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João Pedroso de Lima 

O principal objetivo do Projeto H2 – Humanizar o Hospital, lançado no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) em 2018, foi o de tornar o Hospital mais humano, ou seja, mais centrado nas Pessoas: nas pessoas doentes e naquelas que cuidam das pessoas doentes. Recentemente aposentado e com uma vasta carreira como especialista em Medicina Nuclear no CHUC e como professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), João Pedroso de Lima mostra-se satisfeito com os resultados alcançados por este projeto nos seus quase três anos de duração, apesar das condicionantes introduzidas pela pandemia, mas reforça que, no que diz respeito à humanização hospitalar, ainda há um longo caminho a percorrer.


Em que consiste o Projeto H2 – Humanizar o Hospital? Como surgiu esta ideia?
Este projeto começou com uma ideia que apresentei um dia ao Professor Fernando Regateiro [à época, presidente do Conselho de Administração (CA) do CHUC] e em que lhe disse: “tenho uma ideia que poderá ser útil para o nosso Hospital; trata-se de um projeto que tem em conta as dificuldades que se vão sentindo no âmbito da humanização dos cuidados de saúde”. 

A ideia era exatamente esta: desenvolver um projeto destinado a sensibilizar o universo hospitalar para a necessidade de se prestar mais atenção às pessoas doentes e às pessoas que cuidam das pessoas doentes. Um projeto baseado na valorização do respeito, da cortesia, da empatia e da compaixão. O Professor Regateiro concordou com a ideia e, na sequência desta sua opinião preliminar, elaborei um plano de ação que foi apresentado ao CA que, por sua vez, o aprovou a 25 de setembro de 2018. Esta ideia ficou assim materializada no que ficou a ser conhecido como o Projeto H2- Humanizar o Hospital

Sempre fui sensível a assuntos relacionados com a ética e a humanização no âmbito dos cuidados hospitalares. Presidi durante mais de uma dezena de anos às Comissões de Ética quer do CHUC, quer da FMUC. Paralelamente, frequentei um Curso, de excelente qualidade, que muitos médicos, administradores e outros profissionais dos hospitais portugueses também já frequentaram, o PADIS [Programa de Alta Direção de Instituições de Saúde], em que existe um enfoque muito grande na humanização dos cuidados em instituições de saúde. No PADIS são apresentados os bons exemplos da Clínica Universitária de Navarra, em Espanha, e da Cleveland Clinic, nos Estados Unidos da América (EUA). Foi inspirado nestes exemplos que pensei que também seria possível fazer alguma coisa do género no CHUC, ou seja, desenvolver um projeto focado não apenas nas pessoas doentes, mas também nos profissionais que delas cuidam. 

Na realidade, não pode haver uma adequada atenção para com os doentes sem haver paralelamente uma preocupação com os profissionais que os tratam, as suas condições de trabalho, a sua satisfação profissional e pessoal... No fundo, o que terá mesmo que existir em qualquer hospital é uma atenção focalizada na pessoa humana, quer seja uma pessoa doente ou um profissional. Uma atenção baseada no respeito, na dignidade, na cortesia, na empatia e na compaixão. Uma atenção que considere não apenas a dimensão biológica, mas todas as dimensões do ser humano: psicológica, social, espiritual... Estes aspetos são muitas vezes esquecidos no nosso dia-a-dia enquanto profissionais de saúde, quer na relação entre nós, quer com os doentes de quem cuidamos. 

E foi com estes pressupostos que o Projeto H2 decorreu no CHUC nos últimos três anos. Infelizmente, o início da pandemia em 2020 obrigou a um reajustamento da estratégia de atuação inicialmente definida. 


Quais eram as linhas de atuação iniciais deste projeto?
O Projeto desenvolveu-se inicialmente segundo quatro linhas de atuação. Uma das linhas consistiu na promoção da cultura de humanização no CHUC, operacionalizada através de várias ações de campo que incluíram múltiplas reuniões com as chefias intermédias do hospital e a apresentação do Projeto H2 em dezenas de Reuniões de Serviço. 

Uma outra linha de atuação, de fundamental importância, foi a da formação em comunicação interpessoal e criação de empatia. Foram realizadas dezenas de ações de formação, não só para médicos, mas também para enfermeiros, técnicos, auxiliares, secretariado clínico, assistentes sociais… Mais de 500 profissionais do CHUC frequentaram estas formações, ao longo de 2019, o ano mais expressivo em termos de atividades desempenhadas no âmbito deste projeto. Para o ano de 2020, tínhamos planeado aumentar o número dessas ações de formação para o dobro, mas, com a pandemia, tudo teve que ser suspenso... 

Uma terceira linha de atuação do Projeto, também muito importante e que acabou por ser, talvez, a de maior visibilidade, foi o combate ao ruído no Hospital. Fizemos múltiplas ações que sensibilizavam para a necessidade de se diminuir o ruído em ambiente hospitalar, uma vez que o ruído prejudica não só a saúde dos doentes, mas também o próprio desempenho dos profissionais de saúde.

Fizemos igualmente inquéritos de satisfação a profissionais, dos quais já obtivemos resultados, apesar de o número de respostas ter sido limitado aos primeiros meses de 2020.

Dado o contexto de pandemia em 2020 e 2021, e no sentido de combater o isolamento dos doentes, privados das visitas dos seus familiares, o Projeto H2 criou no site institucional do CHUC um mecanismo que permitiu às famílias comunicarem, através de mensagens escritas, com os familiares doentes internados e isolados. Consistia no preenchimento de um formulário com uma mensagem de texto, associada a uma fotografia ou a um pequeno vídeo. Esse formulário era adequadamente tratado e encaminhado para as enfermarias onde os doentes se encontravam internados. Além disso, foram também organizadas videochamadas. Cerca de 300 mensagens e videochamadas foram assim efetuadas. Também no contexto de pandemia e no que diz respeito aos profissionais de saúde, foram realizadas diversas ações de mindfulness online.

Para quem estiver interessado em conhecer melhor o Projeto H2, está disponível um e-book (que pode ser consultado aqui), onde se apresentam, de forma mais completa e ilustrada com ligações a YouTube, as diversas atividades desenvolvidas.

Esperávamos poder continuar as linhas de atuação iniciais do Projeto H2 logo que melhorassem as condições sanitárias, mas, entretanto, atingi os 67 anos de idade, bem como a condição de aposentado da função pública, após 46 anos dedicados à Faculdade de Medicina e 42 dedicados ao Hospital. 

Pensava eu que a situação de reformado não seria impeditiva de continuar a dedicar-me a um projeto de humanização no CHUC e informei o CA da minha disponibilidade para assumir a coordenação do Gabinete de Humanização [GH], a título gracioso, desde que fosse essa uma vontade inequivocamente manifestada pelo CA. Infelizmente, a decisão do CA foi num sentido diferente. Lamentavelmente… Mas a vida é assim…


Porquê?
Sinceramente, não compreendo as razões para a decisão assumida pelo CA relativamente a este assunto… Ao tomar conhecimento da decisão do CA de convidar outra pessoa para a Coordenação do GH, depois da manifestação de toda a minha disponibilidade, de todas as sugestões que fiz para ultrapassar sucessivas dificuldades que foram sendo colocadas, informei o Presidente do CA que dava por terminada essa minha disponibilidade, porque ficou bem claro para mim que não existia, por parte do CA, uma verdadeira vontade para a continuação da minha colaboração, nomeadamente como Coordenador do GH. Reconheço que o CA tem toda a legitimidade e autonomia para tomar as decisões que entender, mas penso que, neste caso concreto, o processo não foi gerido da maneira mais correta. 


Falou do Gabinete de Humanização…
Sim. A minha preocupação, e a da Equipa de Coordenação do Projeto H2, aqui há uns dois ou três anos, quando o novo Regulamento do Hospital estava a ser elaborado e foi colocado em discussão pública, foi a de criar, nesse novo Regulamento, uma estrutura que pudesse dar mais corpo à preocupação com a humanização hospitalar. Fiz esta sugestão, por escrito, ao presidente do CA na altura, o Professor Regateiro, sugerindo a criação de um Serviço de Humanização no CHUC, à semelhança do que já se verificava em outros hospitais do País. 

O Professor Regateiro concordou com a criação de um Gabinete de Humanização e pediu-me que fizesse uma proposta de texto para o respetivo Artigo. Aquilo que escrevi, e que foi superiormente aprovado, traduzia exatamente os pressupostos e os objetivos do Projeto H2, pelo que, de alguma forma, me sinto responsável pela criação do Gabinete de Humanização Hospitalar do CHUC. Teria sido agradável sentir algum reconhecimento dessa paternidade, por parte do presente CA… 

Criado o Gabinete de Humanização no CHUC, não faz sentido a sua existência em simultâneo com o Projeto H2, porque ambos têm exatamente as mesmas finalidades. O que, em meu entender, faria sentido, seria a “incorporação” do Projeto H2 no recém-criado Gabinete de Humanização, dando continuidade ao Projeto de uma forma mais formal.

            











Esteve quase três anos à frente deste Projeto. Apesar de todos os constrangimentos e limitações que referiu, que balanço faz da sua implementação e do seu desenvolvimento? Falava há pouco dos inquéritos que foram feitos.
Que resultados tiveram? 
O balanço deste projeto gera em mim sentimentos ambivalentes… Por um lado, fica a certeza de que alguma coisa foi feita, de que se tratou de uma iniciativa sentida como agregadora por parte de muitos profissionais de saúde. Por outro lado, a pandemia veio interromper um conjunto de ações em marcha e obrigou à reorientação das linhas de ação do Projeto.

Os inquéritos de satisfação feitos a cerca de 800 profissionais mostram, sobretudo, uma insatisfação muito grande, não só com aspetos relacionados com os seus níveis de remuneração, mas também com a falta de reconhecimento e de valorização do seu trabalho, por parte das estruturas dirigentes.

No Projeto H2, criámos uma estrutura chamada Assembleia de Colaboradores, formada por mais de 300 pessoas, desde delegados designados pelos diretores de cada serviço, a doentes e outros voluntários independentes, inclusive pessoas de fora do hospital que quiseram associar-se. E, para darmos visibilidade ao Projeto H2, também convidámos várias figuras públicas para a ele se associarem como seus Embaixadores, como foi o caso de José Cid, de André Sardet, de Filipe Albuquerque, de Adriana Calcanhoto e de Luís de Matos, entre muitos outros.

Quando fui diretor clínico dos Hospitais da Universidade de Coimbra [HUC], e em resposta ao desafio lançado por duas colegas do Serviço de Pneumologia, lançámos o projeto HUC sem Tabaco. Foi um projeto transversal ao Hospital, motivador, com muitas pessoas a colaborar. Claro que, como sempre, houve pessoas contra a iniciativa, mas, na altura, conseguimos desenvolver várias ações eficazes. A ideia em si constituiu, por si só, um motivo agregador de vontades e disponibilidades e que juntou muitas pessoas na mesma luta. Foi um projeto com sucesso e com resultados positivos, na altura também auxiliado pela legislação que, entretanto, foi publicada.

Por isso, e tendo em conta a experiência adquirida nesse projeto, sabia que iniciativas como essa são vantajosas para o hospital, porque são fatores de motivação para os profissionais. Tal como no projeto HUC sem Tabaco, a intenção do Projeto H2 era não deixar andar, não contemporizar, mas sim tentar fazer alguma coisa. Por isso, penso que fiz aquilo que tinha de fazer. Tentei dar o exemplo, que foi seguido por muita gente que me apoiou e que esteve comigo na coordenação e desenvolvimento do Projeto.

Em suma, fica uma sensação de satisfação por não ter ficado parado na minha zona de conforto perante um problema, que continua a existir, mas fica também a desilusão de, devido às circunstâncias, não ter sido possível ir mais além. Muitas pessoas me têm manifestado o seu descontentamento e a sua tristeza por este Projeto não ter continuidade.

Enquanto as administrações hospitalares não entenderem que a humanização dos cuidados é tão importante quanto a componente técnica, enquanto esse for o pensamento dominante, os progressos não podem ser muitos…

Mas a preocupação com a humanização dos cuidados não pode ficar só pelo que se passa no hospital, as Faculdades de Medicina têm um papel fundamental a desempenhar neste campo.


O que tem sido feito nas Escolas Médicas do País no âmbito da formação em comunicação médico-doente e humanização dos cuidados de saúde?
A ligação dos aspetos mais técnicos da Medicina às Humanidades é já uma realidade em várias universidades estrangeiras, nomeadamente nos EUA.

Também em Portugal há já Escolas que valorizam a Medicina Narrativa, bem como outras disciplinas no campo das Humanidades, como a Filosofia, a Literatura ou as Artes como sendo importantes complementos para uma adequada formação médica. Os estudantes de medicina, futuros médicos, deverão ser sensibilizados para o facto de o exercício da Medicina não ser um assunto meramente técnico.

É muito importante que o médico saiba valorizar todas as dimensões do ser humano e não apenas a dimensão biológica. Há que dar também importância à dimensão psicológica, à espiritual, à social… os seres humanos são muito mais complexos do que um conjunto de reações químicas…

Essa sensibilização dos estudantes, a ser feita desde o início do curso, ajudá-los-á, mais tarde, como médicos, a valorizarem aspetos como a comunicação interpessoal, a postura, o respeito, a empatia, o tempo de consulta, aspetos absolutamente fundamentais na relação médico-doente. É conhecida a dificuldade de comunicação dos médicos com os seus doentes, nomeadamente na gestão do tempo de consulta: os médicos, em média, interrompem os seus doentes cerca de 18 segundos após o início da consulta médica… não ouvem o que os doentes têm para lhes dizer!



















E que desafios é que o foco na produtividade, bem como o contexto pandémico como aquele em que vivemos, colocam a uma Medicina que se quer humanizada?
Enquanto não houver uma mudança de paradigma e os hospitais continuarem a ter uma gestão centrada na produtividade e não na preocupação com a qualidade e com os resultados em saúde, as coisas tornam-se mais difíceis para a humanização.

A pandemia acabou por mostrar algumas coisas positivas, como a capacidade de superação dos profissionais de saúde, a sua capacidade de entreajuda e de entendimento, dimensões que, muitas vezes, não são tão observadas nos tempos ditos normais. Acho que todos estes laços que nos uniram enquanto profissionais de saúde, durante estes tempos de pandemia, deveriam ser mantidos e estimulados, também fora das situações de crise. É possível darmos constantemente o nosso melhor, mas é também importante que tenhamos os estímulos adequados para o fazer por parte de quem dirige.

Por outro lado, a pandemia veio condicionar imenso as visitas aos doentes e a sua relação com os seus familiares. O isolamento dos doentes foi altamente nefasto para todos. Houve doentes que estiveram completamente isolados das suas famílias durante semanas… Esta impossibilidade de estarmos presencialmente uns com os outros tem consequências… Uma videochamada não é o mesmo do que um encontro presencial…

Claro que estes aspetos negativos foram atenuados pelas novas tecnologias. Se não existissem meios eletrónicos para nos pormos em contacto uns com os outros, ainda teria sido pior. Mas não é o ideal. Aquilo que nós temos de valorizar é o contacto face a face, a postura, a capacidade de comunicar, a atenção, o respeito e a empatia pessoal de uma forma geral.

Está demonstrado que os níveis de empatia e de criação de laços de amizade são muito menos intensos quando o estabelecimento de relações é feito à distância, de forma eletrónica, do que quando é feito cara a cara. Estivemos condicionados a toda esta necessidade de comunicar à distância. A pandemia tem aspetos negativos não só do ponto de vista clínico, mas também no estabelecimento das relações interpessoais.

Todos estamos desejosos de voltar ao tempo em que comunicávamos de modo presencial, sem máscaras faciais e com maior proximidade. Todos desejamos abandonar as máscaras, e deixar de recorrer, de uma forma tão frequente, ao uso das videoconferências. Queremos poder estar novamente em reuniões presenciais, que têm qualidade e eficácia diferentes daquilo que é a comunicação à distância, quer seja numa consulta médica, numa aula ou numa reunião profissional.









No final de maio, nas vésperas da sua aposentação, o Serviço de Medicina Nuclear do CHUC prestou-lhe uma homenagem, com o apoio do CA, da FMUC e do Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde (ICNAS). Que importância têm para si estes momentos de reconhecimento?
Foi uma surpresa muito agradável e fiquei bastante sensibilizado com este gesto. Estive na FMUC, como docente, durante 46 anos, sem interrupção. Iniciei funções como Monitor em 1975, ainda como estudante do 5º ano de Medicina.

No hospital, estive 42 anos, desempenhei várias funções, nomeadamente como Diretor de Serviço, de Departamento (AGI/UGI) e Diretor Clínico. Interagi com muita gente. Procurei sempre relacionar-me com as pessoas de uma forma cordial e correta, e sempre com uma preocupação, a de não me esquecer que os nossos alunos ou companheiros de trabalho veem nos seus dirigentes os modelos a seguir.

Tal como disse nessa homenagem, aquele momento de reconhecimento seria igualmente merecido por muitos outros ali presentes. E é precisamente isso que tem de ser valorizado por quem dirige. Há tanta gente que dá o seu melhor, dia após dia, e que não recebe uma palavra de conforto ou de estímulo. Felizmente, sempre senti esse apoio. Tive sorte, porque sempre me deparei com condições favoráveis quer no Hospital, quer na Faculdade, quer no ICNAS.

Estou grato a estas Instituições que me acolheram. Sem elas, eu não teria tido a possibilidade de me afirmar como pessoa, como académico e como profissional de saúde.

As Instituições devem ser valorizadas enquanto tal. Não podem ser vistas apenas como o local onde se vai receber o ordenado… Temos de vestir a camisola, senti-las e lutar por elas.


E como têm sido estes últimos meses, desde a sua aposentação?
Tranquilos!


Do que é que já sente falta?
Ainda só me reformei há cerca de dois meses, é tudo muito recente, mas não me parece que vá ter grandes problemas quanto a isso no futuro.

Vou continuar com alguma ligação às mesmas causas de sempre: Medicina Nuclear, Ética e Humanização... vou estando razoavelmente ocupado, mas quero ser dono do meu tempo. Não quero estar preso a obrigações com horários ou tarefas. Estou mesmo tranquilo…

E há muito mais para fazer na vida. Tenho quatro netos para ver crescer… E uma grande vontade de aprender coisas diferentes.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por João Pedroso de Lima


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