Um homem de fé e de riso pronto
Nasceu a 28 de fevereiro de 1934. À beira de completar 84 anos, recorda o início de vida. Veio ao mundo na Travessa Moura e Sá, uma pequena transversal que liga a António José de Almeida à Nicolau Chanterene. “A casa já não está como era quando eu nasci porque acrescentaram um piso”. Foi batizado em Santo António dos Olivais – “costumo dizer que nasci de dois úteros, embora a frase não seja da minha autoria: o da minha mãe, e, para a fé, na pia batismal”. A fé está, aliás, presente ao longo da hora e meia de conversa, marcando também o seu final. “Sou um homem de fé, graças a Deus, alguma, pouca, se calhar [risos]. É um arrimo e uma segurança muito grande, saber que tenho uma pessoa que me segura por fora”, confessa Henrique Vilaça Ramos.
Os estudos pré-universitários foram divididos entre Coimbra e Lisboa, onde ingressou no Colégio Militar por opção paterna. Filho de pai que viria a ser coronel, essa passagem marcou-o pela “disciplina que se obtém, a camaradagem. São elementos importantes que serviram para a minha formação, inegavelmente. Se eu queria ser militar? Não queria [risos]”. Regressa a Coimbra para fazer o sétimo ano do liceu e entrar em Medicina. Em Henrique, ao contrário de outros casos, a influência é exterior à família. Para além do pai no exército, relembra as origens humildes. “O meu avô paterno era lavrador, o meu avô materno era lavrador e, portanto, a minha fidalguia é uma enxada, de um lado e de outro”. O querer veio então de um médico amigo do pai, Luís Raposo. “Para mim, aquele homem sempre foi o arquétipo da Medicina, o modelo do médico”. Relembra o enorme respeito que a sua figura granjeava, a dois níveis – pelo outro, que se refletia no empenho que os alunos demonstravam nas suas aulas e na preparação para os seus exames, e na disponibilidade para o doente, “tinha um calor humano que se vertia no ato médico”.
Dos anos de faculdade evoca o seu grupo de amigos, “o Linhares Furtado, o Adelino Marques, o Evaristo Fonseca e o Amorim Rosa de Figueiredo”. É sobre Linhares Furtado que conta um episódio curioso. “Quando chegou a Coimbra, vindo dos Açores, ninguém o conhecia. Era um indivíduo alto, espadaúdo, que fazia desporto. E a fazer desporto ele salientava-se no meio dos outros, era um excelente atleta. Quando chegámos aos primeiros exames, com enorme surpresa, na cadeira de Histologia, salvo erro, aparece um indivíduo classificado com 17, que era uma nota que o professor já não dava há anos. «Mas quem é, quem foi?», perguntavam-se. «O Alexandre. O Alexandre?!» O Alexandre, que era o atleta”. Henrique Vilaça Ramos caracteriza-o ainda como um colega excelente, muito aberto e dado. Para a memória de um curso que diz muito pautado pela amizade, fica a récita final e a viagem de curso que fizeram por países como França, Suíça e Itália, entre outros.
Está na Guiné até 1968. Vê de tudo e absorve tudo. A Radiologia tropical era um mundo novo. “Lembro-me de uma vez ter visto uma radiografia de um preto, que tinha uma parasitose que nunca tinha visto em dias da minha vida. Andei entusiasmado à procura da solução e depois descobri que o indivíduo tinha sido infetado por um parasita das serpentes, o que só era possível por ter comido serpente”. Para além do desafio ligado à profissão, Henrique Vilaça Ramos tem ainda a hipótese de montar, de raiz, o Serviço de Radiologia do recém-construído Hospital Militar da Guiné.
O regresso a Portugal faz-se para o Centro de Estudos em Gastroenterologia da FMUC, onde trabalha durante alguns anos com José Gouveia Monteiro. Em 1974 ascende a professor extraordinário e, com as convulsões políticas, há uma mudança na direção dos Hospitais da Universidade de Coimbra. “O serviço de Radiologia do hospital devia ter um diretor de serviço ligado à faculdade. Bateram-me à porta e passei a ser o diretor de serviço”, recorda. Já na década de 1980, a experiência adquirida na Guiné veio a ser útil. Foi Henrique Vilaça Ramos quem ajudou a desenhar e a montar o serviço nos novos Hospitais da Universidade de Coimbra, ainda que com grandes batalhas pelo meio para fazer valer as suas ideias. “Mas, por sorte, e comigo a lutar contra as intenções para a arquitetura, vieram os arquitetos espanhóis do consórcio e, numa apresentação que fizeram, disseram «Este hospital não vai funcionar porque o serviço de Radiologia é muito pequeno». E fez-se um serviço à altura”.
Henrique diz, algumas vezes, que teve a sorte de estar nos momentos certos de várias histórias, umas com minúscula, outras com maiúscula. Como o ter podido acompanhar uma evolução significativa daquela que foi a sua especialidade, umbilicalmente ligada à vertente tecnológica. Para si, “não há Radiologia sem tecnologia. Mas também não há medicina sem a relação médico-doente”. E isso preocupa-o. Preocupa-o a crescente tecnicização da Medicina, que pode redundar numa desumanização da própria prática. “Antigamente, o radiologista era quem fazia as radiografias ao doente. Logo aí havia o contacto. Agora já não é, é um técnico de radiologia que faz esse contacto. Tudo bem que há essa relação entre a Medicina e o doente. Mas o médico está noutra sala, o doente vem fazer a radiografia e sai. Ainda se conversa com alguns, mas com a enorme maioria não, e isso é mau. Como ultrapassar isso quando é preciso fazer sessenta, setenta exames por dia? Nem os doentes estão para nos aturar, por assim dizer”.
“As dúvidas que a inteligência nos suscita são mais que muitas. Porque a fé não está no plano da inteligência, está num outro plano completamente diferente. Não está contra a inteligência, mas está com a inteligência. Como dizia alguém, a fé é algo que dá um segundo sentido às coisas que têm sentido e que dá sentido àquelas que ainda não têm. Se eu tivesse de acreditar só em Deus, um deus, possivelmente não acreditaria”. Até porque, para Henrique Vilaça Ramos, a sua fé não está num deus qualquer, mas sim em Jesus Cristo. “A minha fé é na pessoa concreta, que passou na Terra a fazer o que Ele fez e que morreu por mim e me ama. E isso, para mim, é garantido. Apesar de todos os meus podres, estou salvo”. Faz uma pausa prolongada. Olha para mim. “Obrigou-me a dizer coisas que nunca pensava querer dizer”.