Foi nos últimos anos do curso de Medicina que se apaixonou pela Cardiologia, “talvez por, na altura, ingenuamente não saber destrinçar o coração afetivo do fisiológico”. Todavia, José Manuel Romãozinho acabou por seguir outra especialidade, “então emergente e, como é de todos conhecido, despida de qualquer apelo romântico”: a Gastrenterologia, no âmbito da qual desenvolveu um notável currículo, indicativo da sua dedicação extrema a esta especialidade.
Nascido a 28 de julho de 1948, “no apogeu do signo Leão”, o que, como refere em tom de brincadeira, poderá explicar a sua “devotada opção clubística pelo Sporting Clube de Portugal”, José Manuel Romãozinho fez a instrução primária na freguesia de Cebolais de Cima, onde nasceu, e o ensino secundário na cidade de Castelo Branco.
“Nas férias escolares, mudava de ambiente: atravessava o rio Tejo e ia para a aldeia norte-alentejana de Montalvão, onde os meus avós maternos possuíam um bem provido assento de lavoura”, conta. As memórias da infância – e das férias em Montalvão, particularmente – são muito boas, ou não fosse José Manuel Romãozinho o centro das atenções. “Era o único neto, de maneira que os meus avós me faziam as vontadinhas todas! E aquele ambiente rural era muito agradável para mim”, recorda, “de tal forma que, desde os meus 30 e poucos anos, mantenho a atividade agrícola, gerindo o património que herdei dos meus avós, embora não me considere proprietário, mas tão-somente usufrutuário”, faz saber.
Concluído o ensino secundário, José Manuel Romãozinho ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), desde sempre a sua “primeira e incontestada opção”, dado que sempre quis ser médico. “Desde que me conheço, sempre projetei como futuro profissional, na esteira de vários ascendentes paternos e maternos, o exercício liberal da medicina, desígnio que só após a aposentação pude cumprir em toda a sua plenitude, depois de 41 anos de funcionário público em dose dupla, na dependência simultânea dos Ministérios da Educação e da Saúde”, constata.
A frequência da FMUC coincidiu temporalmente com a crise académica de 1969, na qual esteve envolvido enquanto subdelegado de curso do 4º ano médico: “o que me acarretou não só a perda do ano, por ter aderido à greve aos exames democraticamente aprovada pela academia, mas também o espectro, a que miraculosamente escapei, da incorporação compulsiva no serviço militar e subsequente mobilização para a guerra colonial”, observa.
A 15 de novembro de 1973, José Manuel Romãozinho concluiu a licenciatura em Medicina e, certamente pelo facto de ter isso o aluno melhor classificado do seu curso, tomou posse, no início do ano de 1974, como Assistente Eventual de Propedêutica Médica da FMUC, “para o qual tinha sido convidado e proposto pelo Professor Gouveia Monteiro, na altura titular daquela cadeira, ao mesmo tempo que iniciava o tirocínio da especialidade de Gastrenterologia pela Ordem dos Médicos”.
Com a remodelação operada no final de 1974 nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), que compreendeu, designadamente, a criação de um Serviço de Gastrenterologia, foi nos HUC que José Manuel Romãozinho passou a exercer a sua atividade profissional, sob a direção de Gouveia Monteiro.
No ano seguinte, em julho de 1975, “uma vez reintegrado na Carreira Médica Hospitalar, encetei, com cinco colegas de curso, a prestação do Serviço Médico de Apoio à Periferia no concelho de Santa Comba Dão”, refere. As dificuldades com que José Manuel Romãozinho e a equipa que integrou se depararam inicialmente “foram múltiplas”, mas “com a inestimável colaboração de alguns dos médicos residentes, logrou-se, com o entusiasmo e o voluntarismo próprios da juventude, converter um hospital transformado em asilo para a terceira idade, onde vários doentes guardavam inclusive, debaixo das suas camas, garrafões de vinho, numa unidade assistencial válida”, com um serviço de urgência permanente, incluindo aos sábados e domingos.
“Foi justamente na madrugada de um domingo outonal, aquando de uma escala médica solitária no serviço de urgência, que fui involuntário protagonista de um marcante episódio determinado por um parto assaz demorado e complicado, de que resultou um nascituro em morte aparente”, conta. José Manuel Romãozinho solicitou, de imediato, o aparelho de reanimação perinatal, tendo sido informado de que o mesmo se encontrava inoperacional por falta de energia elétrica, cuja rede municipal era semanalmente objeto de trabalhos de manutenção, precisamente durante as primeiras horas de domingo. “Veio-me, então, à memória, um excerto do livro As Chaves do Reino, de A. J. Cronin, no qual é relatada uma bem-sucedida ressuscitação de um recém-nascido mediante imersão alternada do mesmo em água fria e tépida. Reproduzida a manobra, fui igual e afortunadamente brindado com um sonoro e salvífico choro!”, refere. No final da prestação no âmbito do Serviço Médico de Apoio à Periferia, que durou cerca de dez meses, “a nossa ação foi tão bem-sucedida que até houve uma sessão solene nos Paços do Concelho em louvor do trabalho que desenvolvemos”, destaca.
Regressado a Coimbra, José Manuel Romãozinho prosseguiu as suas funções no Serviço de Gastrenterologia dos HUC, primeiramente como Interno da Especialidade e, após realização das respetivas provas públicas de titulação e provimento, na qualidade de Assistente Hospitalar (1979) e, anos após, de Chefe de Serviço (1989). Paralelamente, obteve, igualmente através da realização de provas públicas, o título de Especialista em Gastrenterologia pela Ordem dos Médicos (1980), e, por consenso, a subespecialidade de Hepatologia (2005).
Em 1991, concluiu o doutoramento na FMUC, subordinado à temática da relação da gastrite crónica com o cancro do estômago. “Ainda a poeira do meu doutoramento não tinha assentado quando fui súbita e inesperadamente convocado para a causa do intensivismo digestivo, ao qual dediquei, após um estágio em Marselha, no serviço do Professor André Gauthier, os últimos 21 anos da minha atividade pública hospitalar”, indica.
José Manuel Romãozinho refere que a sua trajetória académica e profissional, “para além de refletir os ventos de mudança provenientes de vários quadrantes que nas últimas cinco décadas e meia assolaram o nosso país, teve obrigatoriamente como mentor o Professor Gouveia Monteiro, cuja memória muito justa e merecidamente” evoca, emocionado. “Quando falo dele comovo-me, sabe? Foi muito importante para mim”, confessa. Com efeito, primeiro com a criação do Centro de Gastrenterologia da Universidade de Coimbra, e anos depois com a fundação do Serviço de Gastrenterologia dos HUC, Gouveia Monteiro “modelou, com o seu espírito cartesiano e visionário, uma estrutura integrada modelar, a qual produziu úberes frutos”, salienta.
“De facto, deve-se ao Professor Gouveia Monteiro a formação da escola de gastrenterologia de Coimbra, primordialmente alicerçada nas diversas competências e responsabilidades atribuídas aos seus discípulos mais diretos, a qual constituiu, desde a sua origem, uma referência incontornável da especialidade a nível nacional e não só”, acrescenta.
Coube a José Manuel Romãozinho a tarefa da criação e desenvolvimento da Unidade de Cuidados Intensivos de Gastrenterologia e Hepatologia (UCIGH), estrutura que contribuiu, decisivamente, para o arranque efetivo do bem-sucedido programa de transplantação hepática dos HUC.
“Beneficiando de um invulgar espírito de equipa, agregador das diversas categorias profissionais que nela laboravam, a UCIGH desenvolveu um trabalho proficiente, por outros abundantemente reconhecido, tanto no âmbito dos cuidados aos doentes do foro digestivo em estado mais crítico, como no contexto da formação pós-graduada e da investigação clínica”, menciona.
Com efeito, e conforme faz saber José Manuel Romãozinho, desde a sua fundação, a 10 de março de 1992, até 31 de maio de 2013, a UCIGH tratou mais de cinco mil doentes, prestou formação a 112 internos de gastrenterologia, cirurgia e medicina interna, provenientes de praticamente todos os hospitais do País, produziu mais 400 estudos científicos, organizou um simpósio internacional – do qual resultou o livro Intensive Care in Gastrenterology, amplamente divulgado – e foi agraciada com sete prémios em outros tantos congressos científicos.
“A afirmação da escola de gastrenterologia de Coimbra beneficiou, como não poderia deixar de ser, de condições externas muito favoráveis, ocorridas na última década do século passado, quando, na sequência da transferência para as novas instalações, os HUC foram alcandorados ao topo dos hospitais de referência a nível nacional e a Lusa Atenas passou a ser considerada a capital portuguesa da saúde. Foi um tempo mágico e porventura irrepetível, pelo menos nos anos mais próximos, com grande envolvimento da minha geração, então na pujante casa dos quarenta anos de idade, nos assuntos da Faculdade e do Hospital, circunstância em que duas personalidades, os Professores António Meliço Silvestre e Francisco Castro e Sousa, sobressaíram naturalmente dos demais”, enfatiza.
Paralelamente à extensa atividade hospitalar, José Manuel Romãozinho dedicou-se também ao ensino pré-graduado da FMUC, admitindo ser um “professor exigente” que gostava muito de dar aulas, pelo que ainda hoje sente falta dos alunos e do ensino. “Para além do gosto desde sempre manifestado pelo ensino pré-graduado da gastrenterologia a gerações sucessivas de estudantes, procurei contribuir, na medida das minhas capacidades e como parte integrante e essencial do magistério universitário, para o governo latu sensu da minha Escola, tendo sido eleito para mais de uma dezena de cargos, dos quais cito, pelo seu simbolismo, o primeiro – representante do Grupo da Medicina Interna na Comissão Coordenadora do Conselho Científico, o último – membro da Assembleia da Faculdade, bem como, e para que conste, o que menos gostei – representante dos doutorados da FMUC no Senado Universitário”, afirma.
Do seu vasto currículo, fazem ainda parte os cargos desempenhados no âmbito das três sociedades científicas da sua área de especialidade médica: as Sociedades Portuguesas de Coloproctologia e Endoscopia Digestiva, das quais foi presidente, e a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, da qual foi vice-presidente. No âmbito das funções exercidas nestas sociedades, José Manuel Romãozinho destaca, de entre os empreendimentos levados a cabo durante os seus mandatos, as campanhas de sensibilização da população portuguesa e da tutela ministerial para a absoluta necessidade da instituição, em Portugal, de um programa nacional de rastreio do cancro colorretal devidamente estruturado, bem como a ênfase posta na questão da correta adequação dos atos médicos, bem ilustrada na realização do simpósio internacional ‘Qualidade em Endoscopia Digestiva: da formação à prática. Que futuro?’, que “contou com palestrantes ilustres como o Professor Marcelo Rebelo de Sousa” e do qual resultou a publicação do manual Normas de Avaliação e Garantia da Qualidade da Endoscopia Digestiva em Portugal.
Aposentado da função pública desde o dia 1 de junho de 2013, José Manuel Romãozinho mantém a atividade médica no setor privado. “Gosto muito de fazer consultas: o contacto com o doente é, para mim, fundamental”, assegura, apontando, a este propósito, a sua preocupação “para os condicionamentos temporais impostos, particularmente no ambulatório do serviço público, à singular relação médico-doente, nos últimos tempos já contaminada pela interposição do computador e o uso sistemático de algoritmos informáticos, com evidente prejuízo na qualidade da abordagem holística e compassiva que cada enfermo requer e exige”.
José Manuel Romãozinho afirma ter uma “vida rica”, e podemos assegurar que é, no mínimo, preenchida. Além de todos os cargos já elencados, a estes juntou-se ainda, por exemplo, o voluntariado na Liga Portuguesa Contra o Cancro da Região Centro, durante oito anos, “a convite do Professor Carlos Oliveira”, à data presidente da liga. “Dediquei-me, sobretudo, à área da Educação para a Saúde, que considero crucial, já que existe um grande nível de iliteracia sanitária no povo português. Acho fundamental a Educação para a Saúde começar logo na infância, para que seja possível haver uma diminuição sustentada das taxas de incidência e mortalidade oncológicas”, comenta.
Hoje, e a par da referida prática clínica no setor privado, dedica-se igualmente à gestão da Casa Agrícola herdada dos avós maternos, tendo sempre presente o ditado de que "terra não mais se fabrica" e o respeito pela conservação do meio ambiente. Garante, para além disso, "a minha realização é agora, de certa maneira, um ato diferido: quero, sobretudo, ajudar os meus netos a realizarem-se". Com este fito, pretende transmitir-lhes alguma da sua experiência de vida e ajudá-los a desenvolverem as suas aptidões e capacidades.
Sobre o futuro, José Manuel Romãozinho é pragmático. “Sou católico; por isso, só peço a Deus que me dê mais uns anos de bem-estar físico e que mantenha, sobretudo, a minha integridade psíquica… Penso que é isso: só peço saúde para continuar a fazer aquilo de que gosto”, sintetiza.
por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por José Manuel Romãozinho