Do curso 
de ...

Henrique Vilaça Ramos

Um homem de fé e de riso pronto

VOICEmed #3
Foi diretor do serviço de Imagiologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, entre 1975 e 1998, e docente de Radiologia na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, na qual se tornou professor catedrático em 1982. Despida a bata branca, que ainda hoje vai usando, Henrique Vilaça Ramos pensa ser “um marido, um pai e um avô, pouco mais. Sou um marido feliz, com um casamento feliz, sou pai de três filhos, graças a Deus, e nove netos”, o mais velho com 22 e a mais nova com sete. Há um traço constante ao longo de toda a entrevista: a boa disposição, a forma como pauta muitos raciocínios com uma gargalhada contagiante.

Sou um homem de fé, graças a Deus,
alguma, pouca se calhar [risos]

Nasceu a 28 de fevereiro de 1934. À beira de completar 84 anos, recorda o início de vida. Veio ao mundo na Travessa Moura e Sá, uma pequena transversal que liga a António José de Almeida à Nicolau Chanterene. “A casa já não está como era quando eu nasci porque acrescentaram um piso”. Foi batizado em Santo António dos Olivais – “costumo dizer que nasci de dois úteros, embora a frase não seja da minha autoria: o da minha mãe, e, para a fé, na pia batismal”. A fé está, aliás, presente ao longo da hora e meia de conversa, marcando também o seu final. “Sou um homem de fé, graças a Deus, alguma, pouca, se calhar [risos]. É um arrimo e uma segurança muito grande, saber que tenho uma pessoa que me segura por fora”, confessa Henrique Vilaça Ramos.

Os estudos pré-universitários foram divididos entre Coimbra e Lisboa, onde ingressou no Colégio Militar por opção paterna. Filho de pai que viria a ser coronel, essa passagem marcou-o pela “disciplina que se obtém, a camaradagem. São elementos importantes que serviram para a minha formação, inegavelmente. Se eu queria ser militar? Não queria [risos]”. Regressa a Coimbra para fazer o sétimo ano do liceu e entrar em Medicina. Em Henrique, ao contrário de outros casos, a influência é exterior à família. Para além do pai no exército, relembra as origens humildes. “O meu avô paterno era lavrador, o meu avô materno era lavrador e, portanto, a minha fidalguia é uma enxada, de um lado e de outro”. O querer veio então de um médico amigo do pai, Luís Raposo. “Para mim, aquele homem sempre foi o arquétipo da Medicina, o modelo do médico”. Relembra o enorme respeito que a sua figura granjeava, a dois níveis – pelo outro, que se refletia no empenho que os alunos demonstravam nas suas aulas e na preparação para os seus exames, e na disponibilidade para o doente, “tinha um calor humano que se vertia no ato médico”.

FMUC

Dos anos de faculdade evoca o seu grupo de amigos, “o Linhares Furtado, o Adelino Marques, o Evaristo Fonseca e o Amorim Rosa de Figueiredo”. É sobre Linhares Furtado que conta um episódio curioso. “Quando chegou a Coimbra, vindo dos Açores, ninguém o conhecia. Era um indivíduo alto, espadaúdo, que fazia desporto. E a fazer desporto ele salientava-se no meio dos outros, era um excelente atleta. Quando chegámos aos primeiros exames, com enorme surpresa, na cadeira de Histologia, salvo erro, aparece um indivíduo classificado com 17, que era uma nota que o professor já não dava há anos. «Mas quem é, quem foi?», perguntavam-se. «O Alexandre. O Alexandre?!» O Alexandre, que era o atleta”. Henrique Vilaça Ramos caracteriza-o ainda como um colega excelente, muito aberto e dado. Para a memória de um curso que diz muito pautado pela amizade, fica a récita final e a viagem de curso que fizeram por países como França, Suíça e Itália, entre outros.


As condições do antigo Hospital eram piores que a maior parte das condições dos hospitais distritais,
e estávamos num hospital universitário, num hospital central 

No último ano da faculdade surge o convite que lhe moldaria a carreira profissional. “Os professores, quando precisam de arranjar pessoas para trabalhar com eles, olham para quem está a sair da fornada. Havia um, o professor Bruno da Costa, docente de Propedêutica Médica, que estava a precisar de gente e me contactou. Disse-me «Olhe, tenho aqui dois lugares. Você, se estiver interessado, escolha». Quais eram os dois lugares? Assistente dele na Propedêutica Médica, ou ir para a Radiologia, onde não existia ninguém”. Para Henrique Vilaça Ramos, o apelo foi óbvio. “Era uma situação interessante, a de pegar numa área que não estava trabalhada aqui e tentar fazer alguma coisa nova cá na casa”. Encontrou uma área com serviços distintos, da faculdade e do hospital, e em circunstâncias que, mesmo anos mais tarde, eram más. “As condições do antigo Hospital eram piores que a maior parte das condições dos hospitais distritais, e estávamos num hospital universitário, num hospital central”. A necessidade de e o querer aprender mais levaram-no primeiro a Lisboa e depois novamente a Itália, desta vez para um período mais longo do que a viagem de curso, para preparar o doutoramento em Roma.

Do tempo passado na capital portuguesa, Henrique Vilaça Ramos realça duas pessoas, os professores Aleu Saldanha e Aires de Sousa: “completavam-se muito bem no aspeto da formação que me podiam dar”, o primeiro mais clínico e o segundo mais ligado à investigação. Mas Henrique faz questão de sublinhar o perfil pessoal e profissional de Aleu Saldanha: “foi um grande amigo meu, que fez uma coisa que não sei se outro professor teria feito, porque passado um mês ou dois de estar no seu serviço, disse-me «se você quiser aprender um pouco mais de Radiologia comigo, venha para o meu consultório nas tardes que tiver livres». Passei a frequentar o consultório dele as tardes todas, ele a relatar e eu de pé, atrás dele, a ver o que era dito das radiografias”.

O ministro acabou por me dar a autorização na manhã do dia em que devia sair à tarde,
de Lisboa para a Guiné. Já tinha as malas no barco 

De Lisboa, com uma preparação que considera de topo, voou para a capital italiana para “um serviço verdadeiramente modelar naquela altura, há 50 anos. O Serviço de Radiologia da Universidade de Roma era quase um pequeno hospital, tinha internamento, cirurgia, tudo”, condições que, forçosamente, contrastavam com as que havia deixado em Portugal e, em particular, em Coimbra. A cinco meses do final do doutoramento, é mobilizado para ir para África, para a Guiné. Com os resultados de todo o seu trabalho em risco, Henrique vem a Lisboa para tentar desbloquear a situação. “Faço um requerimento ao ministro, a dizer que sabia que o Hospital da Guiné tinha outro radiologista militar e um radiologista civil, e que só havia um equipamento, podendo apenas trabalhar, de cada vez, uma pessoa. À segunda, quarta e sexta trabalhava o radiologista civil, à terça, quinta e sábado trabalhava o radiologista militar. Um segundo radiologista militar não me parecia, digamos, uma grande exigência”. Com a ansiedade a tomar conta do médico, sublinha na missiva que não pretende furtar-se ao serviço militar, apenas adiá-lo pelo breve tempo necessário para poder terminar o que deixou em Roma. “O ministro acabou por me dar a autorização na manhã do dia em que devia sair à tarde, de Lisboa para a Guiné. Já tinha as malas no barco”, conta, enquanto se ri da situação. Volta então a Itália para, depois, seguir quase diretamente para a África Ocidental.
FMUC

Está na Guiné até 1968. Vê de tudo e absorve tudo. A Radiologia tropical era um mundo novo. “Lembro-me de uma vez ter visto uma radiografia de um preto, que tinha uma parasitose que nunca tinha visto em dias da minha vida. Andei entusiasmado à procura da solução e depois descobri que o indivíduo tinha sido infetado por um parasita das serpentes, o que só era possível por ter comido serpente”. Para além do desafio ligado à profissão, Henrique Vilaça Ramos tem ainda a hipótese de montar, de raiz, o Serviço de Radiologia do recém-construído Hospital Militar da Guiné.

O regresso a Portugal faz-se para o Centro de Estudos em Gastroenterologia da FMUC, onde trabalha durante alguns anos com José Gouveia Monteiro. Em 1974 ascende a professor extraordinário e, com as convulsões políticas, há uma mudança na direção dos Hospitais da Universidade de Coimbra. “O serviço de Radiologia do hospital devia ter um diretor de serviço ligado à faculdade. Bateram-me à porta e passei a ser o diretor de serviço”, recorda. Já na década de 1980, a experiência adquirida na Guiné veio a ser útil. Foi Henrique Vilaça Ramos quem ajudou a desenhar e a montar o serviço nos novos Hospitais da Universidade de Coimbra, ainda que com grandes batalhas pelo meio para fazer valer as suas ideias. “Mas, por sorte, e comigo a lutar contra as intenções para a arquitetura, vieram os arquitetos espanhóis do consórcio e, numa apresentação que fizeram, disseram «Este hospital não vai funcionar porque o serviço de Radiologia é muito pequeno». E fez-se um serviço à altura”.









Henrique diz, algumas vezes, que teve a sorte de estar nos momentos certos de várias histórias, umas com minúscula, outras com maiúscula. Como o ter podido acompanhar uma evolução significativa daquela que foi a sua especialidade, umbilicalmente ligada à vertente tecnológica. Para si, “não há Radiologia sem tecnologia. Mas também não há medicina sem a relação médico-doente”. E isso preocupa-o. Preocupa-o a crescente tecnicização da Medicina, que pode redundar numa desumanização da própria prática. “Antigamente, o radiologista era quem fazia as radiografias ao doente. Logo aí havia o contacto. Agora já não é, é um técnico de radiologia que faz esse contacto. Tudo bem que há essa relação entre a Medicina e o doente. Mas o médico está noutra sala, o doente vem fazer a radiografia e sai. Ainda se conversa com alguns, mas com a enorme maioria não, e isso é mau. Como ultrapassar isso quando é preciso fazer sessenta, setenta exames por dia? Nem os doentes estão para nos aturar, por assim dizer”.


Não há Radiologia sem tecnologia.
Mas também não há medicina sem a relação médico-doente. 

À apreensão com a tecnicização junta uma inquietude, que o desmembrar da relação entre médico e paciente se agrave com as novas gerações. “O acesso a Medicina passa, neste momento, por algo que é muito importante, mas que também é muito insuficiente: saber os conhecimentos que aquela pessoa tem, a sua capacidade cognitiva e, em particular, o que é que sabe em áreas que têm interesse para a Medicina. Conhecimento, conhecimento, conhecimento”. Não se coíbe, do posto que a experiência lhe confere, de apontar alternativas. “Tem havido experiências muito variadas, como a entrevista, que serve para, logo à cabeça, saber que certas pessoas não deviam ir para Medicina, não têm perfil”.

A sua preocupação é genuína, tem razão de ser. Quando lhe pergunto que episódio é que mais o marcou enquanto médico, remete-se ao silêncio por alguns momentos. “Quando escolhi Radiologia e não Medicina Interna, foi também por pensar que a tal relação médico-doente com os pacientes em enorme sofrimento iria exigir de mim tanto que podia baquear. Tive receio de não ter estofo para aguentar a exigência que confronta o médico perante os maiores dramas. Na Radiologia esse problema era muito mitigado. Mas houve coisas que me marcaram muito”. Novo silêncio. “No começo da minha vida na especialidade, Radiologia e Radioterapia eram uma só. Quando fui para Itália, disse que queria aprender Radioterapia a sério porque amanhã, se tudo correr bem, vou ser professor de Radiologia na universidade e mal parece que o docente não saiba Radioterapia. Foi extremamente doloroso fazer radioterapia a crianças. Olhava para aquelas crianças, da idade dos meus filhos, e foi muito duro. Violenta a inteligência uma criança não sobreviver aos seus pais. O sofrimento é uma coisa que violenta a inteligência”.

A conversa aproxima-se do fim. Henrique Vilaça Ramos fala ainda dos seus interesses. É um leitor compulsivo, sempre três ou quatro livros ao mesmo tempo. E a Bioética, que o acompanha desde cedo. “Nos últimos anos, tenho desenvolvido esse interesse, que me tem levado a escrever sobre o assunto, a colaborar em cursos de Mestrado na Universidade Católica, já estive em júris de Doutoramento sobre Bioética... Se Ele me der vida e saúde, talvez um dia junte os textos todos para deixar ficar uma coletânea, embora não saiba se o que lá está vale a pena”. E voltamos ao início, à questão da fé.
FMUC

Obrigou-me a dizer coisas que nunca pensava querer dizer 

“As dúvidas que a inteligência nos suscita são mais que muitas. Porque a fé não está no plano da inteligência, está num outro plano completamente diferente. Não está contra a inteligência, mas está com a inteligência. Como dizia alguém, a fé é algo que dá um segundo sentido às coisas que têm sentido e que dá sentido àquelas que ainda não têm. Se eu tivesse de acreditar só em Deus, um deus, possivelmente não acreditaria”. Até porque, para Henrique Vilaça Ramos, a sua fé não está num deus qualquer, mas sim em Jesus Cristo. “A minha fé é na pessoa concreta, que passou na Terra a fazer o que Ele fez e que morreu por mim e me ama. E isso, para mim, é garantido. Apesar de todos os meus podres, estou salvo”. Faz uma pausa prolongada. Olha para mim. “Obrigou-me a dizer coisas que nunca pensava querer dizer”. 

por Paulo Sérgio Santos
Fotografias gentilmente cedidas por Henrique Vilaça Ramos