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João Malva

João Malva, neurocientista, tem no envelhecimento ativo e saudável um dos seus grandes interesses. Para além da coordenação científica do Ageing@Coimbra, foi mentor e coordenador da proposta para a criação do Instituto Multidisciplinar do Envelhecimento – MIA Portugal. O também responsável pela linha de investigação “Vida Saudável e Envelhecimento Ativo” do iCBR-FMUC e coordenador da Escola Europeia de Doutoramento em Envelhecimento do EIT Health fala-nos acerca destes projetos.


É mentor e coordenador científico do Ageing@Coimbra.
Quando e como foi formado este consórcio?
O Ageing@Coimbra resultou de uma circunstância peculiar. Em 2012, fui convidado pelo diretor e pelo sub-diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), que, na altura, eram, respetivamente, Joaquim Murta e Francisco Ambrósio, para coordenar o Gabinete de Gestão de Projetos [atual Gabinete de Gestão de Investigação – GGI].

Ficou claro para nós que a estratégia deste gabinete deveria passar por um alinhamento científico da FMUC com as prioridades do Programa Horizonte 2020 (H2020), para que pudéssemos ser competitivos, não apenas à escala nacional, mas também europeia. Internamente, não restam dúvidas de que, na FMUC, temos essa capacidade competitiva, mas é preciso que os outros nos reconheçam também essa capacidade.

Logo em 2012, houve uma chamada da Comissão Europeia que apelava à apresentação de candidaturas para Reference Sites, ou seja, centros de referência, para a promoção do envelhecimento ativo e saudável. O envelhecimento perspetivava-se como área estratégica do H2020 e era uma área que tinha já valências, não só na FMUC, mas também noutras faculdades, no setor da inovação e da transferência tecnológica, na prestação de cuidados de saúde e na ação social.

O tema “envelhecimento” aparecia-nos como um tema muito agregador, com potenciais parceiros em Coimbra e na região Centro. Foi considerando este enquadramento que nos pareceu pertinente congregar todos estes parceiros, com histórico de qualidade na ação e inovação em boas práticas para a promoção do envelhecimento ativo e saudável, criando um consórcio holístico, em hélice quádrupla.

Este consórcio resulta da fertilização cruzada de diferentes áreas, como a Investigação e o Conhecimento, os Municípios e a Cidadania, a Inovação e Transferência Tecnológica e os Cuidados de Saúde. Foi assim que decidimos lançar as sementes daquilo que poderia vir a ser um consórcio na área do envelhecimento, a que chamámos Ageing@Coimbra.

Assinámos um memorando de entendimento entre a Universidade de Coimbra (UC), o Instituto Pedro Nunes (IPN), a Câmara Municipal de Coimbra, a Administração Regional de Saúde do Centro (ARS Centro) e o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) – que contemplam todas as áreas da hélice quádrupla – com a missão de fortalecer laços para a criação de projetos inovadores com génese ou implementação na região Centro, e apresentámos uma candidatura a centro de referência.

Depois, o processo correu em paralelo. Por um lado, a Comissão Europeia fez a avaliação da nossa proposta e, por outro, abrimos o consórcio a parceiros além dos fundadores, os chamados parceiros aderentes. Em janeiro de 2013, tínhamos o consórcio formado, que foi depois sendo reforçado e, a 1 de julho do mesmo ano, recebemos o selo de Reference Site. Foi um movimento inovador e arriscado, no sentido em que falamos de uma candidatura a Reference Site que não tinha ainda um consórcio formado. Criámos o consórcio ao mesmo tempo que propúnhamos a existência de um centro de referência. Mas a Comissão Europeia validou o processo, atribui-nos um selo de excelência, na altura com duas estrelas e, depois, o consórcio foi crescendo. Hoje, tem cerca de 90 membros. Em 2016, o consórcio foi novamente avaliado, passando a três estrelas e, na avaliação de 2019, passou à classificação máxima de quatro estrelas.

Neste processo, inspirámos outras regiões a apresentarem também candidaturas neste âmbito. Logo em 2013, organizámos uma reunião por videoconferência, com o patrocínio da Comissão Europeia, em que tivemos a presença de um Officer para nos ajudar a inspirar outras regiões. O nosso modelo de centro de referência inspirou, nomeadamente, colegas do Porto, que criaram o Porto4Ageing, hoje um centro de referência também de quatro estrelas, e de Lisboa, que criaram o Reference Center for Active and Healthy Aging, centro de duas estrelas que é coordenado pela Universidade Nova de Lisboa. Existe também um centro de referência no Algarve, com duas estrelas, e que é o mais recente.

Mas acabámos por inspirar também outras regiões europeias. Em Espanha, nas Astúrias, existe um centro de referência inspirado no nosso e com o patrocínio da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC), que, desde sempre, foi um apoiante institucional importante do Ageing@Coimbra. Outro centro inspirado no nosso existe em Lodz, na Polónia. E, ao longo dos anos, fomos criando vários projetos estratégicos, com implementação de sucesso, em várias regiões da Europa, incluindo Copenhaga, Groningen e também parceiros de Itália e França.

O Ageing@Coimbra é uma rede que, rapidamente, criou pontos de ligação na região Centro, em Portugal e na Europa. Neste momento, é um dos centros de referência de qualidade máxima, como referi, num total de 103 centros de referência que existem na Europa, sendo que o grupo de centros de qualidade máxima de quatro estrelas é constituído por cerca de 30 centros.


No âmbito do Ageing@Coimbra, foram, entretanto, criados vários projetos.
Neste processo de crescimento de rede, fomos lançando desafios importantes. Ao mesmo tempo que federámos os parceiros, criámos massa crítica e projetos regionais e diferenciadores. Fomos candidatando o Ageing@Coimbra e, naturalmente, a FMUC, enquanto face e motor deste consórcio, a projetos tão diferenciadores quanto, por exemplo, a nossa aceitação – UC, IPN e CHUC, numa fase inicial a Bial e, depois, a Bluepharma – como parceiros fundadores da rede EIT Health, uma das parcerias mais poderosas na área da Saúde.

Criou-se uma rede colaborativa fantástica e uma oportunidade para a FMUC de criar pontos de conhecimento e inovação com parceiros académicos e não académicos e, com isso, atraímos um financiamento importantíssimo. A UC entrou como parceiro associado, de uma região periférica, mas rapidamente demonstrou que era um dos parceiros mais poderosos da rede e passou de associado a parceiro core. Foi assim que a UC conseguiu obter financiamento para vários projetos EIT Health de grande sucesso, como o HeaLIQs4Cities, o CALMA, o Healthyloneliness ou a Escola Europeia de Doutoramento em Envelhecimento EIT Health.

Mas, com a atribuição do estatuto de Centro de Referência, sentimos que, por um lado, tínhamos tido o atrevimento e a inovação de propor um centro sabendo que o consórcio se estava a formar e, por outro lado, com a atribuição do selo, veio a responsabilidade. Ou seja, agora era preciso demonstrar que, de facto, tínhamos excelência, caso contrário, não passaríamos de um flop.

Achávamos necessário ter uma bandeira na investigação sobre envelhecimento que ficasse acima de qualquer suspeita em termos de qualidade internacional. Porque nós, cientistas, sabemos muito bem que a nossa excelência em Portugal é facilmente comparável aos níveis regional e nacional, mas quando nos comparamos com instituições de topo, como o Karolinska ou o Imperial College, entre tantas outras, passamos a desejar outro nível de excelência.

Se queremos jogar a “Liga dos Campeões” da excelência, temos de deixar de nos chamarmos excelentes e ambicionar, antes, que essa excelência seja reconhecida pelos outros. Não basta sermos uma das 500 melhores universidades do mundo: esse é um número muito grande. Pareceu-nos importante criarmos uma nova unidade de investigação em envelhecimento, que fosse, verdadeira e inequivocamente, uma unidade de excelência.

Por isso, era preciso potenciar os grupos de investigação em envelhecimento da nossa faculdade e da nossa universidade, alavancando a qualidade, mas não apenas na continuidade. Alavancar a qualidade na continuidade é continuarmos a ser quem somos, isto é, é melhorarmos gradualmente. E isso está bem, é um processo, mas não nos permite dar aqueles saltos quânticos para, de repente, vermos a nossa excelência passar do nível 500 para o nível 20, 30 ou 15 do ranking. Para que tal aconteça, é preciso trazer investigadores, massa crítica que ajude os grupos a crescerem. Assim, pensámos que precisávamos de um instituto de investigação com essa matriz.


É nesse contexto que “nasce” o Instituto Multidisciplinar do Envelhecimento [MIA Portugal], decorrente de uma candidatura ao programa H2020 ‘Teaming’?
Em conceito, e curiosamente, o MIA Portugal foi desenhado na sequência dessa atribuição do selo de Reference Site. Mas, nessa altura, não sabíamos sequer que iria haver uma Call H2020 para projetos ‘Teaming’.

O que sabíamos era que queríamos uma unidade de investigação em envelhecimento. Para isso, houve uma reunião no Conselho Diretivo da FMUC, em agosto de 2013, depois da atribuição do selo, na qual apresentámos uma proposta de parceria estratégica com a Universidade Newcastle e com a Universidade de Groningen, para desenvolver uma rede de parceiros que nos pudesse inspirar a criar essa unidade de investigação.

Tive esse mandato de trabalhar neste processo, até que, poucos meses depois, quando já estávamos com os contactos estabelecidos, foi publicada a Call do H2020 para projetos ‘Teaming’, cuja matriz era a da criação de uma rede de colaboração de parceiros de investigação na Europa de nível excelente numa determinada área em que pudessem alavancar parceiros das regiões de menor desempenho, os chamados poor performers. Para o bem e para o mal, nós estávamos, e estamos, nesse lote de poor performers: digamos que não estamos na primeira liga da investigação, mas sim na segunda, embora com aspiração de passar à primeira.

Esta Call assentava como uma luva naquilo que tínhamos desenhado e em que nos tínhamos inspirado. Por isso, agarrámos com toda a energia esse processo de candidatura. Criámos o consórcio entre a UC, a University Medical Center Groningen (UMCG) e a Universidade Newcastle, com ligações estratégicas à Universidade de Copenhaga e a Mayo Clinic e com um apoio muito importante da CCDRC e do IPN. Apresentámos a candidatura, que foi bem-sucedida. Depois do sucesso da implementação da Fase 1, fomos convidados a apresentar a candidatura para a Fase 2, uma seleção final para os centros que depois iriam receber financiamento de 15 milhões de euros para implementarem as suas unidades de investigação. Este não foi um processo linear. Tivemos uma primeira candidatura que não teve sucesso, mas, depois, numa segunda candidatura, o projeto ganhou e, finalmente, a UC e todos os parceiros têm agora a possibilidade de implementar o MIA Portugal.

No contexto ainda do desenho daquilo que haveria de ser o MIA Portugal, percebemos que seria preciso definir uma matriz para os grupos de investigação que viriam trabalhar neste instituto. Até que a própria Comissão Europeia lança uma Call ERA Chair, para financiamento de grupos de investigação com essa mesma matriz: aquilo não poderia ser mais perfeito! Fizemos a nossa candidatura ao projeto ERA Chair, cujo objetivo era contratar um investigador de topo e o seu grupo para uma área de desenvolvimento. Ora, qual haveria de ser a nossa área? O envelhecimento e, obviamente, esse ERA Chair iria definir a matriz daquilo que haveriam de ser os grupos de investigação do MIA Portugal. As estrelas alinharam-se todas! Houve aqui algum rasgo, alguma inovação, mas, depois, o cosmos fez o resto.

Recentemente, houve também uma chamada da FCT [Fundação para a Ciência e a Tecnologia] para financiamento de Laboratórios Colaborativos. A FMUC liderou esse processo, agora através do ERA Chair Holder Lino Ferreira, com uma candidatura a laboratório colaborativo em envelhecimento. Esse é mais um ativo em todos estes projetos que se cruzam muito bem e enquadram na mesma missão.

A verdade é esta: partimos de uma ideia e criámos um ecossistema de inovação em envelhecimento com um impacto brutal. Falamos em financiamento acumulado que ultrapassa, largamente, os 70 milhões de euros, e que, em postos de trabalho diretos, já terá criado, e vai criar, nos próximos anos, cerca de 120 postos de trabalho altamente qualificado. Acho que toda a gente acha que esta é uma história de sucesso. E partiu disto, de uma circunstância feliz e de uma boa ideia. Conseguimos criar um consórcio interessante, que juntou pessoas com essa vontade de fazer acontecer.


E como considera que o MIA Portugal deve integrar-se no ecossistema científico que existe em Coimbra?
Eu fui o motor da implementação do MIA Portugal nas Fases 1 e 2, de elaboração da candidatura escrita e da sua apresentação, mas depois, por questões internas, foi nomeado outro coordenador.

Para ser completamente cristalino, o coordenador ser a pessoa A, B, C ou D é irrelevante, porque o objetivo não é dar protagonismo a essa pessoa. O objetivo é dar protagonismo a todas as pessoas que vão trabalhar no MIA Portugal, com a matriz intelectual e científica desenhada para o instituto. Isso passa, desde logo, pela contratação de um coordenador científico e de uma estrutura de gestão que deve estar de acordo com a proposta e com o Grant Agreement assinado com a Comissão Europeia.

O projeto MIA Portugal não é um projeto apenas da UC, é um projeto de consórcio, que trabalhou ativamente na escrita: eu não o escrevi sozinho, este é um projeto de rede. O grande perigo é o de que haja a tentação de dar um rumo diferente àquilo que foi pensado para este instituto. Esse perigo tem a ver com a própria Call ‘Teaming’, que faz parte de um programa mais amplo, chamado ‘Widening’. A Comissão Europeia criou este programa para favorecer a chegada de financiamento científico aos países periféricos da Europa, tipicamente menos competitivos.

Mas este não é um dinheiro grátis. É um dinheiro que se investe para implementar uma agenda, e a agenda é a de levar excelência a essas regiões de menor desempenho e mantê-la sustentável. A Comissão Europeia queria que estes projetos fossem agentes de mudança e modernização das instituições. O risco, ao sair da matriz ‘Teaming’, é o de que haja a tentação de as instituições colocarem a agenda deste programa sob o interesse da própria instituição em continuar como está, não a alterando verdadeiramente. Ou seja, há o risco de haver uma subversão do espírito do projeto MIA Portugal para uma agenda mais interna de continuidade e não para a atração da excelência que se perspetivava.

Esse é um enorme risco, porque é, desde logo, uma oportunidade perdida para fazer a verdadeira mudança, e porque pode acontecer que a Comissão Europeia considere que a UC entrou em rutura com o Grant Agreement e descontinue o projeto. É evidente que isso era a última coisa que gostaria de ver acontecer. Não querendo acreditar que tal aconteça, a minha recomendação aqui é clara: que a condução do MIA Portugal não saia da matriz com que foi desenhada, porque foi essa matriz que foi avaliada e aprovada, e é para essa matriz que existe um contrato de financiamento.


É também responsável pela linha de investigação “Vida Saudável e Envelhecimento Ativo” do Instituto de Investigação Clínica e Biomédica de Coimbra (iCBR-FMUC). Como se tem organizado o trabalho feito neste âmbito? Tem sido fácil congregar os grupos de investigação? Isto porque o envelhecimento ativo e saudável é uma área vasta: existem várias doenças que têm como fator de risco o envelhecimento.
Devo dizer que não tem sido muito fácil. É um processo difícil, mas que eu próprio não vejo como sendo um problema. A criação desta linha de investigação deve-se à tentativa de darmos presença ao esforço do Ageing@Coimbra dentro do próprio instituto. Este consórcio foi sempre um movimento na Cloud. Nunca teve um espaço físico ou enquadramento institucional: não há nenhuma estrutura orgânica ou gabinete na UC que tenha o selo Ageing@Coimbra.

Esta é uma linha que não assenta em grupos de investigação convencionais, a desenvolverem trabalho no laboratório, até porque há o contexto de um MIA Portugal que está a crescer, há um ERA Chair e há vários grupos no iCBR e no CNC [Centro de Neurociências e Biologia Celular] que já fazem investigação em envelhecimento e que não estão vinculados a esta linha.

Como o próprio Ageing@Coimbra, esta é uma linha de investigação também ela um pouco virtual, sem uma atividade laboratorial intensa. Temos alguns projetos, mas temos, sobretudo, uma atividade em rede que nenhuma das outras linhas de investigação do iCBR têm. É uma atividade ligada a projetos financiados ou com alto potencial de financiamento na rede EIT Health e noutras redes. Acho que é um ativo importante para o instituto, já que esta talvez seja a linha de investigação que mais translação faz, isto é, que mais impacto direto tem na sociedade.


É ainda coordenador da Escola Europeia de Doutoramento em Envelhecimento do EIT Health, desde 2019. Em que consiste esta escola e como tem sido a experiência na coordenação?
Esta Escola de Doutoramento é um programa financiado pelo EIT Health para promover sinergias entre diferentes programas de doutoramento. Neste momento, fazem parte do programa treze universidades e seis parceiros não académicos da área da indústria e dos hospitais. O que é oferecido nesta rede é formação complementar e diferenciada, bem como mobilidade internacional, para que os alunos possam fazer formação sendo expostos a diferentes ambientes e contextos clínicos, de inovação e de empreendedorismo. Fazemos um retiro anual, ações de mobilidade e ações de inovação e empreendedorismo, que criam laços colaborativos importantes que, por vezes, resultam até em novas parcerias.

Em resumo, vejo dois ativos enormíssimos desta Escola de Doutoramento. Um é esta mobilidade, um treino de mobilidade internacional e intersectorial entre parceiros académicos e não académicos. Outro, são as oportunidades colaborativas que surgem destas redes.

Tem sido um projeto muito difícil, porque gerir uma rede desta complexidade e harmonizar requisitos institucionais e nacionais das formações avançadas é como andar no arame. A coordenação da Escola de Doutoramento consome, seguramente, 75 por cento do meu tempo. É muito exigente.


Falando ainda do envelhecimento, de uma forma mais genérica, que desafios acha que vão ser impostos às sociedades, no futuro, em termos de sustentabilidade dos sistemas de saúde, com o envelhecimento da população?
Não vale a pena dar uma grande explicação sobre as alterações demográficas ou o envelhecimento da população na Europa e no mundo, porque sabemos que esse é um assunto importantíssimo. Mas é também importante destacar que em 2060, de acordo com as projeções da União Europeia (UE), Portugal será o país da UE em que haverá um maior desequilíbrio entre o número de pessoas muito velhas e dependentes em relação ao número de adultos em idade produtiva.

Vão existir muitas pessoas idosas, com múltiplas condições crónicas e um envelhecimento de má qualidade, que não serão apoiadas por adultos com capacidade produtiva ou por crianças e adolescentes, porque seremos uma população envelhecida. É claro que as dinâmicas sociais podem mudar e o cenário pode não vir a ser exatamente este, mas de acordo com os dados que temos agora, Portugal estaria numa situação verdadeiramente dramática no cenário europeu.

E o contexto do envelhecimento joga-se nesta dinâmica. Temos esta perspetiva ideal de dar mais anos de vida às pessoas, mas não é importante dar muitos anos de vida às pessoas se elas viverem esses anos com uma qualidade miserável e uma dignidade comprometida. Ninguém quer viver 20 anos enfiado numa cama, numa cadeira de rodas ou a sofrer de não sei quantas condições, dependendo de todo o tipo de apoio. Aqui o problema não é dar mais anos à vida, é sobretudo dar mais vida aos anos, dar mais condições para que as pessoas vivam cada dia da sua vida em plenitude.

Para isso, temos de fazer mudanças estruturais na sociedade, a começar pela educação e sensibilização das novas gerações para adotarem estilos de vida saudáveis. É preciso sensibilizar as pessoas de que a qualidade de vida que vão ter daqui a uns anos vai depender muito dos comportamentos que tiveram agora e nos anos anteriores. Esta questão da prevenção é absolutamente crítica: mudar o paradigma da reação para a prevenção é fundamental, a par, obviamente, da existência de tratamentos diferenciados. Se chegarmos a 2060 sem mudar o perfil do envelhecimento das pessoas para que passem a ser mais saudáveis em vez de terem as doenças e a dependência que agora têm, teremos um grande problema.

A pandemia de COVID-19 veio mostrar que as questões do envelhecimento estão muito maltratadas em Portugal. Mal o vírus entrou nos lares, foi o pandemónio. E isto tem imensas dimensões, como a falta de articulação entre os cuidados de saúde e o setor social, ou seja, a questão da integração de cuidados e da natureza dos lares. O que é um lar de idosos? É um depósito de pessoas com múltiplas condições crónicas e dependência, quase como se fosse uma unidade de cuidados continuados? É uma residência comunitária onde as pessoas de maior idade, mas ainda saudáveis ou com problemas de saúde menores, se podem reunir para partilhar experiências e viver com os seus amigos em vez de estarem metidos em guetos? Como se vão repensar os cuidados aos idosos na sociedade do futuro? A pandemia mostrou que o que temos não serve. Este é um dos desafios.

O outro grande desafio, para mim, é a questão da literacia em saúde. É preciso educar as pessoas nesse sentido, tornando-as plenamente conscientes de que a saúde que vão ter no futuro está nas suas mãos, na sua boca e nas suas pernas. É preciso promover o exercício físico, a alimentação saudável, o cuidado com o sono, o cuidado em cultivar uma rede social saudável, a estimulação cognitiva e da curiosidade intelectual e a exposição a boa qualidade ambiental. Estes são fatores determinantes da saúde e temos de atuar aí, na prevenção.

Mas há necessidades imediatas, porque não basta só viver neste mundo do ideal, daquilo que há de ser em 2060 e da prevenção que será feita até lá chegarmos. Até lá chegarmos, muita gente vai precisar de ser tratada. Num mundo ideal, os hospitais fechavam todos e tínhamos só centros de convívio para as pessoas. Esse mundo ideal não existe e não vai existir. Entretanto, temos de ter outros cuidados como a aposta no diagnóstico precoce, para que o tratamento possa ser atempado.

E é muito importante o investimento na investigação, na produção de conhecimento e na comunicação desse conhecimento à sociedade. É preciso investir na saúde, na promoção da vida saudável e do envelhecimento ativo. Essa tem de ser uma prioridade, porque esta é uma corrida que não tem uma meta. O envelhecimento não é algo que vá acabar em 2060.


É neurocientista e tem uma carreira de sucesso nessa área, mas, num dado momento, mudou de estratégia: a ciência de bancada ficou um pouco de lado e a gestão de ciência assumiu maior protagonismo. Como enquadra a ciência na sua vida? Onde está o cientista?
Acho que, para qualquer investigador, isto é um ciclo de vida, não é? E um ciclo de vida tem diferentes fases e competências, como acontece com todos os seres, com os animais e com as plantas. A vida não é uma fotografia que se mantém estática: é mutável.

Sou cientista por decisão própria e por gosto genuíno de ser cientista. Sempre quis ser biólogo, desde muito jovem. Bem, primeiro queria ser astronauta e aviador, gostava mesmo daquilo! Mas, um dia, desci à terra e percebi que, afinal, queria ser cientista. E, quando decidi que queria ser biólogo, decidi também que queria ser investigador. A vida ofereceu-me essa oportunidade. Fiz o doutoramento, na altura como professor da Universidade do Minho e, depois, decidi passar da carreira de professor para a de investigador. Na altura, ainda jovem, era um pouco frustrante para mim ser confrontado com a necessidade de ensinar aquilo que lia nos livros umas horas antes de transmitir esse conhecimento aos alunos.

Acho que o ensino universitário é um ensino de inspiração. E há várias formas de se ser inspirador. Para mim, para poder ser inspirador, só posso ensinar aquilo que conheço pela experiência amadurecida. Por isso, quis passar a ser investigador para criar essa experiência e poder transmitir aos alunos o entusiasmo que eu próprio sinto.

Tive o prazer de ser investigador durante muitos anos, de fazer neurociência, algo de que realmente gosto muito, de fazer experiências de laboratório, de ensinar jovens e de criar um grupo dinâmico e entusiasmado, de muita qualidade. Muitos deles, quase todos, são, hoje, cientistas de sucesso. Portanto, esse foi um processo bem conseguido.

Mas, de facto, há fases para tudo. Houve uma fase para ser investigador com as minhas mãos e uma fase para ser investigador a orientar outros jovens, a motivá-los, ensiná-los e fazê-los crescer. Houve ainda outra fase em que fui presidente da Sociedade Portuguesa de Neurociências e comecei a criar estas redes nacionais e internacionais, ao mesmo tempo que ainda tinha o grupo de investigação.

Depois houve uma fase má, mas, como em tudo na vida, é das dificuldades que surgem oportunidades. Essa fase má foi fruto do financiamento errático dos sistemas de financiamento nacionais, o que, aliás, é uma coisa crónica, devo dizer. Tive dificuldade na obtenção de financiamento para o meu grupo de investigação, num período muito concreto, na altura da crise que nos afetou, em 2010, 2011. Com isso, vieram alguns problemas relativos à coesão do grupo de investigação que, aos poucos, foi sendo reduzido.

Isto aconteceu no período em que fui convidado para coordenar o Gabinete de Gestão de Projetos. Aí, a dificuldade passou a ser uma oportunidade. Isso abriu um novo capítulo na minha vida, em que percebi que o valor que poderia dar à ciência já não estava em ser eu a fazer as experiências de laboratório nem a orientar outros investigadores. Percebi, nessa fase, que, para além do muito capital acumulado em conhecimento da ciência, tinha também a capacidade de criar e gerir redes. Achei que estava na altura de dar à UC e à FMUC esse capital acumulado, e penso que o sucesso obtido demonstrou que não estava errado.

Esta nova fase é a de um gestor de redes e de um criador de boas vontades, de alguém que acha que, aqui e acolá, vai conseguindo inspirar outras pessoas para que, primeiro, sejam felizes e, depois, tenham sucesso e aumentem a sua felicidade, criando felicidade à volta de todos. Acho que a vontade de criar o bem e de partilhar o bem é um grande motor de mudança, desde logo porque nos dá inspiração. O mundo já é muito competitivo, muito aguerrido, e isso não é, necessariamente, uma coisa boa.

Vejo-me nesta perspetiva de continuidade, de ciclo de vida, consciente de que as minhas capacidades vão mudando a cada dia que passa. Todos os dias somos pessoas diferentes e, nessa mutabilidade, temos de nos ir adaptando às circunstâncias. Sobreviver é uma questão de termos a capacidade de nos adaptarmos à mudança do ambiente. Essa adaptação só é viável se soubermos usar os nossos recursos da maneira certa e no momento certo.

O meu momento agora continua a ser o de gerir redes e projetos internacionais e nacionais, com impacto na sociedade. É assim que nesta fase da minha vida eu me vejo, e sei uma coisa: nunca seria esta pessoa se não tivesse sido cientista de bancada. O facto é que o treino científico que temos transforma-nos em pessoas com características de organização, de visão e de planeamento, que podem ser colocadas em projetos que não aqueles para os quais somos treinados, porque nos transforma em pessoas com grande capacidade de gerir informação, de criar sinergias e de ver um bocadinho mais além.

Acho que o treino de um cientista é uma coisa fantástica. Tenho a certeza absoluta de que não poderia fazer o que tenho feito se não fosse cientista. E não teria a credibilidade que tenho também. Quando me apresento a alguém para lançar ou responder a um desafio, nunca tenho dúvidas em apresentar-me como “João Malva, neurocientista”. E não tenho vergonha nenhuma em dizer que fui presidente da Sociedade Portuguesa de Neurociências, porque, atrás disso, há um capital de prestígio, que as pessoas reconhecem.


por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por João Malva


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