Do curso de Medicina   

O amor pelos livros e pela Medicina, desde sempre

Uma coisa é capaz de ter levado à outra. Manuela Carvalheiro sempre gostou muito de ler e de escrever e, tanto quanto se lembra, sempre afirmou que queria ser médica. “Não sei dizer ao certo qual a razão que me fez querer ir para Medicina, mas desde pequenina que tenho um enorme gosto pela leitura”, admite, “e talvez tenha sido por alguma coisa que li que surgiu a vontade de ser médica”.

O gosto pela leitura e pela escrita mantêm-se até hoje. O gosto pela Medicina também, claro, e os resultados e contribuições neste domínio estão à vista de todos. Ao longo do seu percurso profissional, que conta já com 50 anos, Manuela Carvalheiro dedicou-se ao ensino, à prática clínica e à investigação básica e clínica na Endocrinologia, especialmente na área da diabetes, e colaborou também com sociedades científicas como a Sociedade Portuguesa de Diabetologia (SPD) e a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM), dois exemplos de associações das quais foi inclusive presidente.

Nascida a 25 de janeiro de 1947, nas Caldas da Rainha, Manuela Carvalheiro guarda da infância memórias felizes da escola e de muitas brincadeiras ao ar livre. “Lembro-me de brincar com a minha irmã numa pequena quinta, que ainda hoje temos, e no jardim da casa que tínhamos na cidade”, recorda. “Quanto à escola, sempre fui boa aluna e, por isso, as coisas foram decorrendo normalmente... Frequentei o Externato Ramalho Ortigão, onde fiz todo o meu percurso escolar até entrar na universidade”, acrescenta.

Outra memória que Manuela Carvalheiro tem é a de sempre ter dito que queria vir estudar para Coimbra, apesar de não ter qualquer ligação à cidade. “A ideia de vir para Coimbra era essencialmente lúdica… Era frequente ouvirmos histórias sobre a cidade e a universidade, e isso fez-me querer vir para cá”, confessa, “apesar de a maior parte dos meus colegas ter ido estudar para Lisboa”.


Depois, chegou abril de 1969 e o movimento académico, e as coisas mudaram muito.

No ano letivo de 1964-1965, Manuela Carvalheiro ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). “Vivenciei o movimento dos estudantes em 1969, e acho que essa experiência foi muito positiva em termos culturais e de compreensão de certos problemas sociais e políticos, porque eu não tinha nem a vivência nem o conhecimento dessa realidade”, denota.

Manuela Carvalheiro constata, nesse âmbito, que, nos primeiros anos de curso, antes da crise académica de 1969, existia um maior distanciamento entre professores e alunos. “Havia uma grande veneração pelos professores, que nem sempre se aproximavam muito dos seus alunos. Lembro-me de, quando um professor de uma cadeira se deslocava do antigo hospital, ao pé da Praça D. Dinis, para vir dar aulas na faculdade ali ao lado, haver quase um cortejo de assistentes da cadeira e de colaboradores do hospital a acompanharem o professor e a trazerem-lhe a pasta”, relembra. “Depois, chegou abril de 1969 e o movimento académico, e as coisas mudaram muito. Alguns professores, considerados mais rígidos e distantes, tornaram-se até mais próximos dos alunos”, observa.

“A crise académica foi um tempo muito interessante para nos apercebermos da realidade da vida social e da vida política portuguesas. Mas esta fase que, de certa forma, foi de aprendizagem, teve também aspetos negativos, como seria de esperar. Havia uma divisão entre os colegas que iam fazer exames e aqueles que não iam, e isso gerou alguns conflitos e situações mais delicadas que, apesar de tudo, se foram esbatendo com o tempo. Além disso, estávamos em plena guerra colonial, e muitos dos meus colegas rapazes foram castigados e mandados para a guerra…”, comenta.

Esta experiência e a vivência próxima da crise académica acabou, naturalmente, por deixar marcas. Por isso, Manuela Carvalheiro admite que, para além da prática clínica e da docência, ao longo da sua carreira fez também por estar envolvida em movimentos de caráter associativo.

Em 1971, terminou o curso de Medicina, apesar de, oficialmente, a data de fim da sua licenciatura ser o ano seguinte, conforme faz saber. “O que acontece é que, naquele tempo, havia um último ano de curso, o chamado ano de prática clínica”, explica. “Mas era, essencialmente, um ano em que já não tínhamos muita atividade. O mais importante que eu e os meus colegas fizemos nesse ano foi estar algum tempo no [Hospital-Colónia] Rovisco Pais, onde ainda eram recebidos e tratados vários casos de Doença de Hansen [lepra]. Foi lá, aliás, que ganhei o meu primeiro ordenado”, salienta. “Portanto – e ainda há pouco tempo tivemos um jantar de curso –, consideramos que o nosso curso fez 50 anos este ano, apesar de a data oficial da nossa licenciatura ser o ano de 1972”, indica.

Sobre a sua formação na FMUC, Manuela Carvalheiro destaca ainda que sentiu, ao longo dos anos de curso, que a universidade “formava as pessoas não apenas do ponto de vista técnico dos cursos que frequentavam, mas também as preparava para a vida”. Algo que, hoje, lamenta não ser completamente possível. “Entretanto, o número de estudantes cresceu consideravelmente e a universidade mudou e passou a ser quase que apenas o lugar onde se aprende uma profissão: penso que é isso que hoje acontece, de certa forma”, refere.

Terminada a licenciatura e o referido ano de prática clínica, Manuela Carvalheiro deu início ao seu percurso profissional, como médica e como professora da FMUC. “Conciliei praticamente desde logo a prática clínica com a docência, embora não necessariamente com a docência de Endocrinologia, até porque não havia ninguém doutorado nessa área”, explica. “Naquela época, os professores iam lecionando várias cadeiras até chegarem a cadeiras como a de Patologia Médica ou Patologia Cirúrgica, que eram as cadeiras dos últimos anos de curso e nas quais os professores terminavam também a sua carreira académica”, indica.

Em 1974, Manuela Carvalheiro começou por dar aulas como Assistente de Terapêutica Geral e Hidrologia, tendo, posteriormente, passado a ser também Assistente das cadeiras de Higiene e Medicina Social, de Fisiologia e de Patologia Médica. “Sempre me seduziu dar aulas, e várias vezes fi-lo como voluntária, já que nem sempre era possível fazerem-se contratos”, observa.

Na sua carreira enquanto docente da FMUC, Manuela Carvalheiro fez ainda parte da primeira Comissão Pedagógica que se seguiu ao 25 de abril de 1974. “Essa Comissão tinha características muito particulares, pela altura em que aconteceu e porque se deu depois do boom de entrada de muitos alunos na Universidade de Coimbra, pela mão do Professor Veiga Simão”, ministro da Educação Nacional entre 1970 e até ao 25 de abril, “que abriu muito as escolas universitárias aos alunos que, de repente, se multiplicaram nas universidades”, relata.

“Deste modo, a seguir ao 25 de abril a FMUC deparou-se com um número considerável de alunos e com um cenário em que não havia salas ou professores suficientes e, por isso, não havia capacidade para serem dadas aulas”, menciona. “Quando integrei a Comissão Pedagógica – que contava com elementos muito experientes como o Professor Carmona da Mota e o Professor Torrado da Silva, entre outros – o que fizemos foi uma colaboração com a Faculdade de Farmácia no sentido de as aulas básicas, ou seja, dos primeiros anos da licenciatura em Medicina da FMUC e que eram comuns à Farmácia, serem dadas através de circuitos de televisão”, explana. “É claro que houve quem achasse a experiência muito interessante e houve quem não achasse nada interessante, por considerarem que, desse modo, não existia a necessária ligação professor-aluno, mas, ainda assim, foi a solução que conseguimos na altura e que, à sua maneira, foi eficaz”, observa.

Quanto ao facto de não ter começado logo por dar aulas de Endocrinologia, área na qual é especialista, Manuela Carvalheiro indica que tal não aconteceu porque, conforme referido, não havia nenhum docente da FMUC doutorado e ligado de forma mais efetiva a essa área. “Quem dava as aulas de Endocrinologia era o Professor Polybio [Serra e Silva], que estava mais ligado à Cardiologia; nessa altura, era frequente atribuir-se a regência de uma cadeira a um doutorado sem que essa cadeira tivesse obrigatoriamente de ser a da sua especialidade enquanto médico”, esclarece. Nesse sentido, Polybio Serra e Silva contava com o apoio do “Dr. Almeida Ruas nas aulas teóricas e com o apoio da equipa de Endocrinologia do hospital”, da qual Manuela Carvalheiro fazia parte, “nas aulas práticas”.

Questionada sobre como a Endocrinologia acabou por se tornar na sua especialidade médica, Manuela Carvalheiro começa por contextualizar: “quando me formei, a Endocrinologia, assim como outras especialidades que hoje conhecemos, não eram especialidades autónomas, à exceção, claro, da Pediatria ou da Obstetrícia, entre algumas outras”. Por esse motivo, explica que, quando fez o concurso para entrada na especialidade, concorreu para uma vaga na Medicina Interna. “Pertenci ao grupo que fez, pela primeira vez, o teste para a escolha da especialidade… costumo dizer que a minha geração fez os concursos todos!”.

“Entretanto, o 25 de abril trouxe várias movimentações, inclusive a nível hospitalar: uma delas foi a de tornar especialidades como a Endocrinologia autónomas”, conta, “e isso acontecia em grandes reuniões, no Salão Nobre do hospital velho, onde se votava, de braço no ar, a criação ou não de uma especialidade médica”.

Assim, Manuela Carvalheiro pediu a sua transferência da Medicina Interna para a Endocrinologia cerca de um ano após esta se ter autonomizado enquanto especialidade médica, e foi nesta especialidade que desenvolveu um notável percurso académico, clínico e de investigação, que poderia deixar antever alguma dificuldade em conciliar a sua atividade profissional com a vida pessoal.

No entanto, Manuela Carvalheiro indica que, à sua maneira, conseguiu sempre fazer uma boa gestão de todos os domínios da sua vida. “Tenho marido e tenho dois filhos. O meu marido sempre foi muito compreensivo quanto à minha atividade, e devo confessar que tive também uma pessoa em casa que me ajudava muito a nível familiar”, indica. “Além disso, sempre fui uma pessoa despachada e nunca dormi muito… por isso, era comum aproveitar as noites para trabalhar”.

“O tempo foi passando e fiz toda a carreira hospitalar, passando por todos os graus existentes na altura… Em 1998, doutorei-me”, conta. “Fiz o doutoramento porque, à época, o futuro da Endocrinologia estava num impasse, uma vez que não existia ninguém doutorado nesta área na FMUC. Então, com o apoio dos meus colegas de Serviço, avancei com a proposta de fazer o doutoramento e contactei o meu diretor de Serviço, o Dr. Almeida Ruas, e também o Professor Doutor Armando Porto, pessoa extremamente importante em toda a organização da FMUC naquela altura”, complementa. “Embora nos situássemos em posições de pensamento político diferentes, o Professor Doutor Armando Porto apoiou-me muito, e foi graças a ele que consegui ver o meu processo para realização do doutoramento aprovado no Conselho Científico da FMUC”, enfatiza.

À data da jubilação de Polybio Serra e Silva, Manuela Carvalheiro já havia defendido a sua tese de doutoramento, sobre diabetes e gravidez, e, por isso, a regência da cadeira de Endocrinologia da FMUC passou para as suas mãos. “Por essa altura, eu já me tinha dedicado de forma muito intensa à área da Endocrinologia. Sempre me interessei muito pela diabetes, especialmente pela diabetes gestacional. Em 1987, instituímos, com a Maternidade Dr. Daniel de Matos, na pessoa da Sr.ª Dr.ª Isabel Fagulha, a primeira consulta de Endocrinologia direcionada às grávidas com patologia endócrina, especialmente às com diabetes prévia e diabetes gestacional. Esse passo foi de tal maneira importante que, no primeiro ano, foi possível reduzir a mortalidade neonatal dos filhos das mulheres com diabetes a zero por cento”, destaca.

Manuela Carvalheiro aposentou-se em 2012, não sem que antes uma colega do Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) concluísse o doutoramento. “Acredito que não voltará a existir a separação entre FMUC e CHUC que, até há algum tempo, se fazia sentir muito, porque um serviço hospitalar sem ligação à universidade parecia que tinha sempre algo em falta; por melhor que fosse e por muito que fizesse, parecia que faltava sempre algum reconhecimento”, constata.

Sobre o facto de se ter aposentado antes dos 70 anos de idade, Manuela Carvalheiro é pragmática. “Nunca quis reformar-me no dia em que fizesse 70 anos… Então uma pessoa faz 70 anos e, em vez de estar contente, tem de estar a arrumar as gavetas porque chegou à idade de se ir embora? Eu nunca quis isso… logo, antecipei-me!”.

“A minha preocupação foi mesmo assegurar que deixava alguém doutorado no Serviço. De resto, a dinâmica já estava criada, só havia que mantê-la. E nós já tínhamos uma grande dinâmica: fomos os primeiros do País a usar as bombas de perfusão de insulina, a ter um aparelho de monitorização contínua da glicose e a ter um ecógrafo para fazer ecografias da tiroide, por exemplo”, declara.


No fundo, sou uma privilegiada, porque, apesar de me ter reformado, as solicitações não acabaram.

Hoje, Manuela Carvalheiro dedica-se à prática clínica num consultório privado em Coimbra, e embora o seu dia-a-dia não seja atualmente tão atarefado quanto antes, quando era regente de Endocrinologia na FMUC e diretora do Serviço de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo do CHUC, isso não significa que não continue a ser preenchido.

“Para além das consultas aqui em Coimbra, dou também consultas nas Caldas da Rainha, numa casa de saúde mutualista. Depois, faço também formações pontuais com a indústria farmacêutica ou de ensino pós-graduado – já dei aulas em pós-graduações em Lisboa e no Porto e, com alguma regularidade, dou também aulas em pós-graduações da Medicina Legal aqui em Coimbra –, e escrevo artigos quando me pedem”, afirma.

“No fundo, sou uma privilegiada, porque, apesar de me ter reformado, as solicitações não acabaram”, indica. “Ainda na semana passada integrei uma mesa-redonda sobre a digitalização da saúde… As pessoas, quando querem assim alguém mais velho que possa estar a par disto ou daquilo, lembram-se que eu existo!”, refere, em tom de brincadeira.

Atualmente, os tempos livres continuam a ser passados na companhia dos livros e, sempre que possível, agora também dos netos. “Tenho quatro netos: dois estão em Barcelona, onde vive a minha filha, e os outros, duas netas, estão cá em Coimbra, onde vive o meu filho. Portanto, o que agora quero fazer é vê-los crescer, com felicidade e com saúde”, conclui.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Manuela Carvalheiro