Outras
vozes

Ana Luísa Delgado;
Inês Sério (Ilustração)

VOICEmed #3

Domínios de mim própria


Eu não sou feliz. Eu estou aqui, diante de vocês. E eu não sou feliz. Eu tenho tudo... Tenho uma casa, boa comida, uma cozinha cor de rosa. Os meus pais pagam-me tudo. Os meus pais são exemplares. Estou num curso que me entusiasma minimamente, tenho amigos, alguma ansiedade leve social, mas nada relevante; vou pondo flores pelas paredes. Gosto de vê-las secar com o tempo, de vê-las perder a vida aos poucos, e ao meu lado. E sabem que eu leio... e leio. E cada vez me apercebo melhor que eu não percebo nada. Sempre pensei que toda gente soubesse alguma coisa que me escapa. Sempre pensei que simplesmente eu não atingisse o mundo que toca a minha pele. As minhas palavras não têm o significado que tem uma casa. Quase como se a minha existência fosse exclusão de mim própria. Cansei-me das perguntas. Canso-me das contínuas respostas que apenas fornecem o vómito que forço ao autoafirmar-me. Não há respostas, nunca há um centro. Não há palavras inteiras para aqueles que se apaixonam. Mas atenção, eu não disse que era triste. Veem? As palavras são, tantas vezes, uma exclusão umas das outras. E eu não sou feliz. Pergunto-me se é costume estar-se assim, não feliz. Vocês também o sentem? A insuficiência. Acredito numa casa, algures, onde repouso e beijo. Cansar o tempo é uma distração interessante. Há uma casa onde me encontro e engravido a consciência de mim própria. Não será tudo irrelevante? Ao fim do dia, não deveria ser tudo irrelevante. Pergunto-me. Não será suficiente a partilha do olhar... de dois olhos, uma boca, uma consciência semelhante. Não será? Não será a insuficiência de todos o que nos torna inteiros. Existimos neste conjunto misterioso. Não será suficiente, um dia, os meus restos encontrarem os teus restos, os vossos restos, ocultos pela superfície da esfera. Tudo o que acontece, acontece no domínio do possível. Nós podemos imaginar o impossível mas o impossível não acontece, o que acontece é a imaginação. A realidade é a probabilidade na possibilidade.

FMUC
Cansar o tempo.
E vaguear por entre a multidão com um desejo. 
FMUC
Ana Luísa Martins Delgado nasceu em 1997 na cidade de Coimbra, passando a maior parte da sua infância e adolescência na cidade de Viseu, onde viria a crescer. A passagem pelo Conservatório Regional de Música de Viseu fá-la render-se ao mundo das artes e cultura.

A paixão pela leitura veio mais tardia, ainda nos tempos de Liceu. Recorda os momentos em que permanecia na sala de aula a discutir assuntos e ânsias quotidianas com a professora de Filosofia, que partilhou consigo certos títulos e volumes de literatura, fazendo com que, aos poucos, começasse a ler avidamente.

Frequenta, de momento, o segundo ano de Medicina na FMUC, tendo um sublime interesse pelas especialidades ligadas à Saúde Mental.