Do curso de Medicina   

Uma mente livre

Comecemos por uma breve definição. “Arrepanhia”, substantivo feminino, é a palavra utilizada para descrever a ação ou o efeito de arrepanhar, de pilhar. Arrepanhia é também o título de um livro publicado em outubro de 2020 e no qual, ao longo de quatro capítulos, o seu autor, Luís Cunha, conta episódios de vida e faz observações acerca daquilo que o rodeia, numa escrita lúcida e despretensiosa. Nos relatos que constam deste livro, bem como no modo como se expressa, a noção de liberdade é recorrente nas suas palavras: afinal, as memórias só se arrepanham se a mente for livre.

Nasceu em Lisboa, cidade na qual viria, posteriormente e até aos 14 anos de idade, a frequentar o Liceu Francês, mas os seus primeiros anos de vida foram passados em Ovar, onde o pai exercia a atividade clínica. “Eu era filho de um médico de província endeusado pelos seus doentes, numa vida relativamente fácil por ser quem era, no meio de uma enorme miséria reinante”, observa. Luís Cunha considera, por isso, que as suas influências são vastas, dado o acentuado antagonismo, à data, dos locais em que viveu. “Talvez de Ovar tenha ficado a influência, são só do exercício da Medicina, pelo exemplo muito marcante do meu pai e das três gerações que o precederam, mas também de uma ideia de justiça social, de me importar com aquilo que se passa com os outros e à minha volta… Essa influência marcou-me muito, tanto do ponto de vista profissional, como de formação da própria personalidade”, destaca. De Lisboa, a influência da passagem pelo Liceu Francês, “algo elitista”, e de “relacionamentos muito diferentes com as pessoas” relevou também ser uma “aprendizagem importante, que permitiu o desenvolvimento de aptidões” para que se sentisse à vontade junto de todos, quer com os amigos de Lisboa ou com os amigos pescadores do Furadouro.

Da infância, guarda uma “memória de liberdade”, de um tempo em que podia jogar futebol na rua – parando apenas para dar passagem aos carros de bois, “mais frequentes do que os automóveis” – e dos passeios de bicicleta até à Ria ou à vela e no mar. Desses tempos, guarda ainda a recordação da vontade de seguir um rumo profissional bem diferente daquele que, anos mais tarde, veio a ser o escolhido. “Quando folheio alguns livros da minha infância, vejo anotações que fui fazendo, além de uma frase – ‘Querer é poder.’ –, que, hoje, vale muito pouco…”, denota. “Naquela altura, quando o espaço começou a ser explorado e começámos a ouvir falar de foguetões, o que eu queria era ser cientista e estar na primeira linha da evolução científica”, relembra, “mas, como costumo dizer na brincadeira, a fila para me inscrever em Medicina estava mais pequena!”.

A Lisboa e Ovar juntam-se ainda o Porto, onde esteve depois da estada na capital e, claro, Coimbra, onde Luís Cunha se formou em Medicina. “O Porto é uma cidade que apaixona pelas pessoas e pelo seu tratamento, com os quais me identifico, e Coimbra é uma paixão que já vem da tradição: o meu trisavô, o meu bisavô, o meu avô, o meu pai e vários tios estudaram e formaram-se em Medicina em Coimbra”, faz saber. E ainda não saímos de território nacional: mais à frente, levantaremos voo rumo a outras paisagens, quando dermos a conhecer uma das suas grandes paixões. Por agora, mantemos os pés em terra firme para ficarmos a saber mais sobre a sua vida enquanto estudante da FMUC.



Tinha um objetivo, e esse objetivo era ser um médico de família dedicado e competente.

“Em Coimbra, aprendi muito acerca dos conceitos de solidariedade e de amizade, do pluralismo no que diz respeito à convivência entre pessoas de várias faculdades, de várias procedências e de várias geografias; essa convivência é extremamente enriquecedora na formação da nossa identidade”, afirma. Luís Cunha conta também que teve a vida “relativamente simplificada em Coimbra”, dado o facto de o seu pai e o seu tio terem sido dos primeiros jogadores internacionais da equipa de futebol da Académica. “Eles eram muito conhecidos nessa altura – o meu tio Ruy Cunha tem, ainda hoje, uma placa exposta no campo de Santa Cruz – e embora eu não fosse louro como eles e, por isso, raramente era reconhecido pela parte física, as pessoas sabiam que era filho e sobrinho de dois bons alunos que jogavam futebol, e cheguei a ter, inclusive, professores que tinham sido contemporâneos deles”.

Luís Cunha confessa que a sua ambição, assim que terminasse o curso, era voltar à tradição familiar. “Tinha um objetivo, e esse objetivo era ser um médico de família dedicado e competente: eu seria a quinta geração direta a trabalhar no mesmo consultório e a ver as mesmas famílias de doentes”, indica. Mas, entretanto, um novo interesse surge na sua vida. “O Professor Nunes Vicente foi o meu mestre, quem conseguiu fazer com que me entusiasmasse enormemente pela Neurologia”, enfatiza. Estava, assim, escolhida a especialidade médica do hoje antigo diretor do Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) e docente da FMUC. Ao longo do seu percurso profissional, clínico e académico, Luís Cunha afirma que costumava dizer aos internos que existiam duas formas de encarar a Neurologia: ou por paixão, ou por castigo. “Se o interno a encarasse por castigo, nunca seria um grande neurologista”, observa.

A Neurologia “pressupõe um desenvolvimento progressivo como talvez nenhuma outra área o faça; e de grande extensão, porque se debruça tanto na sensibilidade do dedo grande do pé como na função cortical mais elaborada: tudo está relacionado com o cérebro, daí a enorme necessidade de o considerarmos em todas as suas capacidades”, explica. Um grande desafio que, antes do aparecimento de exames de diagnóstico mais precisos, nomeadamente de imagiologia, se prestava a um certo “pedantismo”, conforme indica. “Quando escolhi esta especialidade, os doentes não eram praticamente tratados: faziam-se diagnósticos brilhantes, mas não havia TAC [Tomografia Axial Computorizada], não havia Ressonância Magnética e, muitas vezes, esses diagnósticos não podiam sequer ser confirmados”.

Por esse motivo, considera ter tido a sorte de acompanhar esta fase de transição no que diz respeito ao diagnóstico, bem como à evolução da própria terapêutica. “A primeira TAC que vi foi quando fiz um estágio em Londres: foram os engenheiros dos The Beatles que conseguiram aproveitar toda a potencialidade do raio-X para fazerem aquilo a que chamaram o EMI Scan”, conta. “Eram imagens como as das fotografias de Polaroid, muito pouco nítidas, mas repare o que significava, para uma pessoa habituada a fazer o diagnóstico de uma lesão sem a ver a não ser pelos seus efeitos visíveis a nível periférico, muitas vezes a um metro de distância da lesão, poder realmente vê-la”, destaca.

Luís Cunha evidencia também o facto de a Neurologia ir ao encontro de outras especialidades e Ciências Básicas, destacando, de igual forma, os enormes progressos que têm vindo a ser alcançados ao nível do tratamento. “Sempre estivemos abertos a outras especialidades: a Bioquímica, a Imagiologia, a Genética e a Imunologia interessavam-nos e conseguimos ir beber a essas fontes e à parte da ciência básica. Além disso, hoje existem terapêuticas muito eficazes, que permitiram, inclusive, o tratamento de doenças até há poucos anos tidas como incuráveis, de tal forma que cunhámos uma nova sigla que é Non Evidence of Disease Activity [NEDA], no caso de doenças em que, embora não possamos dizer que tenham sido curadas, não existe evidência de progressão da sua atividade”.

A par da prática clínica e da investigação, a docência acabou por revelar-se também uma paixão para Luís Cunha. Embora admita que, inicialmente, era um professor um pouco rígido e que, por essa razão, podia incutir algum medo nos seus alunos, ao longo da prática docente conseguiu adotar uma postura mais paternal. Essa paixão pelo ensino foi fomentada pela possibilidade de assistir à evolução dos seus alunos. “Aquilo que, para alguns professores, poderia ser uma questão de inveja – ver os alunos evoluírem ao ponto de nos ultrapassarem – para mim, era um enorme prazer”, confessa.


Luís Cunha afirma que foi, igualmente, com base neste pressuposto de evolução pessoal e profissional dos seus membros que o Serviço de Neurologia do CHUC que, aquando da sua formação, era relativamente pequeno, contava com 215 pessoas quando deixou a sua direção, há cerca de três anos. “Todos os meus assistentes começaram a produzir de maneira que eu não seria capaz, nem sozinho, nem se os orientasse completamente. Portanto, nós damos-lhes um empurrão inicial, mas depois são eles a puxarem por nós e a obrigarem-nos a estar sempre atualizados e a ter orgulho de apresentar conjuntamente o trabalho que eles fizeram”, revela.


A paixão pela caça começa, talvez, na minha ancestralidade, não tanto até nos parentes próximos.

É agora que levantamos voo e partimos rumo à Argentina e ao Senegal, pois apesar da sua extensa e exigente atividade profissional – e pessoal, ou não tivesse quatro filhos e nove netos – Luís Cunha conseguiu ainda dedicar-se a outra paixão: a caça de aves. “Gosto da caça pelo companheirismo, pela aprendizagem e pela liberdade, pelos cheiros do campo e pelo prazer do contacto com a natureza… Depois de estar várias horas numa sala de aulas, num gabinete de consultas e de fazer uma visita à Enfermaria do hospital, talvez as pessoas preferissem ficar a descansar, mas eu prefiro este tipo de atividade”, afirma. “A paixão pela caça começa, talvez, na minha ancestralidade, não tanto até nos parentes próximos. Aquilo tem muito de extremamente instintivo e dificilmente explicável, sob o ponto de vista lógico”, menciona. 

No final dos anos 90, Luís Cunha esteve em Buenos Aires, no Congresso Mundial de Neurologia, e na mala que fez para a sua viagem à capital argentina levou a espingarda e um contacto com uma organização de caça. “Lá, encontrei algo que não se encontra em muito lado: pessoas extremamente disponíveis, simpáticas e amigos, mas amigos mesmo. E, num passeio a cavalo, apaixonei-me por uma zona que era o Monzón”, declara. A fotografia que faz a capa do livro Arrepanhia foi tirada nesse local, que conta com a presença de flamingos e gansos para completar o cenário idílico. “Aí, pensei: há pessoas que querem ter um Rembrandt ou um Monet… eu quero ter isto!”, relembra. Assim, Luís Cunha adquiriu uma propriedade nesse local, onde começou a passar as suas férias e a dedicar-se à caça. “Era uma existência quase paralela… Passava lá todas as férias e tempos livres, e não era passar por ali como quem vai ao Porto: para lá chegar, fazia uma viagem de uma hora de avião até Madrid, outra de 12 horas até Buenos Aires e mais seis ou sete horas de autocarro até La Vuelta del Pirata [Santa Fé]”.

Nos últimos anos, Luís Cunha tem ido ao Senegal para dedicar-se à caça. “Tenho lá um amigo francês, que conheci no tempo em que ia frequentemente à Argentina, e que tem um acampamento de caça”, indica, “e costumo ir também à África do Sul”. Uma vez que, dado o presente contexto pandémico, não tem tido a possibilidade de fazer estas viagens, Luís Cunha tem aproveitado para, semanalmente, fazer tiro ao prato na zona da Ota, num percurso que lhe permite estar sempre ao ar livre e sem contacto com ninguém, tendo apenas “uma sandes e uma mini” como companhia. “Tenho ido todas as semanas… Ida e volta são 320 quilómetros. Escolho sempre uma altura em que não está a chover, atiro cem pratos, como lá a minha sandes num parque e regresso. Em confinamento, poder fazer isto é extremamente importante e, assim, vou-me mantendo ativo”, esclarece. “Embora a caça seja a minha paixão, o tiro tornou-se importante, sobretudo este tipo de tiro, que não é repetitivo, em que é preciso pensar para que se possa perceber onde se erra e evoluir sistematicamente”.

Para manter-se ativo, Luís Cunha dedica-se ainda à leitura e, conforme referido inicialmente, à escrita. “Sempre gostei de escrever, sobretudo sem aquela limitação e ditadura de referências a que, na produção científica, estamos obrigados”, menciona. O livro Arrepanhia, a sua primeira obra literária, acabou por ganhar forma no início da atual pandemia, quando Luís Cunha se deparou com algum tempo livre e com muitos textos e reflexões, escritos ao longo dos anos. “Resolvi fazer uma arrepanhia de alguns desses textos, até porque os meus netos começaram a dizer que queriam lê-los em livro; por isso, digamos que esta é uma edição familiar”, observa.

A pandemia permitiu também que se dedicasse a atividades menos convencionais. “Com o confinamento e, por isso, com a visão limitada, pensei arranjar um drone para alargar os meus horizontes”, brinca. “A primeira vez que mexi no drone, deixei-o ir parar ao IPO [Instituto Português de Oncologia] e o meu filho teve de ir lá buscá-lo, mas, depois, comecei a aprender e aquilo diverte-me enormemente, subir até aos 150 metros ou andar a fugir de falcões que querem picar sobre o drone”, conta.

Ultimamente, e para brincar com o seu neto, Luís Cunha entrou no mundo da realidade virtual. “Das primeiras vezes, aquilo até assusta um pouco”, revela, “mas tem-me permitido jogar online com ele, jogos de tiros e de andarmos a fugir de determinados locais… Penso que a realidade virtual é mesmo algo com futuro em termos de ensino”, destaca.

Mas não é tudo. A estas atividades ainda se junta o ciclismo. “Uma das coisas que também faço é andar de bicicleta, agora elétrica. No último domingo, fiz 20 quilómetros... Faz-me sentir muito bem e, para a minha idade, não está nada mal”, graceja.


Estes profissionais não são heróis, são guardadores da esperança da humanidade.

Com uma visão crítica daquilo que o rodeia, para Luís Cunha a atual pandemia veio mostrar a importância da Ciência na vida de todos e aquilo que, com o financiamento necessário, é possível fazer. “É notável o tempo em que se produziu uma vacina e que se começou a utilizá-la, recorrendo a uma técnica completamente diferente e com resultados de eficácia que se tornam paradigmas para o futuro”, indica. Luís Cunha salienta também a notável prestação e a “resposta absolutamente brilhante” de todos aqueles que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS). “A capacidade de abnegação, de sacrifício, de improvisação dos profissionais envolvidos é algo que fica e que nos torna talvez melhores como homens. Estes profissionais não são heróis, são guardadores da esperança da humanidade”, enfatiza.

Luís Cunha considera, no entanto, que a postura adotada pelos meios de comunicação social para darem conta das notícias relacionadas com a pandemia não foi a mais adequada. “Parece-me que houve um desejo de apavorar as pessoas; com raríssimas exceções, acho que a imprensa e a televisão não cumpriram o seu papel como deviam”, denota. A esse aspeto negativo, junta-se outro: esta pandemia veio também mostrar as condições, por vezes deploráveis, em que as pessoas vivem nos lares. “Nos primeiros tempos, penso que, mais do que a epidemia, foi o próprio sistema que matou as pessoas que viviam nestes lares sem condições”, lamenta. Por isso, agora é extremamente necessário fazer com que a população idosa, ao fim de um longo confinamento, possa, finalmente, começar a sair dos lares. “É preciso estimulá-los o mais possível e rapidamente… Nem todos têm a sorte de terem netos que os puxam para a realidade virtual”, observa.

Depois de ler e de ouvir a descrição de alguns episódios da sua vida, nos quais é percetível a extrema dedicação aos seus diversos interesses e paixões, fica a curiosidade em saber que sonhos tem por concretizar. “Les vieux ne rêvent plus [Os velhos já não sonham], profetizou o Jacques Brel, não é?”, devolve como resposta. “Mas têm desejos”, assegura.

Os desejos de Luís Cunha são os de que o Serviço de Neurologia do CHUC mantenha a sua dinâmica, com os seus membros a evoluírem continuamente, e o de que a preocupação social persista, de forma a permitir aos jovens que possam sonhar. Pensando melhor, parece que sempre existe um sonho. “Talvez o meu sonho seja: que seja permitido aos jovens sonharem. Porque, assim, sei que o mundo vai evoluir”, finaliza.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Luís Cunha