Do curso de Medicina   

A partitura de uma vida feliz

A Engenharia Mecânica, dado o especial interesse pelos comboios, e a Agronomia, pelo facto de a sua avó paterna ter uma quinta na zona do Douro, ainda lhe ocuparam, ao de leve, o pensamento, aquando da escolha do curso superior. Mas a Medicina impôs-se. “Ser médico foi uma opção muito natural, já que a Medicina e a Urologia cedo entraram na minha vida, através do meu pai, médico urologista. A história é comum a muitos filhos de médicos, em que se junta a herança de um património de valores e a preservação de uma tradição que atravessa gerações”, esclarece. Cumpriu-se assim, como afirma, a célebre frase de Ortega y Gasset: “nós somos nós e a nossa circunstância”. Hoje, Alfredo Mota conta com um notável percurso de quatro décadas dedicadas à Urologia e à Transplantação Renal.

Nascido a 19 de março de 1946, em Coimbra, Alfredo Mota diz ter tido uma infância muito agradável, pontuada pelas habituais brincadeiras com as crianças da sua rua. “Vivia na rua dos Combatentes da Grande Guerra, mesmo abaixo do restaurante ‘A Taberna’. O Estádio Municipal [atual Estádio Cidade de Coimbra] e a Igreja de São José estavam ainda em construção, e eu ia com os meus amigos para aquela zona, hoje cheia de construções, mas que, naquela altura, tinha muito espaço livre onde podíamos brincar e jogar à bola”, conta.

Fez a primeira e a segunda classes numa escola pública que existia em frente a sua casa. A terceira e a quarta classes, bem como o primeiro e o segundo anos do Liceu (atuais 5º e 6º anos), fê-los frequentando aulas ministradas “pelas professoras Dona Mimi e Dona Manuela”, na Travessa dos Combatentes da Grande Guerra. Aí, fez a preparação para o exame do segundo ano, que realizou no Liceu D. João III (Escola Secundária José Falcão). “Fiz esse exame com boas notas, principalmente a Francês e a Matemática, porque ia bem preparado”, refere. No Liceu D. João III, fez os terceiro, quarto e quinto anos do Liceu (equivalentes aos atuais 7º, 8º e 9º anos). Foi no Colégio de São Pedro que Alfredo Mota completou os seus estudos liceais, até ingressar no curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC).

No decorrer do curso, Alfredo Mota considera que teve sempre o privilégio de ser acompanhado por “muito bons professores”, dos quais destaca aqueles que mais o marcaram, “pelas suas qualidades pedagógicas, humanas e científicas”: António Robalo Cordeiro, Bártolo do Vale Pereira, Fernando de Oliveira e Alexandre Linhares Furtado. Com efeito, se, a nível familiar, o pai de Alfredo Mota desempenhou um importante papel na escolha do seu percurso, dado que era médico urologista, a nível académico e profissional, Linhares Furtado, também urologista e pioneiro em Portugal no transplante de órgãos, foi seu mestre e patrono. “O Professor Linhares Furtado foi extraordinariamente inovador, dada a sua permanente inquietação intelectual e a sua enorme exigência científica, não apenas no que diz respeito aos transplantes, mas em muitos aspetos da Urologia”, destaca.

Do Curso de Medicina

Dos tempos do curso de Medicina, recorda ainda o bom ambiente académico, apesar de algumas tensões e discordâncias entre colegas, geradas pela crise estudantil de 1969, mas que admite não o terem afetado particularmente, uma vez que, de um modo geral, conseguiu sempre dar-se bem com todos. Na verdade, desses tempos existe apenas um aspeto que despoleta o arrependimento de Alfredo Mota, e que nada tem a ver com a Medicina. “Eu gostava muito de teatro, por isso, logo no primeiro ano do curso, inscrevi-me no CITAC [Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra], mas sem sucesso… não fui devidamente considerado!”, brinca.

No segundo ano do curso, ainda se inscreveu no Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), grupo que se dedicava a um “teatro mais clássico e onde havia uma disciplina mais rigorosa e um ambiente mais pesado”, conforme faz saber. “Não gostei muito e acabei por sair”, esclarece. Hoje, sente alguma mágoa por não ter tentado ingressar no Orfeon Académico de Coimbra. “Tinha – e tenho, graças a Deus – uma boa voz e um bom ouvido, e por isso tenho a ideia de que teria feito uma bela carreira no Orfeon”, lamenta.

O ecletismo de interesses de Alfredo Mota revela-se, aqui, no seu esplendor, já que, enquanto estudava Medicina e depois de uma breve incursão no teatro e de não ter procurado o Orfeon Académico de Coimbra, acabou por dedicar-se ao… futebol. “Eu gostava muito da Académica, sou sócio há 64 anos, desde 1957. Essa paixão, que se mantém, levou-me a ser dirigente da secção de futebol da Associação Académica de Coimbra [AAC], nas épocas de 1969/70/71, quando tivemos as melhores equipas da nossa história. Em 1969, fomos à final da Taça de Portugal com o Benfica, jogo esse que muitos ainda consideram como o maior comício político que se realizou no nosso país”, observa.


Havia a guerra do Ultramar e eu corria o risco de ser mobilizado para lá, como médico.

Em 1972, terminou o curso de Medicina na FMUC, depois de concluído o ano de prática clínica, sem o qual não era considerado licenciado. “Em 1973, fui Monitor de Urologia da FMUC, mas tive de interromper essa função porque, entre janeiro e abril de 1974, fui cumprir o serviço militar em Mafra, onde fiz o curso de cadetes. Havia a guerra do Ultramar e eu corria o risco de ser mobilizado para lá, como médico”, indica, “mas, por outro lado, os militares também queriam médicos especialistas e, por essa razão, davam-nos uma licença para que pudéssemos fazer a especialidade”.

Assim, Alfredo Mota informou-se das vagas disponíveis, sendo que o que lhe interessava era, como é sabido, a especialidade de Urologia. “Só havia vagas para Estomatologia e eu pedi uma licença para vir tirar essa especialidade, naturalmente com a esperança de conseguir mudar para Urologia. Foi-me concedida essa licença e, por isso, saí de Mafra a 5 de abril, 20 dias antes do 25 de abril de 1974”, declara.

A partir dessa data, tudo se modificou. No ano seguinte, em 1975, foi criado o Serviço Médico à Periferia, “obrigatório para todos os médicos antes de ingressarem na especialidade”. Alfredo Mota e os colegas de curso foram os seus pioneiros. “A nossa equipa foi para Santa Comba Dão, em 1975, e aí estivemos um ano, vivendo no hospital e fazendo consultas nas aldeias mais necessitadas”, conta. “Só quando regressámos a Coimbra, em 1976, fizemos o teste para ingresso na especialidade, tendo então optado pela Urologia, que, entretanto, me tinha sido autorizada pelo serviço militar”. Concluída a especialidade de Urologia, em 1979, Alfredo Mota ainda teve de completar o serviço militar como médico, durante 13 meses, no Hospital Militar de Coimbra, embora como clínico geral, já que não lhe foi dada a possibilidade de aí exercer como urologista.

Quando terminou a especialidade e o serviço médico no Hospital Militar de Coimbra, Linhares Furtado convidou-o para Assistente da FMUC. “Posteriormente, em 1981, abriu uma vaga para Assistente Hospitalar de Urologia, à qual concorri, passando, assim, a integrar os quadros do Serviço de Urologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra [HUC], onde fiz toda a minha carreira”, indica. Em 1988, Alfredo Mota fez o concurso, a nível nacional, para Assistente Graduado de Urologia e, em 1992, após concurso público, foi promovido a Chefe do Serviço de Urologia dos HUC. Em 2003, depois da jubilação de Linhares Furtado, foi nomeado diretor do Serviço de Urologia e Transplantação Renal do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), cargo que desempenhou até à sua aposentação, em 2016.

Do Curso de Medicina

Foi também em 2003 que Alfredo Mota concluiu o seu doutoramento na FMUC. “O doutoramento enriqueceu-me muito. A minha tese – ‘Factores de Prognóstico em Transplantação Renal. Análise Multifactorial em 800 Transplantações Renais de cadáver’ – só foi possível porque dispus de uma base de dados dos transplantes renais [TR] realizados no nosso Serviço, inteiramente concebida e trabalhada por mim, e que hoje ultrapassa já os 4000 TR, sendo, por isso, um valioso instrumento de análise e de trabalho”, enfatiza.

Entre 2003 e 2016, a par da direção do Serviço de Urologia e Transplantação Renal do CHUC, Alfredo Mota foi também professor da FMUC. “Gostei muito de dar aulas e sempre levei essa tarefa muito a sério, tendo inclusive conseguido que os médicos do Serviço, que não pertenciam aos quadros da FMUC, dessem também aulas práticas, o que permitia ter turmas relativamente pequenas” refere. “Assim, adotei o seguinte método: no início de cada aula prática, os cerca de 12 alunos de uma turma eram divididos em quatro grupos de três. Três iam para a Sala de Operações, três iam para a Consulta Externa, três iam para a Enfermaria e três iam para os Exames Complementares de Diagnóstico. Depois de uma hora e meia nessas atividades, os alunos reuniam-se todos e tinha lugar a parte final da aula, dada por mim ou pelo Assistente da cadeira, e na qual podíamos aprofundar um determinado tema ou esclarecer dúvidas relativas ao que tivessem visto antes”, explana.

Por seu turno, as suas aulas teóricas aconteciam “todas as quartas-feiras, às oito horas da manhã”. Alfredo Mota revela que tinha a “satisfação de ter a sala quase sempre cheia” e que, paralelamente ao ensino da matéria, gostava de realizar inquéritos aos alunos acerca de assuntos diversos e que os levassem à reflexão, como a razão pela qual tinham escolhido ingressar no curso de Medicina, o que pensavam sobre a ética médica, a relação médico-doente, a cirurgia, a eutanásia ou a comunicação em Medicina, entre outros assuntos.

Ao longo da sua vida, Alfredo Mota confessa ter tido vários momentos gratificantes. “Um deles foi ter sido o primeiro português a apresentar um trabalho no Congresso Americano de Transplantação”, afirma. E teve também “diversas honrarias”: em 2019, por exemplo, foi agraciado pela Ordem dos Médicos com a Medalha de Mérito pela sua atividade.

Em 2016, a 19 de outubro, foi homenageado pela FMUC, juntamente com Catarina Resende de Oliveira, António Diogo de Paiva e Carlos Sofia. No discurso que fez em nome dos quatro professores, Alfredo Mota salientou a enorme riqueza que viveram ao longo das suas carreiras, ao terem testemunhado os extraordinários progressos clínicos, científicos e tecnológicos da Medicina, de que muito beneficiaram os médicos, mas, principalmente, os doentes. E relembra algumas das declarações que proferiu nesse evento de homenagem. “Iniciámos nesta Escola na década de 60, e durante estes 50 anos, vivemos uma revolução nas Universidades, na Medicina, na Ciência e na Tecnologia. Alguns exemplos: na década de 60, havia 30 mil alunos universitários; em 2016, 360 mil. Em 70, quando terminámos o curso, éramos cerca de 8100 médicos; atualmente, rondamos os 40 mil. Quando nos licenciámos, não havia cassetes, nem vídeos, nem CD’s, nem DVD’s. Quando terminámos a especialidade, não havia calculadoras, nem computadores, nem telemóveis, nem internet. Só passámos a dispor de Ecografia, TAC e Ressonância Magnética a partir da década de 80. Vivemos, pois, os grandes progressos que a Medicina conheceu no século passado, com as revoluções molecular, tecnológica e informática, e que levou a avanços notáveis. Tudo foi tão rápido e espantoso que teremos que dar razão àquele professor de Harvard que, no início do curso de Medicina, dizia aos seus alunos: «Metade do que vos vou ensinar estará errado no final do vosso curso, só que eu não sei qual é essa metade». Assistimos e participámos na maior reforma de sempre no nosso país, que foi a criação do Serviço Nacional de Saúde [SNS], que teve um enorme impacto em todas as estruturas ligadas à Medicina e à Saúde: Faculdades, Institutos, Hospitais, Centros de Saúde”.


Não conseguimos tratar bem um doente se ele não acreditar em nós, se ele não tiver confiança em nós.

Todavia, o avanço tecnológico e, consequentemente, um maior acesso a informação e a conhecimento, sinais de progresso de uma sociedade, acabam, por vezes, por originar também alguns reveses, que, na prática médica, se têm vindo a refletir negativamente na relação entre médico e doente, à qual Alfredo Mota atribui singular importância. “Como dizia o Professor João Lobo Antunes, excelente pedagogo e autor de uma obra notável, um dos grandes inimigos dos médicos atualmente é a Internet, porque o doente já chega ao consultório com muita informação, que por vezes não está correta”, menciona.

Por isso, “saber conversar com o doente e incutir-lhe esperança”, ou seja, saber comunicar com o doente, assume-se como uma tarefa tão ou mais importante quanto tratar o doente. “Não conseguimos tratar bem um doente se ele não acreditar em nós, se ele não tiver confiança em nós. Porque, de facto, um dos aspetos fundamentais da prática clínica é, realmente, o doente estar perante um profissional em quem acredita e confia. É essa a base da arte médica: não esquecer que Medicina é Arte e Ciência”, salienta.

Alfredo Mota, que em 2010 publicou Coisas da Medicina, um livro sobre temas médicos escritos numa linguagem acessível a todos, nota que, em Portugal, ainda se publica pouco sobre Ciência e Medicina para públicos não especializados. “É um facto que hoje, graças, justamente, à Internet e ao ‘Doutor Google’, existe cada vez mais informação, embora muitas vezes avulsa e descontextualizada, mas, quando vou às livrarias, dirijo-me sempre à secção de Medicina para ver o que há de novo e, infelizmente, quase nunca encontro nada”, lamenta. “Há muita iliteracia médica. Os próprios médicos necessitam não só de estudar continuamente, mas ler muito para se cultivarem, pois, como dizia José de Letamendi, catedrático catalão de Anatomia, «O médico que só sabe de Medicina nem de Medicina sabe»”.

Do Curso de Medicina

Jubilado desde 2016, Alfredo Mota escreve crónicas para o semanário A Voz de Trás-os-Montes – atividade que desempenha já há cerca de 15 anos – e aproveita para se dedicar à leitura, um dos seus grandes interesses. “A leitura entrou cedo nos meus hábitos e de uma maneira curiosa. O meu pai era colega do Miguel Torga e, por isso, ia comprando a sua obra, que eu lia: os seus diários, principalmente, são uma grande fonte de ensinamento”, faz saber. Através da leitura de Miguel Torga, Alfredo Mota começou a interessar-se por outros autores da literatura portuguesa, como Eça de Queirós, Júlio Dinis e Camilo Castelo Branco, entre outros.

Mas não são apenas a escrita e a leitura que ocupam os seus tempos livres. A atividade física e a música fazem, igualmente, parte das suas rotinas diárias. “Ocupo o meu tempo de uma forma que penso ser muito sadia… hoje, já fiz 45 minutos de atividade física e, daqui a pouco, vou para o piano”, indica. Desengane-se, no entanto, quem pensa que tocar piano é um simples passatempo. Na verdade, Alfredo Mota dedica, diariamente, pelo menos uma hora a esta prática, e fá-lo desde a altura da sua jubilação. “Em 2016, inscrevi-me numas aulas de piano, aqui numa academia de música. Desde essa altura, tenho andado a aperfeiçoar os meus dotes de pianista… para tocar umas coisas que me deleitem e aos meus amigos!”, declara.

A forma sadia como diz ocupar o seu tempo acaba por revelar-se na sua forma de ser e de estar perante a vida. “Considero-me com sorte porque sou uma pessoa feliz, tenho uma excelente família e tive uns excelentes patronos: o meu pai, Ângelo Mota, o meu Mestre, Linhares Furtado e um terceiro que foi Miguel Torga, que me deu a honra de ser seu amigo e com quem tive o privilégio de conviver durante muitos anos, até à sua morte. Médico-escritor, com ele aprendi a olhar e a praticar a arte médica com mais subtileza e mais realismo, já que na ideia e na prática dos médicos-escritores, aquela assume outra grandeza pelo permanente apelo aos princípios hipocráticos, oslerianos e de outros heróis da Medicina. Estes três patronos e duas instituições, a FMUC e os HUC, constituíram o farol que me guiou e deixaram marca na minha vida. Sou também um homem de fé e, por isso, acho que sempre fui muito amparado, antes de mais, pelos meus pais e pela minha família, com certeza, mas acho que houve sempre uma mão acima de mim, que me orientou e que me ajudou”.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Alfredo Mota