC, iniciando, deste modo, a sua carreira docente na disciplina de Histologia e Embriologia. “Depressa comecei a dar aulas práticas, apanhei-lhe o gosto e o jeito e nunca mais quis outra coisa”, garante.

Em 1976, Maria Helena Figueiredo concluiu a licenciatura. “Assim que terminei o internato geral, passei para a carreira docente, a tempo inteiro, de alma e coração, e nunca mais de lá saí”, afirma.

Como “coimbrinha de gema, habituada, desde miúda, aos cortejos da Queima das Fitas”, Maria Helena Figueiredo confessa ter tido muita pena de, durante a licenciatura, estar a decorrer o luto académico. “Mas, quando o meu curso fez 25 anos, fizemos uma festa de arromba e integrámos o cortejo da Queima como se da primeira se tratasse. E foi uma alegria que jamais esquecerei!”, salienta. 

Para Maria Helena Figueiredo, as tradições académicas têm, com efeito, um significado muito especial. “Como a minha família paterna nutria um apreço e admiração especial por Coimbra e por tudo o que à Universidade dizia respeito e, talvez pela forte ligação ao meu pai, sempre senti uma grande emoção quando visto o hábito talar e uso da palavra na Sala dos Capelos…”, confessa. Partilha de igual comoção quando desfila, pelas ruas de Coimbra, ao lado dos seus colegas, na procissão das Festas da Cidade. “É um tributo que presto aos meus. Parece que os levo comigo!...”, complementa.  

Costuma dizer que foi “criada, batizada, casada e descasada tudo na mesma freguesia”. Terão sido esses, no entanto, os poucos momentos em que esteve circunscrita a limites, ainda que geográficos. Na docência, o cenário foi o oposto. “Fui uma professora que se pode considerar muito ‘fora da caixa’, já que nunca me preocupei com títulos nem trabalhei para o curriculum. Tive uma vida inteiramente dedicada ao ensino e aos alunos, por quem tinha particular preocupação e estima. Gosto de ensinar com alegria, intensidade e entusiasmo”, declara.

O ensino é, sem dúvida, a sua grande paixão, a que dedicou, de modo entusiasta, cerca de quatro décadas. “Não consigo observar uma lâmina histológica sem uma pontinha de emoção e entusiasmo, e é isso que sempre tentei passar aos meus alunos. O meu objetivo era despertar-lhes o interesse e a curiosidade pela Histologia e, quando conseguia alcançar este propósito, tudo o resto vinha por acréscimo”, assegura. “Além disso, como tenho uma voz ‘grossa’, os alunos não conseguiam dormir nas minhas aulas!”, graceja.

Por isso, Maria Helena Figueiredo comenta que é com gosto e enorme satisfação que, sempre que fala com antigos alunos, se apercebe de que estes não se esqueceram de certas frases que escolhia estrategicamente para conseguir captar-lhes a atenção durante as aulas. “Isto é algo que só se consegue com a experiência e a maturidade que a idade traz. Por outro lado, o facto de lecionar quase sempre a mesma matéria dá-nos também um conhecimento e um domínio do impacto que têm certos assuntos, o que nos permite aumentar a eficácia da aprendizagem”, constata.



Todos sabemos que não há métodos fáceis para aprender coisas difíceis.

Para o sucesso das atividades letivas, Maria Helena Figueiredo garante que o mais importante é a dinâmica gerada dentro da sala de aula. “Uma sala de aula representa um espaço de acolhimento e de inclusão, capaz de estimular a criatividade, a atenção e a espontaneidade dos alunos. Este espaço sempre foi o meu Mundo”, indica. “Todos sabemos que não há métodos fáceis para aprender coisas difíceis, e que a Histologia é uma ciência de pormenores difíceis de dominar, mas cabe a um bom professor tornar o difícil fácil”, menciona.

Enquanto assistente estagiária e assistente, Maria Helena Figueiredo lecionou centenas de aulas práticas de Histologia I e II. Logo após o doutoramento, que concluiu em 1992, ficou encarregue da regência da unidade curricular de Anatomia Dentária, com especial enfoque na área da Anatomia Microscópica do Dente, que englobava também uma forte componente de Histologia Geral.

“Não posso deixar de mencionar que dos momentos mais felizes e gratificantes que vivi foi o facto de ter recebido, por diversas vezes, o prémio da disciplina mais bem cotada em termos pedagógicos, tanto do ano em questão, como, por vezes, até de todo o curso de Medicina Dentária… É um grande motivo de orgulho que uma disciplina básica e tão complexa, como a Histologia, seja uma das mais bem classificadas num curso de índole essencialmente clínica”, enfatiza.

A par do ensino na FMUC, Maria Helena Figueiredo lecionou ainda vários cursos de Histologia e Histofisiologia para alunos de pós-graduação da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra, da Escola Superior de Técnicos de Saúde de Coimbra e do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Coimbra, em regime pós-laboral. Gaba-se de ter conseguido “despertar entusiasmo e por vezes mesmo até ‘inflamar’ estas plateias, apesar do cansaço dos longos turnos de trabalho a que estavam sujeitas”.

“É importante não esquecer também que qualquer professor tem um papel formativo que está muito para além do informativo! Um professor deve preocupar-se em formar bons cidadãos e boas pessoas, para além de bons alunos”, observa.

Embora o ensino tenha ocupado grande parte do seu percurso profissional, Maria Helena Figueiredo também dedicou muito do seu esforço e do seu tempo a projetos de investigação. “Fui-me gradualmente integrando na equipa de investigação do Instituto de Histologia e Embriologia, sob a direção do Professor Vasco Bairos, e dando os primeiros passos na área da Microscopia de Luz e na Microscopia Eletrónica de Transmissão e de Varrimento, que então estava a ser instalado no Instituto e que maravilhava qualquer um pela qualidade e beleza das imagens”, declara.

“A este respeito, recordo, com saudade, as inúmeras reuniões da Sociedade Portuguesa de Microscopia Eletrónica e a satisfação de poder conviver com a nata dos microscopistas portugueses da altura… Estas reuniões constituíram o meu primeiro olhar para um mundo científico ao meu alcance. Lembro-me, por exemplo, do enlevo e da admiração com que observávamos certas características ultra-estruturais da mitocôndria, das membranas do retículo e os insondáveis mistérios do núcleo, nucléolo e cromossomas, então novidade e que, atualmente, constam dos manuais do ensino secundário. Era sempre com espantosa curiosidade e alegria que participava nestas reuniões”, recorda.

Mais tarde, aproveitando todas as capacidades tecnológicas dos laboratórios existentes no Instituto de Histologia e Embriologia, Maria Helena Figueiredo enveredou por estudos de imunocitoquímica e de hibridação molecular. Até que em 1992, conforme anteriormente referido, e após a realização de vários estágios no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras, apresentou a sua tese de Doutoramento à FMUC, “baseada em processos de hibridação in situ com sondas de RNA, assentes em técnicas de PCR que estão hoje tão em voga”.

Maria Helena Figueiredo refere, em jeito de brincadeira, que encarou os períodos de estágio em Oeiras como se de um regime militar se tratasse. “Para lá, ia de comboio ao domingo à noite, levando na mala mantimentos para a semana toda, e regressava à sexta-feira, com muitos resultados e muitas saudades na bagagem. O know-how que lá adquiri acompanhou-me para o resto da vida… apesar dos sacrifícios, este estágio representou também um dos mais felizes e profícuos períodos da minha vida académica”, destaca. 


Isto demonstra a importância que os estudos histológicos
têm em muitos dos trabalhos de investigação básica.

Os principais trabalhos de investigação que desenvolveu compreendem duas áreas bastante distintas. No início da carreira, no Instituto de Histologia e Embriologia da FMUC, Maria Helena Figueiredo dedicou-se a estudos de expressão génica no pulmão. Mais tarde, na sequência de alguns trabalhos realizados no âmbito de uma tese em tecido ósseo na área da Ortopedia, descobriu que este tema, então pouco apelativo para si, era, na verdade, fascinante e constituiu o motor de arranque para os estudos que viria a desenvolver daí em diante. De facto, o tema da osteointegração e da regeneração óssea tornou-se nuclear nos projetos de investigação em Medicina Dentária, integrando, desde então, o Laboratório de Tecidos Duros do Departamento de Medicina Dentária, dirigido pelo Professor Fernando Guerra.

Em termos de investigação, Maria Helena Figueiredo admite que, embora tenha trabalhado muito, acabou por publicar pouco. “Devo, no entanto, reconhecer e até mesmo penitenciar-me por nunca me ter esforçado em publicar – e fazer publicar – certos resultados inovadores que íamos obtendo e que muito mais tarde vieram a ser referidos na literatura por outros investigadores”, observa.

Maria Helena Figueiredo colaborou de perto – “mas mesmo de muito perto” – na orientação e escrita de diversas dissertações de mestrado e doutoramento, e em muitas outras dissertações e teses das quais não era orientadora formal, mas que acabaram por cair-lhe nos braços. Por isso, afirma que quase todos os investigadores cujos trabalhos envolviam Histologia, sobretudo no âmbito da Medicina Dentária e da Regeneração Óssea, iam ao seu encontro. “Isto demonstra a importância que os estudos histológicos têm em muitos dos trabalhos de investigação básica”, denota.

“A Histologia é uma ciência contemplativa por excelência, que nos surpreende sempre e que nunca se esgota. São quase sempre os pequenos detalhes que determinam as grandes decisões. O ‘Doutor Microscópio’ tem quase sempre a última palavra, e só um treino de muitas horas, dias e anos, fruto de repetidas e demoradas observações, consegue encontrar detalhes e pormenores que se revelam fundamentais para qualquer diagnóstico e prognóstico”, salienta.

Afirma ainda que as longas horas passadas ao microscópio lhe permitiram concluir que, para além de uma vertente científica, a Histologia pode apresentar também uma faceta artística e uma maneira de fazer Ciência com Arte, ou Arte com Ciência. Assim, a Microscopia pode ser considerada uma forma de arte, e a Histologia um festival de luz e de cor”.

Maria Helena Figueiredo tem vindo a colecionar, ao longo dos anos, um conjunto de imagens histológicas que, um dia, gostaria de expor na FMUC, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) ou até mesmo numa sala da cidade, como forma de homenagem aos profissionais de saúde. O propósito desta exposição, afirma, seria o de “suavizar um pouco o stresse de certos diagnósticos clínicos, alegrando a dura realidade com uma perspetiva artística, mais vistosa, colorida e, quiçá, decorativa dos processos celulares”.

Esta intenção de expor as imagens histológicas que colecionou representa, igualmente, uma tentativa de valorizar “esta alegre cidade estudantil, tão tentadora”, que, em questões de natureza académica, leva Maria Helena Figueiredo a concordar com a afirmação de que Coimbra, mais do que uma cidade, é um vício. “Como diz o poeta, ‘Eu sou feita deste chão!’”, afirma.

Aposentada desde 2014, Maria Helena Figueiredo mantém ainda alguma ligação à Área de Medicina Dentária da FMUC e continua a dedicar-se a projetos de solidariedade social, algo que sempre fez ao longo da sua vida. “Além de cuidar e acompanhar as pessoas da minha família, chegada e afastada, faço voluntariado na minha rua e arredores, prestando assistência aos vizinhos doentes, levando-os ao médico, vigiando a medicação… ando sempre aos recados!”, brinca.

“Recentemente, arrendei também um apartamento – ou, melhor dizendo, um ‘apertamento’ – na Figueira da Foz, e volta e meia vou lá para fazer longas caminhadas à beira-mar”, conta.

A alegria, a intensidade e o entusiasmo com os quais diz ter sempre ensinado são, na verdade, traços da sua própria personalidade, pois estão bem presentes na forma como se expressa ao recordar a infância, os tempos de estudante universitária e vários episódios de uma vida profissional bem-sucedida e dedicada à docência.

Em jeito de conclusão, Maria Helena Figueiredo sublinha que tudo aquilo que conseguiu alcançar a nível profissional e pessoal deve-o aos seus pais. “Eram pessoas humildes, que só com a força do seu trabalho conseguiram levar por diante o sonho de licenciar duas filhas gémeas, que ainda conseguiram ver como Professoras desta Universidade”, refere, com comoção, “e, por isso, nunca deixo de lhes prestar o meu profundo agradecimento e a minha sentida homenagem”.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Maria Helena Figueiredo