Duarte Nuno Vieira, Professor Catedrático da FMUC, é o Presidente da Academia Nacional de Medicina de Portugal e do Conselho Científico Consultivo do Tribunal Penal Internacional, entre outras funções. Enquanto perito forense do Alto-Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, já participou em dezenas de missões internacionais: visitou as valas comuns na Líbia, participou na investigação da morte do jornalista saudita Jamal Khashoggi e tem estado envolvido nas perícias a Julian Assange.
Foi eleito Presidente da Academia Nacional de Medicina de Portugal (ANMP) há cerca de seis meses. Pode falar-nos um pouco acerca desta Academia e do significado que tem para si ter sido eleito seu presidente?A ANMP reúne um conjunto de pessoas que se distinguiram particularmente no âmbito da atividade médica que desenvolvem, seja de índole eminentemente assistencial, seja de investigação ou académica. É constituída por um conjunto de apenas 50 Académicos Titulares que, uma vez eleitos, ocupam a respetiva cadeira até à sua jubilação ou aposentação, altura em que passam a Académicos Eméritos. Estas 50 cadeiras estão distribuídas pelas diversas áreas da Medicina e, atualmente, apenas uma se encontra livre. A Academia envolve também Académicos Correspondentes, sendo, por norma, mas não obrigatoriamente, entre estes que se elegem os que irão ocupar os lugares de Académicos Titulares quando uma das 50 cadeiras fica vaga.
A Academia tem por objetivos, consagrados nos seus estatutos, a promoção da investigação científica nos domínios da Medicina e da Biologia; a participação na discussão dos grandes temas nacionais sobre saúde, educação médica pré e pós-graduada, investigação biomédica e na formação do conhecimento científico; a produção de relatórios e memórias sobre temas de saúde e demais assuntos de índole médica, social e cultural, por sua iniciativa ou por solicitação de órgãos do Estado ou organizações privadas; a edição de publicações científicas, impressas ou eletrónicas, periódicas e não periódicas; e o reconhecimento e consagração do mérito científico, nomeadamente através da concessão de prémios e distinções honoríficas por serviços relevantes à ciência médica, ao País e à Academia.
A ANMP é também membro ativo da Associação Latino-americana de Academias Nacionais de Medicina e da Federação Europeia das Academias de Medicina. A Associação Latino-americana de Academias Nacionais de Medicina reúne Academias dos países da América Central e do Sul e Portugal e Espanha. É uma rede particularmente ativa, que tem promovido ações regulares e debates nos quais participam académicos de todas as academias membros e que são importantes para a promoção de reflexões conjuntas sobre o presente e o futuro da Medicina, sobre as grandes questões éticas, sobre a harmonização de procedimentos… enfim, de um conjunto de aspetos fundamentais para a promoção de medidas conjuntas que resultem em benefícios para o ensino e a formação médica, para a investigação científica e para a prática médica e a saúde em geral. A Federação Europeia das Academias de Medicina envolve as academias nacionais de Medicina de 23 países europeus e tem uma atividade muito intensa e altamente meritória, liderando, neste momento, uma série de projetos de investigação por solicitação das instituições comunitárias.
Para mim, foi particularmente relevante ter sido eleito presidente da ANMP. Desde a sua criação, os presidentes desta Academia foram sempre pessoas de referência no âmbito da Medicina Portuguesa. No século XX, por exemplo, os três presidentes anteriores foram os Professores João Lobo Antunes, Manuel Antunes e Fátima Carneiro. Suceder a estes três grandes nomes é, desde logo, uma enorme honra e privilégio. Foi também algo inesperado, porque não era expectável que alguém ligado à Medicina Legal e às Ciências Forenses fosse eleito presidente da Academia, já que este lugar sempre foi ocupado por académicos mais ligados à clínica e à atividade hospitalar. Para mim, foi até duplamente gratificante, face ao reconhecimento que representou também da relevância da Medicina Legal. Não escondo a satisfação e o orgulho que senti e sinto por ter sido eleito e considero-a uma das funções de maior significado e relevância que tive a oportunidade de assumir até hoje.
No âmbito das suas funções enquanto presidente da ANMP, que creio que exercerá até 2024…
Sim, é um mandato de três anos, que pode ser renovado uma vez. Por isso, ou saio no fim deste mandato, ou continuarei por mais três anos. Tudo dependerá da situação em que me encontrar em 2024, e do trabalho que tiver sido produzido até lá, obviamente.
E para este mandato, que ações, em traços gerais, tem planeadas?
Com a consciência plena de que um mandato de três anos implica o estabelecimento de opções de intervenção – pois não haverá nem tempo, nem recursos, para tudo realizar – propus uma ação incidindo num conjunto de aspetos muito concretos, e estipulando algumas áreas prioritárias de intervenção. Entre elas estão, por exemplo, dar início a uma reflexão profunda, no seio da Academia, sobre as necessidades formativas pré-graduadas em Medicina em Portugal e sobre o curriculum académico médico base pré-graduado; elaborar um relatório multidisciplinar, envolvendo médicos, juristas e gestores de saúde, sobre meios alternativos de resolução de conflitos em saúde; elaborar também relatórios sobre telemedicina e transição digital em saúde e sobre a (re)organização dos sistemas de saúde para o envelhecimento; concretizar webinares regulares, abertos à comunidade em geral, sobre temas socialmente relevantes no âmbito da saúde; reforçar os contactos com os órgãos do Estado e com organizações privadas, no sentido de divulgar a disponibilidade e o potencial da Academia na produção de documentos e estudos de apoio ao planeamento e decisão em saúde; a criação de um prémio científico com o nome da Academia, a dinamizar isoladamente ou com a colaboração de outra instituição, que distinga, anualmente, a melhor dissertação de doutoramento apresentada às Escolas Médicas Portuguesas; ou a dinamização de iniciativas que promovam uma obrigatória e efetiva valorização da investigação científica na progressão nas carreiras médicas.
Face a este contexto pandémico e partindo das implicações que a pandemia teve no âmbito laboral, resolvemos também investir numa área que não tem sido muito reconhecida, mas que é absolutamente fundamental: a Medicina do Trabalho. Vamos criar um prémio, patrocinado por uma das maiores empresas nacionais de Medicina do Trabalho, que será atribuído ao melhor trabalho publicado nesta área e que tenha pelo menos um autor português. Este será um prémio trienal, uma vez que atualmente não existirá produção científica em Portugal no âmbito da Medicina do Trabalho suficiente para que o prémio seja atribuído todos os anos.
Dentro do compromisso que assumimos de abrir alguns dos nossos debates à sociedade em geral, discutindo temas que sejam do interesse público, concretizámos já um primeiro debate, em novembro passado, precisamente sobre a problemática do ensino médico e a criação da primeira Faculdade de Medicina privada. Foi um debate aberto à comunicação social, que decorreu num sistema híbrido – presencialmente, em Lisboa, e também online – e que foi, até hoje, o debate com mais participações da ANMP.
Começaremos também a elaborar outros estudos e publicações regulares sobre temas que estejam a ser objeto de discussão e de debate público. Já solicitámos audiências ao Presidente da República, ao primeiro-ministro, à ministra da Saúde e a outros ministérios que têm médicos a trabalhar sob a sua tutela, como é também o caso do Ministério da Justiça e do Ministério da Defesa Nacional, para lhes falar da ANMP e para a colocar à disposição dessas entidades na discussão e análise de assuntos em que a Academia possa proporcionar um apoio relevante.
É também o Presidente do Conselho Científico Consultivo do Tribunal Penal Internacional (TPI) desde a criação deste Conselho, em 2014.
Como avalia a experiência no cargo?
Este Conselho foi criado porque o TPI se confrontava com muitas dificuldades quando tinha em mão processos envolvendo abordagens periciais médico-legais e forenses. O Procurador do TPI, que tem de fazer as acusações, confrontava-se com muitos problemas médico-legais, envolvendo por vezes opiniões contraditórias, e também com a necessidade de perspetivar que tipo de investigações médico-legais e forenses teriam de ser concretizadas para o esclarecimento científico de determinadas situações. Precisava, por isso, de algum aconselhamento, razão pela qual criou um Conselho Científico Consultivo, composto por 12 personalidades dos cinco continentes, representantes das principais instituições internacionais e regionais no âmbito da Medicina.
Sou presidente desde 2014 deste Conselho, mas terei de deixar a presidência ainda este ano, até porque já excedi em um ano o tempo máximo de presidência, o que decorre da uma situação excecional criada pelo contexto pandémico. É um trabalho que me leva, muitas vezes, a concretizar deslocações para atividades periciais, seja diretamente a solicitação do TPI, seja através de outras instituições. Por exemplo, no âmbito do julgamento de um antigo presidente do Mali, foram necessárias diversas deslocações ao país para fazer exumações de valas comuns que tinham sido encontradas. Os advogados de defesa do presidente diziam que este não devia estar a ser criticado, porque nessas valas estavam vítimas dos conflitos, cujos corpos o presidente tinha tido o cuidado de acautelar que fossem enterrados, para que não ficassem expostos à ação da fauna e da flora, o que até seria louvável. Mas, na verdade, quando foram realizadas as exumações, envolvendo uma equipa de Coimbra que constituí e que incorporou também as professoras Eugénia Cunha e Teresa Ferreira e a Dr.ª Cristina Cordeiro, o que se encontrou foram pessoas que tinham sido torturadas e executadas. Algumas dessas pessoas tinham os olhos vendados, as mãos amarradas e haviam sido claramente executadas. Encontrámos evidências claras de violações de direitos humanos, de tortura, maus-tratos e de execuções arbitrárias que foram fundamentais para a condenação da pessoa que estava a ser julgada.
Recentemente, também os crimes ambientais passaram a estar na alçada do Tribunal Penal Internacional e vêm motivando também algumas missões. A presidência deste Conselho Científico Consultivo do TPI é um trabalho intenso, muito interessante e de enorme relevância, e que exerço sem qualquer remuneração, ou seja, em regime de voluntariado. Apenas são pagas as despesas envolvidas nas deslocações.
Relativamente aos crimes ambientais, que referiu, participou recentemente num estudo sobre as implicações na saúde de crianças do Peru que sofrem contaminação por metais pesados, sendo que o TPI vai abrir uma investigação com base nos seus resultados. Em que consistiu este estudo e que resultados foram esses?
Há alguns anos, fui contactado por uma ONG, liderada por um colega italiano e especialista em Ambiente, que estava a trabalhar no Peru, em Cerro de Pasco. Cerro de Pasco é uma das cidades mais altas do mundo, que fica a mais de 4 mil metros de altitude. Ali, não há vegetação e faz um frio de morrer. As temperaturas mais altas do ano não ultrapassam nunca os 10ºC e são quase sempre negativas. Nunca passei tanto frio na minha vida como o que vivenciei no período em que lá estive.
Nessa cidade, existem minas que são as maiores do mundo a céu aberto. Não se sabe muito bem quem são os seus donos, mas consta que pertencem a um conjunto de bancos suíços. São minas que causam uma contaminação ambiental brutal, nomeadamente por metais pesados. Em Cerro de Pasco, as pessoas, aos 40 anos de idade, parecem já ter 70 ou mais, as crianças têm problemas de crescimento e sofrem de múltiplas patologias e a esperança de vida é muito curta.
A equipa dessa ONG andava preocupada com a situação, sobretudo com as implicações na saúde das crianças. Por isso, contactaram famílias que aceitaram que examinássemos as crianças. Fui até lá com uma equipa que me pediram para organizar. Estivemos lá uma semana e examinámos exatamente cem crianças, através de entrevistas e de um exame físico detalhado. Avaliámos as lesões mais características das intoxicações a que estão potencialmente submetidas, nomeadamente por metais pesados, e recolhemos também amostras, designadamente de cabelo e unhas, que foram levadas para a Alemanha para serem processadas e submetidas a estudos toxicológicos.
O objetivo da nossa investigação foi obter evidências claras da contaminação ambiental e humana que está a ocorrer. Voltaremos lá para examinarmos as mesmas crianças e percebermos como a situação evoluiu. Este trabalho e os seus resultados foram publicados recentemente numa conceituada revista científica e enviados para a ONU, a pedido do Relator Especial para as contaminações ambientais. Entretanto, o TPI irá certamente abrir um processo de investigação, já que falamos de um crime ambiental que tem sido de alguma forma minimizado e até ocultado.
Na sequência da nossa ida a Cerro de Pasco, o governo do Peru enviou uma equipa de dezenas de médicos para lá, para fazerem um levantamento do estado de saúde da população. Os habitantes daquela cidade vivem mal, não têm uma alimentação correta, não consomem vegetais, por exemplo. O alimento base de praticamente todas as refeições é galinha, também ela contaminada... A água que se bebe e a água do banho também estão contaminadas, saem da torneira já vermelhas e não têm nenhum tipo de tratamento. E, claro, o ar que se respira e inala continuamente está também fortemente contaminado.
Enquanto perito forense do Alto-Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, em que ações humanitárias tem estado envolvido?
Até hoje, participei em mais de meia centena de missões internacionais, não apenas para as Nações Unidas, mas também para outras organizações, como o Comité Internacional da Cruz Vermelha, a Amnistia Internacional, o Comité Internacional de Reabilitação de Vítimas de Tortura e o Conselho da Europa, entre outras.
O ritmo abrandou um pouco desde o início da pandemia, mas durante o período pandémico estive em missões no Líbano, para fazer a autópsia do jornalista e produtor de programas de televisão Lokman Slim, que estava a investigar a explosão no porto de Beirute e apareceu morto; estive na Líbia, que atravessou há alguns anos um período de conflito interno que resultou em muitas mortes, sendo que foram agora encontradas as valas comuns onde estão os corpos; estive na Síria, na Turquia, na Ucrânia, em São Tomé e Príncipe, em El Salvador, no Panamá, no Brasil... Enfim, apesar da pandemia, participei em missões nos cinco continentes. Espero ir brevemente aos Camarões, para fazer a autópsia de um jornalista que apareceu morto e que era crítico do governo: finalmente, o governo autorizou a autópsia.
Dizem-me que, neste momento, devo ser o perito forense que participou em mais missões internacionais. Na maioria das situações é um trabalho que concretizo em regime de voluntariado, recebendo apenas um per diem para as despesas de alojamento, alimentação e deslocação. Mas, para ser sincero, é uma atividade que adoro. É algo que me dá muita satisfação pessoal e espiritual e que, enquanto tiver saúde, gostaria de manter. Começo a pensar, obviamente, que vai sendo tempo de pôr cobro a tanta deslocação, até porque a idade vai avançando e em muitos dos países onde me desloco não existem adequadas estruturas de saúde, ou estão colapsadas face aos conflitos que esses países atravessam. Penso muitas vezes que, se tiver um AVC ou um enfarte, quando estou em alguns destes países, corro um sério risco de não sobreviver. Confesso que me vai custar abandonar esta atividade, da qual gosto mesmo muito. Mas enfim, terei de pensar em pôr a razão à frente do coração e que vai sendo tempo de me fazer substituir por alguém mais jovem!
Não teme pela sua segurança nessas missões, nomeadamente quando enfrenta poderes instituídos?
Quando vou para países mais problemáticos, vou acompanhado por equipas de segurança, o que por vezes é fundamental. Assim sucedeu, por exemplo, numa missão na Papua-Nova Guiné, onde enfrentei problemas e riscos sérios. No México, quando fui ao estado de Sinaloa com o Relator Especial das Nações Unidas para a Tortura, para avaliarmos alegadas situações de tortura em que estavam implicados cartéis de droga, foi necessário concretizar as deslocações em carros blindados...
Há, efetivamente, países que são realmente perigosos e nos quais tive algum receio de estar. Mas também tenho de confessar que isto me dá um bocadinho de adrenalina, e que tenho dificuldade em passar sem ela. Sabemos os riscos que corremos e temos formações específicas para participarmos nestas missões, como cursos de sobrevivência ou de comportamento em caso de rapto; aprendemos noções essenciais de sobrevivência e segurança e os cuidados a ter para não saberem onde estamos, a saber como é que nos devemos vestir, quem devemos contactar e como, que cuidados ter e como proceder em cada situação complexa e de perigo... Mas, apesar destes circunstancialismos, é um trabalho apaixonante e realmente interessante.
por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Duarte Nuno Vieira