Do curso de Medicina   

Com o coração do lado certo 

A 20 de julho de 2018, no dia em que completou 70 anos de idade, proferiu a sua Lição de Jubilação no grande auditório do centro de congressos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), perante a presença da família, de colegas, amigos, doentes e até de altas figuras estatais. A Lição, emotiva e bem-humorada, teve como título “Uma Vida de Coração nas Mãos”, e apenas quem não souber quem é Manuel Antunes nem tiver o mínimo conhecimento do seu notável percurso na cirurgia cardiotorácica pensará que este título tem mais de metafórico do que de literal. 

Os números são, de facto, impressionantes. Foram mais de 35 mil as cirurgias de coração aberto que já realizou, incluindo mais de 13 mil operações valvulares. Mas desengane-se quem pensa que a intensa atividade cessou há pouco mais de três anos. Manuel Antunes continua a passar a sua vida de coração nas mãos, agora num hospital privado de Coimbra, e é ainda o atual Presidente da Cáritas Diocesana de Coimbra e Professor Catedrático Convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC).

Uma vida que começou na aldeia de Memória, em Leiria, onde nasceu e viveu até 1954. Aos cinco anos e meio, Manuel Antunes mudou-se, juntamente com a sua mãe e o seu irmão mais novo, para Lourenço Marques [atual Maputo], onde o seu pai já se encontrava a viver e a trabalhar como motorista dos transportes públicos camarários. “Memória era uma aldeia pobre, como era, aliás, todo o País naquela altura. Foi essa a razão pela qual o meu pai emigrou em 1950”, conta.

Toda a viagem até Moçambique foi marcante para Manuel Antunes. “Eu nunca tinha andado de comboio; por isso, só a viagem até Lisboa já foi algo de novo”, confessa. De Lisboa a Lourenço Marques, o trajeto foi feito pelo mar, “em navios cujos porões eram transformados em grandes camaratas”, conforme relata.

A chegada a Moçambique deu-se a 1 de abril de 1954. “Quando finalmente chegámos e a família ficou reunida, fomos almoçar a uma cervejaria. Lembro-me de que havia lá uma daquelas máquinas em que se punha uma moeda e um disco começava a tocar: foi a primeira vez que ouvi a Amália Rodrigues a cantar o ‘Barco Negro’… Nunca mais me esqueci desse momento”, revela.

A 10 de setembro do mesmo ano, dia em que começavam as aulas, entrou para a primeira classe, na Escola João Belo. “A minha professora do ensino primário foi uma das chaves da minha formação e teve uma grande influência depois, na minha carreira. Eu sou muito saudosista e sei que as pessoas não gostam de ouvir ‘no meu tempo é que era’, mas… eu acho que no meu tempo é que era!”, refere, em tom de brincadeira.

“Mais importante do que ensinar-me a matéria, a minha professora ensinou-me a viver. Eu vinha de uma aldeia pobre e mudei-me para uma cidade que era – e ainda é hoje, depois da independência – bem diferente daquilo que era o nosso ambiente metropolitano, e ela soube encaixar-me nesse ambiente”, observa.


Sempre fui um bocado rebelde e voluntarioso, o que às vezes não agradava aos professores!

Terminada a quarta classe, que acabou por ser feita em Portugal numa altura em que teve de voltar ao País por um ano com a família devido a um problema de saúde do seu pai, Manuel Antunes voltou para Moçambique e entrou no Liceu Nacional Salazar, onde estudou nos sete anos seguintes. Depois, entrou para a Faculdade de Medicina da Universidade de Lourenço Marques (FMULM), tendo realizado o último exame do curso a 30 de julho de 1971.

Manuel Antunes afirma que o ensino da Medicina que vivenciou era exigente, mas que, de igual modo, era um ensino que envolvia uma relação muito próxima entre docentes e alunos. “Do primeiro ao sexto ano da faculdade, mantive sempre relações pessoais próximas com os meus professores, umas boas e outras nem tanto, já que sempre fui um bocado rebelde e voluntarioso, o que às vezes não agradava aos professores!”, admite.

Pelo facto de ser recente – Manuel Antunes frequentou a terceira edição do curso de Medicina – e de contar com a colaboração de professores de outras universidades, nomeadamente portuguesas, havia a necessidade da FMULM, tal como as demais faculdades da mesma instituição, criar e formar o seu próprio corpo docente.

Para tal, eram escolhidos os melhores alunos, que mais se tinham distinguido ao longo do curso, para integrarem os quadros. Foi assim que Manuel Antunes se tornou Assistente de Cirurgia na FMULM e, passados cerca de dois anos, “uma vez que a ideia era que os jovens docentes fizessem o doutoramento”, concorreu a uma bolsa para prosseguir com os estudos fora do país.

“Joanesburgo, a 550 quilómetros de Lourenço Marques, era naquele tempo, ainda mais do que hoje, um potentado em termos de Medicina, por isso decidi ir para lá”, conta. O que era suposto ser uma estada na cidade sul-africana de dois anos e meio acabou por prolongar-se, uma vez que, após o 25 de abril de 1974, o fecho de fronteiras impossibilitou o regresso de Manuel Antunes a Moçambique: “quando, a 27 de fevereiro, soube que iam fechar as fronteiras no dia seguinte por razões de caráter político, agarrei na meia dúzia de mobílias que tinha, meti-as num camião e mudei-me para a África do Sul, onde acabei por ficar quase 14 anos”.

Entre 1975 e 1988, Manuel Antunes exerceu as atividades clínica e docente em Joanesburgo, passando, nesse período, por sete posições curriculares. Nos últimos três anos na África do Sul, foi cirurgião-chefe e professor de cirurgia cardiotorácica no Hospital de Joanesburgo e na Universidade de Witwatersrand, instituição na qual fez o seu doutoramento. 


Quando me convidaram para vir para Coimbra foi porque a direção do hospital tinha decidido suspender a cirurgia cardíaca.

Em 1985, quando o Hospital da Universidade de Coimbra (HUC) em Celas estava a ser construído, o regresso a Portugal começou a ganhar forma, quando o seu nome foi indicado a Norberto Canha, à data diretor do hospital e antigo professor de Manuel Antunes, para implementar, de modo mais eficiente, a cirurgia cardíaca em Coimbra, algo que já andava a ser feito, mas com pouco êxito. 

Em 1988, Manuel Antunes muda-se para Portugal e funda o Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do CHUC, dirigindo esta estrutura por mais de 30 anos, até à sua jubilação. Nessa altura, deu também início à carreira docente na FMUC, fazendo as suas Provas de Agregação no mesmo ano e o concurso para Professor Catedrático em 1989.

“Quando me convidaram para vir para Coimbra foi porque a direção do hospital tinha decidido suspender a cirurgia cardíaca, uma vez que, em nove anos, tinham sido feitas apenas 183 cirurgias, com resultados bastante pobres. No meu primeiro ano no serviço, fizemos 450 cirurgias”, explica, “por isso, perdoe-me a imodéstia, mas penso que o meu impacto na cirurgia cardíaca, pelo menos nesses anos iniciais, foi significativo, e que, nesse sentido, a minha vinda para cá marcou uma diferença e um grande salto qualitativo”.









Hoje, Manuel Antunes continua a visitar o serviço que fundou no CHUC. “Ainda ontem lá estive a falar com o atual diretor do serviço e com outras pessoas… Está lá muita gente com quem trabalhei e com quem tenho relações próximas, gente de quem gosto e que penso que também gosta de mim. Eu, pelo menos, sinto que gostam”, refere.

Com uma extensa e inquestionável atividade científica (cerca de 500 trabalhos publicados), académica e clínica, do currículo de Manuel Antunes faz ainda parte uma considerável lista de distinções atribuídas ao longo dos anos. A Medalha de Mérito da Emigração (1984), a Comenda da Ordem do Infante (1989), a Grã-Cruz da Ordem de Cristo (1993) e a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública (2018), atribuídas pelo Governo português, ou as Medalhas de Ouro de Serviços Distintos do Ministério da Saúde (2013) e da FMUC (2018) são apenas alguns exemplos.

Sobre a importância e o valor que atribui a estas distinções e a este tipo de reconhecimento público, Manuel Antunes começa por constatar que não se considera uma pessoa nem demasiado modesta, nem demasiado orgulhosa. “Mas não há ninguém que seja indiferente a este tipo de distinção, e se lhe disser que o é, estará certamente a mentir”, garante. “Eu sinto orgulho no meu percurso: quando chegamos ao fim da vida e sentimos que tivemos um impacto positivo e melhorámos alguma coisa, devemos sentir-nos satisfeitos”, declara.








Ainda assim, ressalva que nunca fez nada sozinho. “Quando opero um doente, tenho várias pessoas na sala e todas elas são necessárias”, constata. “Posso ter tido responsabilidades acrescidas ou diferentes, porque geri um serviço que tinha 120 pessoas, mas sei que o meu trabalho foi feito não apenas com o meu esforço, mas também com o esforço de muitas outras pessoas que me ajudaram, caso contrário, não teria conseguido fazer o que fiz. Apesar de eu ter a fama de ser um tipo muito exigente e ‘militarista’, o facto é que, na nossa reunião de serviço, todos tinham a oportunidade de falar; o que acontece é que o diretor tem de saber tomar decisões”, observa. “E eu sou democrata: ouço o que as pessoas dizem, mas depois faço o que entendo!”, brinca.

Quando se aposentou do serviço público, disse que esperava dedicar mais tempo à mulher, aos três filhos e aos quatro netos, aos quais veio juntar-se uma quinta neta, agora com cerca de dois anos e meio. No entanto, e tal como já foi referido anteriormente, Manuel Antunes começou a exercer a sua atividade clínica no setor privado pouco depois da jubilação, em boa parte por insistência de muitos dos seus doentes.

Desde novembro de 2020, é também o presidente da Cáritas Diocesana de Coimbra. “O Bispo de Coimbra conhece-me bem, pelas atividades que eu desempenhava na Paróquia de S. José, e achou que fazia sentido a Cáritas ter uma direção composta por leigos. Por esse motivo, convidou-me para a presidir”, indica. “Confesso que não tinha a noção da magnitude da função que estou a desempenhar na Cáritas, na qual sou responsável por cerca de mil pessoas. Entretanto, já passou um ano… ainda tenho mais três anos de mandato pela frente, nos quais precisamos de organizar muitas coisas e de fazer algumas alterações gerais dentro da instituição, que é muito grande”, constata.

Manuel Antunes é ainda Professor Convidado e presidente da Associação de Antigos Estudantes da FMUC e também, desde 2013, da Cadeia da Esperança, uma Organização Não-Governamental que é membro da Chaîne de l’Espoir/Chain of Hope Europe e que tem participado em diversas missões cirúrgicas ao Instituto do Coração de Maputo ao longo dos últimos 20 anos e, nos últimos três anos, à Jordânia, para tratar de bebés dos campos de refugiados sírios. “Neste momento, estamos a começar a preparar, com entusiasmo, mais uma missão, para a qual vai um grupo mais pequeno do que o habitual, de cerca de cinco pessoas, e que deverá acontecer em janeiro ou fevereiro de 2022”, avança.

Por isso, reconhece que, embora hoje consiga estar um pouco mais disponível para a família, ao longo da sua vida optou por não se dedicar a mais nenhuma outra atividade lúdica para além de tomar conta das roseiras que tem no seu quintal. “Isso seria roubar ainda mais o espaço da família… Eu trabalhava, em média, 75 a 80 horas por semana. E, nesse sentido, não tenho qualquer dúvida de que a família sofreu com a minha ausência”, confessa, “ou então foi beneficiada, que eu sou um tipo difícil!”, graceja.

“Evidentemente que, nesta altura do campeonato, eu deveria estar mais com a família, mas olhe, havia esta necessidade, por exemplo, na Cáritas, e eu sempre quis poder ser útil a alguém ou a alguma causa, e não ficar em casa a descansar no sofá, porque acho que isso tira algum significado à vida”, menciona.

Assim, se antes trabalhava cerca de 12 horas por dia de segunda a sexta-feira – e mais algumas horas no sábado e no domingo –, hoje consegue trabalhar cerca de 10 horas, e apenas nos dias úteis. “Normalmente, os fins-de-semana agora são quietinhos”, assegura.

Ao avaliar o seu percurso de vida, Manuel Antunes garante que a sensação é a de realização, mas prevê que, nos próximos cinco anos, a sua atividade continue a ser ainda algo intensa. Depois, logo se verá, já que diz ser uma pessoa realista e não demasiado ambiciosa. Por esse motivo, diz não ter projetos novos, e espera apenas conseguir continuar a operar doentes até aos seus 80 anos de idade.

“Se, depois dos meus 80 anos, ainda tiver capacidade física e mental, então sou capaz de fazer mais um cruzeiro com a minha mulher”, observa, “mas, por agora, terminarei aquilo que tiver em mãos e, a partir daí, a vida que Deus me der será para aproveitar, para relaxar e para me concentrar na família, na minha mulher, nos meus filhos, nos meus netos e, se possível, conhecer ainda um bisneto ou dois!”.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Manuel Antunes