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Catarina Resende de Oliveira

Criada em 2018, a Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica tem a sua atividade organizada em quatro eixos, tal como explicita Catarina Resende de Oliveira. Esta agência pretende ser uma referência na promoção e na criação de condições que permitam estimular a investigação clínica e a inovação biomédica em Portugal.


A Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica (AICIB) é relativamente recente: foi criada em 2018. Em termos gerais, o que é esta agência e qual o propósito da sua criação?
Esta é uma agência que tem como missão a promoção da investigação clínica e da inovação biomédica, e cujo objetivo é o de não se ficar apenas por uma visão teórica, expressa em inúmeros documentos, nomeadamente decretos-lei e resoluções de Conselhos de Ministros já publicados. No fundo, queremos passar dessa visão teórica para a atuação no terreno, queremos fazer acontecer, de tal forma que seja possível criar as condições para que Portugal seja um país competitivo na área da investigação clínica e translacional e na inovação biomédica, em paralelo com os países europeus com dimensão semelhante à sua.

De facto, a AICIB foi criada em março de 2018, por uma resolução do Conselho de Ministros. Foi nesse ano que entrou em atividade uma comissão instaladora da agência, que traçou as linhas gerais da sua atividade e criou as condições para que esta agência se tornasse uma realidade.

Depois disso, iniciaram-se os procedimentos para que a AICIB entrasse em funcionamento. No final de 2019, a direção e a estrutura da agência foram aprovadas pelos associados fundadores [FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, INFARMED, APIFARMA e HCP – Health Cluster Portugal] em Assembleia Geral, tendo o plano de atividades sido aprovado em julho de 2020. Assim sendo, no final do primeiro semestre de 2021, a AICIB terá cumprido este plano de atividade proposto para ser realizado no intervalo temporal de um ano.


Uma das finalidades da AICIB é a promoção dos Centros Académicos Clínicos (CAC) em Portugal. Como se tem efetivado, em termos práticos, essa finalidade?
Sim, esse é um dos eixos de atividade da AICIB. Tentando contextualizar um pouco, a AICIB tem quatro eixos de atividade. O primeiro é um eixo dedicado à promoção da investigação clínica num sentido lato, ou seja, da investigação associada a projetos de investigação clínica, centrada no indivíduo doente, e à colaboração na estruturação e elaboração do plano de capacitação dos centros que a ela se dedicam.

O segundo eixo diz, precisamente, respeito aos CAC. Dentro das atividades desenvolvidas neste eixo, foi-nos delegado, por parte da FCT, o processo de avaliação dos CAC.

Nesse sentido, a AICIB elaborou todos os procedimentos necessários para levar a cabo esta avaliação, sempre em estreita articulação com o Conselho Nacional dos Centros Académicos Clínicos. Neste momento, temos todo o processo de avaliação preparado, agora em análise pela FCT, e o respetivo regulamento está já em consulta pública.


Esta será a primeira avaliação dos CAC.
Sim, este será o primeiro exercício de avaliação dos CAC em Portugal. Está já constituída a Comissão de Avaliação dos CAC, composta por avaliadores externos, internacionais, com uma forte experiência na organização e no funcionamento de CAC a nível europeu. Esta avaliação já deveria estar a decorrer, mas a situação pandémica que vivemos acabou por causar atrasos e introduzir algumas alterações ao plano inicialmente gizado.

É uma avaliação que vai decorrer em dois momentos. Num primeiro momento, vai ser pedido a todos os CAC a apresentação de um plano estratégico para o seu desenvolvimento. Esse plano vai ser entregue aos avaliadores para ser analisado por eles e, seguidamente, os avaliadores irão interagir com os CAC por videoconferência. Essa interação será pública, ou seja, vai poder ser acompanhada pela comunidade, e nela os avaliadores vão discutir os respetivos planos estratégicos com as direções dos diversos CAC.

Depois dessa interação à distância, o painel de avaliação dos CAC vai emitir recomendações e seguir-se-á o segundo momento do processo de avaliação, que já deverá ser presencial. Nessa altura, os avaliadores virão visitar todos os CAC para concluírem as avaliações. Gostaríamos que esta avaliação ficasse concluída até ao final deste ano, sendo que o financiamento para as atividades dos CAC só será atribuído após esta visita presencial.


Antes ainda de lhe perguntar mais especificamente por essa atribuição do financiamento aos CAC, perguntava-lhe quais são os outros dois eixos de atividade da AICIB?
O terceiro eixo é um eixo que está muito focado na investigação clínica, na perspetiva do desenvolvimento de ensaios clínicos, não apenas daqueles promovidos pela indústria, mas, sobretudo, dos ensaios clínicos da iniciativa dos investigadores.

Neste eixo, a nossa atividade está muito direcionada para a capacitação dos Centros de Investigação Clínica, ou das Unidades de Inovação e Desenvolvimento existentes nas instituições de saúde. Isto porque, para que o País seja atrativo neste tipo de investigação, é necessário que reúna as condições mínimas do ponto de vista organizacional e da capacitação para a realização deste tipo de investigação. A nossa ação está, neste momento, direcionada nesse sentido. Iniciámos esta ação com dois projetos-piloto, em dois centros de investigação clínica que ainda não estavam organizados, mas em que havia uma vontade e um empenho enormes de organizar uma estrutura devidamente capacitada na respetiva unidade de saúde. Agora, vamos estender esta ação a mais dez projetos-piloto, através de uma Call que será dirigida às unidades de saúde do sistema de saúde nacional.


A AICIB intervém também na transição dos ensaios pré-clínicos para os ensaios clínicos, ou a sua intervenção está direcionada para ensaios já de maior dimensão ou em fases mais avançadas, quando é necessário, por exemplo, recorrer a unidades hospitalares para o recrutamento de um maior número de doentes?
Na nossa perspetiva, os ensaios clínicos só existem no seio de estruturas ou de instituições de saúde, porque é lá que estão os doentes e, para além de lá estarem os doentes, é também através dessas instituições que é possível o recrutamento, em segurança, de indivíduos saudáveis e voluntários para as fases iniciais dos ensaios clínicos.

A AICIB promove a capacitação dos Centros de Investigação Clínica (CIC) em ensaios clínicos de qualquer fase, da fase I à fase IV. Porque, como referi, esta investigação clínica pressupõe a interação com pessoas, quer saudáveis, quer com uma determinada patologia. Por exemplo, nos ensaios da fase I, temos, maioritariamente, indivíduos saudáveis. Normalmente, esses ensaios correm bem, mas, por vezes, isso não acontece. Por isso, existe a necessidade de termos os ensaios desta fase incluídos em instituições de saúde, capazes de prestar um serviço imediato nos casos em que o ensaio não corre tão bem quanto estava preconizado. Desse modo, é assegurada a existência de recursos humanos capacitados que, por sua vez, asseguram que aquele ensaio decorre dentro das regras estipuladas e com a qualidade necessária.


Falta-nos então abordar o quarto eixo de atividade da AICIB.
Exato, o quarto eixo dedica-se à implementação de tecnologias que permitam o tratamento de dados. Os dados em saúde são de uma riqueza enorme. Se pensarmos nos dados em saúde que existem e se pensarmos em investigação clínica, há aí um manancial de informação que está, claramente, subaproveitado.

É necessário que exista a possibilidade de termos esses dados organizados de forma a poderem ser utilizados na investigação clínica, obviamente que devidamente anonimizados e com todo o respeito pelas regras inerentes à sua utilização. Digamos que esses dados não devem ser mantidos num repositório morto, devendo, antes, ser estruturados e existir uma interoperabilidade dos vários sistemas de registo de dados existentes no sistema nacional de saúde.

Este recurso aos dados clínicos estruturados é importante para o País, mas é também uma preocupação a nível europeu. Aliás, no início de junho, e no âmbito da Presidência Portuguesa da União Europeia, vai existir, precisamente, uma iniciativa dedicada a estas questões associadas à ciência dos dados e à interoperabilidade dos sistemas de registo.

Gostaríamos de conseguir ter uma estruturação e organização dos dados clínicos numa perspetiva de big data, mas, para isso, é necessária, evidentemente, uma interação com a Direção-Geral da Saúde (DGS) e com os próprios SPMS [Serviços Partilhados do Ministério da Saúde]. É uma ação que tem de se ir fazendo. Está prevista a aplicação do regulamento europeu de proteção de dados ainda este ano, embora tenhamos sempre de contar com as especificidades dos diversos países. Mas o facto é que, neste momento, temos, a nível nacional, ferramentas, institutos e investigadores da área da Inteligência Artificial que nos permitem ter uma capacidade de ajudar e construir parcerias ativas na construção destas bases de dados estruturadas capazes de ser utilizadas na criação de novo conhecimento, útil não só para a investigação em saúde, como também para os serviços de saúde e para a sociedade como um todo. O que é preciso é quebrar fronteiras, juntar e articular estes diferentes interlocutores com competências complementares.


Há que tentar aumentar a colaboração e articulação entre centros com repositórios de dados, como os Biobancos, para que os recursos sejam rentabilizados?
É preciso criar uma rede que não seja só de dados clínicos relativos à história clínica do doente. É preciso que essa rede contenha dados clínicos, dados de exames complementares e de imagem, entre outros. Atualmente, os dados existentes nos Biobancos só têm valor e sentido se as amostras aí armazenadas tiverem este tipo de informação acoplada. Os Biobancos não são meros repositórios de amostras biológicas, são estruturas ativas, essenciais para a realização de uma investigação clínica de qualidade. A rede nacional de Biobancos faz parte da Rede Nacional de Infraestruturas de Apoio à Investigação recentemente aprovada. Há que tirar partido das oportunidades que se abrem para robustecer a rede nacional de Biobancos, uma infraestrutura crucial para a investigação clínica e translacional.


É preciso que essas bases de dados não sejam estanques.
Sim, no fundo, que não sejam bases de dados mortas. Têm de ser ativas, permitindo a sua utilização pelos investigadores. Neste momento, temos de ter em mente que a maneira de fazer ciência mudou, não só para a investigação fundamental, mas também para a investigação clínica e de translação.

Temos de passar ao conceito da big science. Não estamos mais fechados na nossa casinha, no nosso espaço bem delimitado. Se assim for, o que fazemos terá valor, mas é um valor muito inferior àquele que poderá ser gerado se existir a noção de que estamos na Europa e no mundo, que temos de criar sinergias e trabalhar em rede, e que disso podemos retirar proveito.

E proveito a favor de quem? A favor do cidadão e da sociedade. Porque, no centro de tudo isto, estão as pessoas. O cidadão tem de estar no centro de todo este processo e, por isso, não devemos fazer investigação sem ter em conta as suas expetativas. Antes de mais, porque é com os seus impostos que a investigação é financiada. Além disso, é crucial ter o cidadão, não apenas no centro da decisão, mas até na orientação que devemos dar à investigação, no sentido de definir áreas prioritárias que nos permitam responder àquilo que o cidadão espera de nós.


A pandemia acabou por ser um exemplo real e concreto dessa perspetiva de big science, no sentido de beneficiar os cidadãos e as populações, bem como da importância da ciência fundamental. Nesse sentido, acha que esta pandemia mudou o paradigma no que diz respeito à ciência e àquilo que é possível fazer quando se unem esforços, ou teme que este tenha sido um caso isolado?
Acho que a pandemia de COVID-19 foi exemplar nesse sentido, embora me custe utilizar esta expressão, mas é verdade. Foi exemplar na demonstração da nossa capacidade de, quando algo nos atinge não só a nós próprios, mas à sociedade de uma maneira global, sermos capazes de reorientar as nossas linhas de investigação e de atuação para contribuir para a solução de um problema que é de todos. Todos nós estamos a sentir aquele problema, e aquele problema tem repercussões enormes na sociedade em todos os seus aspetos.

Toda esta situação teve uma função agregadora e, na minha ótica, mostrou a importância que tem a ciência fundamental, porque, sem ela, não teríamos sido capazes de dar este tipo de resposta. As vacinas são o exemplo mais marcante de tudo isso e são o que nos vai permitir regressar a uma vida normal, quase impossível de manter dentro dos muros estreitos a que tivemos de nos sujeitar todos. O desenvolvimento de vacinas para a COVID-19, em tempo recorde, foi possível porque existia um trabalho prévio de investigação fundamental, focado no RNA e na sua potencial utilização para o desenvolvimento de vacinas. É inquestionável que deve haver um investimento na ciência fundamental: é dela que surge inovação e conhecimento que, depois, é direcionado e tem aplicações práticas.

Agora, se esta situação foi ou não um caso isolado, eu acho que é possível que a nossa maneira de estar já não regresse totalmente ao que era antes da pandemia. Ficou uma semente, ficou esta noção de que somos capazes de desenvolver algo em comum para o bem da sociedade. Ficou demonstrado que a saúde é fundamental para a estabilidade social e económica de qualquer país.

Acredito que não vamos regressar exatamente ao modelo que tínhamos anteriormente, mas também acredito que este movimento de mobilização em torno de um problema comum vai desvanecer-se a certa altura e as pessoas vão regressar, ou terão tendência para regressar, aos seus” territórios”, à sua área de conforto.

Mas há algo que vai ficar. Há iniciativas europeias exatamente nesse sentido, de que aquilo que se aprendeu numa situação de pandemia seja mobilizador para a resolução de problemas comuns e nos prepare para pandemias futuras. E acho também que vamos passar a ter mais atenção a outro aspeto, que é o da nossa proximidade à vida animal. Esta pandemia veio, mais uma vez, demonstrar que as zoonoses, que a interação Homem-animal, têm de ser objeto de uma atenção e de um estudo cuidados.


Voltamos agora aos CAC, para concluirmos a questão do financiamento. Depois da primeira avaliação destes centros, como vai ser atribuído o financiamento? São já expectáveis, por exemplo, as áreas de destino dessas verbas?
O financiamento que está previsto ser atribuído aos CAC permitirá alavancar o plano que cada um deles tiver gizado, e por isso é tão importante que os avaliadores se desloquem a cada CAC no decorrer do processo de avaliação, para comprovar in loco as condições em que os respetivos planos estratégicos vão ser implementados.

Esse financiamento será atribuído em função da avaliação feita pela Comissão de Avaliação Externa. Não está ainda definida a percentagem de atribuição desse financiamento, mas será atribuído em função do plano estratégico, das condições existentes no terreno e daquilo que já foi desenvolvido no sentido de permitir implementar o plano estratégico. Depois, estas avaliações vão ocorrer de quatro em quatro anos e, em função disso, num segundo exercício de avaliação, poderá existir já uma estratificação deste financiamento.


A AICIB tem esta função de, no fundo, passar das palavras aos atos, como referiu inicialmente. Mas existe já uma estrutura montada e capaz de levar essas intenções para o terreno?
Neste momento, ainda não temos essa estrutura. Estamos, nós próprios, a elaborar também o nosso plano de atividade estratégica até 2025. Vamos fazer isso até ao final deste ano. Sabemos o que queremos fazer e iniciámos o trabalho no terreno, mas somos poucos neste momento. É evidente que temos uma proposta de uma estrutura maior em recursos humanos. É humanamente impossível levar a cabo todas as nossas atividades sem um maior investimento nesses recursos humanos, embora não queiramos ter uma estrutura pesada, apenas adequada aos objetivos que nos propomos.


E de que forma a AICIB se articula com outras estruturas que associamos a ensaios clínicos, como a PtCRIN [Portuguese Clinical Research Infrastructure Network] ou o HCP?A AICIB tem uma articulação perfeita com as estruturas existentes que dizem respeito a ensaios clínicos. Dando um exemplo concreto, nesta situação de pandemia foi proposto o desenvolvimento de dois ensaios clínicos, utilizando fármacos já aprovados para outras condições: o Solidarity, ensaio proposto pela OMS [Organização Mundial da Saúde] e o Discovery, ensaio coordenado pelo Inserm [Instituto Nacional de Saúde e Investigação Médica, França].

O Ministério da Saúde português designou a AICIB como promotora destes dois ensaios clínicos em Portugal. Neste momento, temos dois recursos humanos na AICIB dedicados a este trabalho.

Estes ensaios clínicos, realizados em situação pandémica, são extremamente difíceis de montar, porque estão constantemente a ser modificados. No fundo, são ensaios clínicos que fogem às regras ‘normais’ de um ensaio clínico. Num ensaio clínico, estamos habituados a testar uma molécula experimental que, se a certa altura fica demonstrado que não está a ter o efeito que era preconizado, nos faz interromper o ensaio. Estes ensaios clínicos relativos à pandemia não são interrompidos, mas permanentemente reajustados.

Isto para dizer que a articulação com outras estruturas, nomeadamente com a PtCRIN, é perfeita. Nestes dois ensaios, o Solidarity e o Discovery, a AICIB tem a função de promotora a nível nacional e, como tal, coordena a implementação destes estudos nos vários centros envolvidos nestes ensaios. Para a monitorização destes ensaios clínicos recorremos, precisamente, a uma das unidades ligadas à PtCRIN. Trabalhamos todos em perfeita consonância, sem ‘atropelos’.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Catarina Resende de Oliveira


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