Do curso de Medicina   

A vida é feita de muitos momentos…
ou fascículos  

Se são os muitos momentos – ou, por outras palavras, fascículos – que vivemos e que guardamos na memória que enformam o nosso percurso de vida, no caso de Salvador Massano Cardoso pode dizer-se que esse percurso foi literalmente marcado por dois fascículos. Faziam parte da coleção ‘Medicina e Saúde’ e foram comprados pela mãe numa papelaria. Nesse momento, perdeu-se um eventual engenheiro, mas ganhou-se um futuro médico.

Nascido em Santa Comba Dão, a 11 de janeiro de 1951, Salvador Massano Cardoso frequentou a Escola Cantina Salazar, no Vimieiro (escola primária), o colégio de Santa Comba até ao 5º ano (atual 9º ano) e o colégio no Carregal do Sal nos dois anos seguintes, até ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC).

Fruto da boa memória que diz ter herdado do pai, são muitas as “historietas”, como lhes chama, de que Salvador Massano Cardoso se recorda e que diz terem marcado a sua forma de ser e de estar. “A memória do meu pai era ainda melhor do que a minha: aos 90 anos, quando morreu, lembrava-se, da mesma forma, do que lhe tinha acontecido em criança, há poucas horas ou há oito dias”, garante.

“Eu, felizmente, ainda vou tendo uma memória muito boa, e tenho memórias de quando era criança espetaculares. Como gosto de escrever, aproveito para escrevê-las e dar-lhes uma certa faceta literária ou poética”, refere, “e recordo-me de tantas coisas dessa altura que diria que, às vezes, a situação até é conflituosa, porque parece que cada uma dessas memórias quer ter prioridade sobre as outras!”, acrescenta, em tom de brincadeira.


Do curso

Muitas dessas historietas da infância têm o seu avô paterno como personagem, com quem teve um contacto próximo quando era criança. “Ele tinha uma personalidade muito forte, e ensinou-me um conjunto de regras que me marcaram, pautadas por aquilo que, mais tarde, entendi serem honra e honestidade”, afirma. Uma delas passou-se quando Salvador Massano Cardoso tinha apenas cinco anos de idade, quando o avô, depois do almoço, lhe deu a mão e levou-o até ao tribunal para lhe dizer:

- É aqui que os homens de honra e de bem vêm queixar-se quando se sentem ofendidos. Quando uma pessoa é injustiçada, tem de vir aqui, porque é o juiz que resolve esses problemas, não somos nós.

“O que é certo é que, passado algum tempo, roubaram-me o meu pião favorito, e eu, chateado, fui até ao tribunal, para queixar-me ao senhor doutor juiz”, indica. Tendo sido interpelado pelo tio, que o encontrou já no tribunal, Salvador Massano Cardoso respondeu-lhe que ali estava porque queria apresentar uma queixa. “O meu tio foi a correr chamar o meu avô enquanto eu fiquei sentado na antecâmara, à espera. Quando o meu avô chegou, foi falar com o escrivão. Ensaiaram aquilo muito bem e, depois, vieram os dois dizer-me que o senhor doutor juiz não estava e que por isso não podia receber-me”, conta.

“Esta é só uma pequena historieta, de muitas outras que podia contar, em que fui ensinado a respeitar este conjunto de regras que, tenho a certeza, foram determinantes na minha vida. É aquilo a que os cientistas chamam imprinting: nascemos com um determinado património genético que só se exprime quando confrontado com acontecimentos externos… digamos que o meu imprinting foi muito bom na juventude!”, observa.

De entre as muitas outras historietas que fazem parte da sua infância, uma delas envolve ter sido apanhado pela polícia secreta na quinta do seu vizinho, António de Oliveira Salazar. "Estava na quinta dele com outros meninos, que conseguiram fugir quando viram aquele pessoal todo da polícia secreta. Eu, como era o mais novo, não consegui: fui apanhado e ainda me aleijei um bocadito numa coxa, por causa de uma videira", conta.



É curioso como, em poucos minutos, mudamos de opinião de forma radical.

Salvador Massano Cardoso foi levado para junto de Salazar, o então Presidente do Conselho. "Eu já tinha ouvido falar do senhor, e só pensava no que me ia acontecer... A verdade é que não aconteceu nada. Lavei e desinfetei o meu ferimento e, como estávamos na Páscoa, ainda recebi um saco de amêndoas de licor, coisa que nunca tinha visto na vida", refere. "O problema é que eu comi as amêndoas todas de uma vez: e pronto, está-se mesmo a ver o que aconteceu aos intestinos de um menino que come um pacote inteiro de amêndoas de licor", graceja.

Embora em criança tivesse a ambição de vir a ser polícia sinaleiro no futuro, já que tinha ficado fascinado, numa visita a Coimbra, com a indumentária que o cargo exigia, quando se encontrava no último ano do liceu a sua decisão quanto à profissão que queria ter era já outra, e não envolvia capacetes, luvas ou indicações de trânsito. “Queria ir para Engenharia, já que adorava Matemática, Física e Química”, revela.

Até que, “numa quarta-feira de manhã, num dia de sol espetacular”, a sua mãe chegou da feira, onde tinha ido fazer compras, e trazia consigo os já referidos dois fascículos da coleção ‘Medicina e Saúde’, que tinha parado para comprar numa papelaria. “Comecei a ler aquilo e, quando acabei, pensei logo ‘já não vou para Engenharia’”, relembra. “É curioso como, em poucos minutos, mudamos de opinião de forma radical. Fiquei fascinado pela leitura daqueles fascículos, pela Anatomia, pela Fisiologia… ainda hoje os tenho guardados”, admite.

Salvador Massano Cardoso entrou para o curso de Medicina da FMUC em 1969, depois da crise académica. “Correu tudo bem, embora tenham sido tempos conturbados… Cheguei a levar uma bordoada de um comandante da polícia, mesmo à porta da faculdade, por estar apenas na companhia de um colega e isso já ser considerado um ajuntamento”, relembra, “mas como me refugiava mais nos estudos, algo que sempre gostei de fazer, acabava por, de certa forma, ultrapassar esses problemas”.

Um dia, em 1972, quando estava no átrio do Instituto de Higiene e Medicina Social a aguardar por uma aula prática, o diretor do instituto abriu a porta do gabinete – que, anos mais tarde, viria a ser o gabinete de Salvador Massano Cardoso – e pediu-lhe que agendassem uma reunião. “Na data combinada, lá apareci, e ele convidou-me para ser colaborador no instituto. Eu ainda não tinha sequer feito a cadeira de Higiene e Medicina Social e o Professor convidou-me para trabalhar lá. Penso que gostou de mim porque eu nunca faltei a uma aula: para mim, as aulas eram sagradas”, revela.

“O Professor deve ter reparado que eu nunca faltava e que, de vez em quando, interagia e fazia-lhe perguntas. Então, como ainda não tinha feito a cadeira e, por isso, não podia dar aulas, comecei a trabalhar no instituto, na área laboratorial e de investigação, a fazer cromatografia, e comecei a gostar daquilo, tanto que enveredei mesmo por essa área”, denota.

No dia 1 de janeiro de 1975, ano em que se licenciou, Salvador Massano Cardoso passou a ser, oficialmente, Monitor da FMUC. “Digamos que a minha carreira começou em 1972, ainda como estudante, depois passei a monitor e, em seguida, calcorreei todos os passos, de Assistente Convidado até chegar a Professor Catedrático”, afirma.

Salvador Massano Cardoso confessa que sempre gostou de ensinar e de investigar, e que até ao último dia em que ensinou, preparava sempre as aulas com o mesmo cuidado. “Preparava-as, na véspera, como se as fosse dar no dia seguinte pela primeira vez. Sentia sempre um certo receio, aquele nervosismo que desaparecia assim que começava a dar a aula. Nesse momento, era como se fosse um ator a entrar em palco: o nervosismo desaparecia e conseguia ser criativo”, observa.

No âmbito da docência, assume a preferência pelas aulas do ensino pós-graduado. “É um ensino diferente, porque falamos de pessoas um pouco mais velhas e com alguma experiência de vida, com mais facilidade em interagirem com o seu professor e em interpelá-lo”, faz saber. “E eu acho que as aulas devem ser espaços de criatividade espontânea. Durante uma aula, o próprio professor não ensina, tem de aprender: se, no decurso da aula que está a ensinar, ele aprender também, então é porque a aula é boa”, salienta.

Para além da prática clínica, que ainda hoje mantém, e da docência, da qual se aposentou em 2017, Salvador Massano Cardoso foi também diretor do Instituto de Higiene e Medicina Social, responsável pelos mestrados em Saúde Pública e em Saúde Ocupacional e do curso em Medicina do Trabalho da FMUC, desempenhou vários cargos de direção nos Conselhos Pedagógico, Científico e Diretivo da FMUC, foi Provedor do Ambiente e da Qualidade de Vida de Coimbra e deputado na Assembleia da República.

Quanto à experiência na atividade política, Salvador Massano Cardoso é peremptório. “Se me quiser perguntar qual foi a melhor escola que tive até hoje, digo-lhe já que não foi a primária, não foi o liceu e não foi a faculdade, mas sim a Assembleia da República. Aquilo foi um pós-doc, o melhor pós-doc que tive até hoje”, garante.

“Entrei na política um pouco sem estar à espera, e foi algo que mudou radicalmente a minha vida: foi uma experiência única, e admito que gostava de lá ter continuado, porque se alguém quiser ajudar o concidadão e contribuir para o País, é ali que pode fazê-lo de uma forma honesta e profunda”, destaca, “e sei que alguns documentos que emergiram de lá têm o meu cunho, a minha ideia e a minha presença”. Salvador Massano Cardoso salienta, igualmente, a importância do cargo de deputado, já que a vida de todos é influenciada pelas decisões que ali são tomadas. “É um trabalho demasiado importante e que só deve ser feito por pessoas que queiram lutar pelo bem dos nossos concidadãos”, afirma.

Apesar da intensa atividade política, Salvador Massano Cardoso garante que nunca deixou de dar uma aula. “Não recebia o ordenado de professor, dei aulas pro bono enquanto recebia o ordenado de deputado, mas nunca deixei de dar as aulas, de dirigir o que tinha de dirigir nem de fazer investigação. Agora, como consegui fazer tudo ao mesmo tempo? Eu não sei bem quais são as minhas qualidades, mas há uma que reconheço: sou um ótimo gestor do tempo, talvez por odiá-lo!”, brinca.


Nunca me queixei daquilo que nunca tive.
O que nunca alcancei não me causa ansiedade nem saudade.

Nos últimos cinco anos, e embora já não dê aulas, Salvador Massano Cardoso assegura que tem estado mais ocupado do que nunca. “Hoje, trabalho cinco dias por semana, faço consultas de Medicina do Trabalho e trabalho mais agora do que trabalhava antes. Gosto muito do que faço, tenho uma satisfação enorme nisso e, portanto, em termos funcionais, não posso dizer que esteja aposentado”, refere. “Aliás, só de pensar que um dia vou deixar de trabalhar… Deus me livre! Acho que não durarei muito depois disso, de certeza absoluta”, afirma.

A par da atividade profissional, Salvador Massano Cardoso tem também dois hábitos que o acompanham frequentemente: a escrita e a leitura. “Escrevo de dia, de noite, a qualquer hora! E leio constantemente, mas gosto sobretudo de escrever. Se nunca tivesse ido para a Assembleia da República, se nunca tivesse sido deputado, nunca tinha escrito nada, porque foi aí que comecei a escrever”, revela. “Já escrevi alguns livros. Historietas e crónicas, escrevi milhares delas. E tudo começou numa tarde de setembro, quando escrevi um artigo num dia em que houve um debate sobre a calçada portuguesa e o bordado de Castelo Branco”, conta.

Com uma extensa e variada atividade profissional, é por isso natural que Salvador Massano Cardoso afirme que se sente uma pessoa realizada. “Nunca me queixei daquilo que nunca tive. O que nunca alcancei não me causa ansiedade nem saudade. Estou satisfeito com o que faço, gosto de ser uma pessoa discreta, sem muita visibilidade, de estar no meu canto… E gosto de ajudar os outros de forma desinteressada, de ver sorrisos e olhares cheios de brilho”, assegura.

Talvez seja esse gosto genuíno em ajudar os outros que, quando confrontado com a pergunta acerca da existência de algum momento da sua vida que tenha sido particularmente marcante, Salvador Massano Cardoso se lembre de um episódio que aconteceu há cerca de 46 anos, quando cumpria o serviço militar enquanto médico do Regimento de Paraquedistas de Tancos, e de uma menina, chamada Madalena. “O chamado humanismo médico é algo que se constrói, não através de palavras ou de leituras, mas através das experiências vividas, e quanto mais novos e inexperientes somos, mais estas experiências nos marcam”, refere.

“A Madalena era uma criança de oito anos de idade. Um dia, a sua mãe, que morava numa casa pobre, em que o chão era apenas terra, apareceu lá na base aérea a pedir a ajuda de um médico, já que a filha estava muito mal”, começa por contextualizar. Salvador Massano Cardoso preparou-se para ir visitar a criança e, para tal, pensou levar o seu carro. “O sargento disse-me logo que, se fosse no meu carro – na altura eu tinha um Honda – mal saísse da estrada ficava logo atolado, porque isto aconteceu num ano de chuvas torrenciais, e naquele dia chovia muito também. Passado pouco tempo, aparece-me com um jipe militar, acompanhado de mais um cabo e um soldado paraquedista e disse-me «vamos lá, senhor doutor». Havia ali um altruísmo fora do comum”, destaca.

Quando chegaram à casa da pequena Madalena e da sua mãe, Salvador Massano Cardoso examinou a criança e pensou que pudesse estar em coma diabético. Não se enganou. “Na altura, já tínhamos aquelas fitazitas para ver o açúcar na urina, e vi que ela tinha de ser tratada urgentemente, caso contrário morreria”, explica.

“Como havia uma tempestade grande e tínhamos de levá-la para Lisboa, pedimos ao comandante um helicóptero, que nos foi prontamente cedido. Eles eram espetaculares, tinham uma solidariedade e uma vontade de ajudar enormes”, observa. “Passámos primeiro por Abrantes, para que a criança fosse hidratada, e de lá foi transportada de helicóptero para Lisboa, tendo conseguido assim sobreviver”, refere. Passados alguns dias, a mãe da criança procurou Salvador Massano Cardoso, conforme conta:

- Senhor doutor, venho aqui para lhe agradecer.
- E a menina, como está?- A menina está bem. Venho aqui pedir-lhe também um favor.
O senhor autoriza-me a que eu vá a Fátima rezar a Nossa Senhora pela minha filha?
- Como? Está a pedir-me isso a mim? Pode ir à vontade!- O senhor não se importa?
- Não tenho nada que me importar! Mas olhe… ela que não vá a pé, sim? [risos]

“Esta história marcou-me muito, tanto que já se passaram estes anos todos e ainda hoje me lembro da Madalena… A minha vida é feita destas pequenas histórias, e consigo definir todos os momentos que me marcaram”, indica. Nós confirmamos: os episódios aqui descritos são apenas alguns de vários que nos foram contados, e dos quais Salvador Massano Cardoso se recorda com uma notável precisão.

Na sua vida, diz ter também uma regra de ouro, um pensamento que está sempre presente. “Tudo o que acontece aos outros pode acontecer-me a mim, para o bem e para o mal. Por isso, aceito o que vier, porque não sou, nem quero ser, diferente dos outros”, afirma.

Embora Salvador Massano Cardoso confesse sentir algum medo do futuro, razão pela qual prefere não fazer planos, cá continuaremos disponíveis para quando quiser partilhar com o entusiasmo que lhe é característico novas historietas da sua vida que, com certeza, entretanto surgirão. Ou, por outras palavras, novos fascículos.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Salvador Massano Cardoso