Porque Portugal falhou
na Proteção Dos Animais?

Fora da Medicina


Introdução: Quem somos

A associação Grupo Gatos Urbanos nasceu como grupo informal, em 2009, perante a abundância de animais na rua, em estado de carência, num determinado perímetro, com o objetivo de resolver aquele problema específico através de programa CED (Capturar + Esterilizar + Devolver).

Posteriormente expandiu a sua área de intervenção, face ao número de pedidos, e constituiu-se como associação em 2013, alargando a sua atividade ao socorro de animais, resgate e adoção, mas mantendo sempre a primazia do controlo de natalidade, pelo programa CED, programa executado noutros países e introduzido em Portugal pela Associação Animais de Rua.

MELHORIA LEGISLATIVA /
CALAMIDADE NO TERRENO

Nos últimos anos registaram-se avanços legislativos importantes em Portugal, designadamente no Código Penal, que, por si mesmos, perspetivam um avanço civilizacional, evoluindo na “descoisificação” dos animais, ditos “de companhia”, e no alargamento do âmbito da sua proteção, atribuindo-lhes - ainda que timidamente - direitos próprios, como o direito de não ser maltratado.

Esta evolução surge da pressão da sociedade, que já não se conforma com o sofrimento gratuito dos animais. Mas a realidade nas ruas é a antítese desta evolução. Portugal falhou grosseiramente na proteção dos animais. O nosso país é conhecido pela abundância de animais nas ruas e toda a miséria que lhe está associada. E falamos apenas, aqui, dos animais ditos “de companhia”: cães e gatos.






CAUSA E CONSEQUÊNCIA

Portugal falhou na proteção animal porque não foi capaz de admitir ou compreender a causa principal do problema e, assim, não definiu nem implementou as medidas básicas de combate à causa para alterar a consequência. Em Portugal, durante décadas, a política para os animais de rua baseava-se em: “não alimentar”, “recolher” e “abater” os excedentes. Ou seja, dedicava-se apenas à consequência. Em duas décadas nada disto resultou, apesar destes métodos “radicais” e eticamente questionáveis.

Só é possível atingir um degrau de proteção animal em Portugal quando se baixar a curva populacional dos animais ditos de companhia, desencadeando um plano estratégico nacional de controlo de natalidade (esterilização).

Quando a população de animais é desta grandeza, extravasa todos os recursos possíveis, pelo que nas ruas sobram milhares de “excedentes”, parte dos quais enchem abrigos, canis e gatis, associações e particulares, e os restantes, que já não cabem em lado nenhum, ficam nas ruas a reproduzir-se, dando origem a enormes colónias de gatos ou matilhas de cães, num ciclo que se repete sistematicamente.

Os canis e gatis são e serão sempre fundamentais, para abrigar os abandonados, os que perderam seus donos, os que são vítimas de maus tratos. Mas não podem ser a única solução.


A ARITMÉTICA DA REPRODUÇÃO 

A aritmética da reprodução é imparável, pois é biológica, e essa é a causa principal da exponencial população de animais. As entidades competentes não planearam, muito menos executaram, um programa de controlo de natalidade a nível nacional. Isto é, não combateram a causa principal – a reprodução. A política de recolha praticada há anos, em reação a queixas avulsas, é mais fácil, mas não resulta. Numa imagem, isto é exatamente como tentar tirar água de um barco furado.

A EQUAÇÃO

A aritmética da reprodução é implacável. Eis a causa primeira: Nº de animais X velocidade reprodutiva. Apenas um casal de gatos ou de cães, num ano, dão origem a 12 animais. Em 2 anos, dão origem a 67 animais. Em 3 anos, dão origem a 376 animais. Em 4 anos, dão origem a 2.107 animais. Não se apresenta o resultado em 5 anos de vida (seriam em cerca de 11.000 mil filhotes), porque, em média, animais de rua vivem apenas 4 a 5 anos.

(Base de cálculo: 2 ciclos reprodutivos por ano e uma taxa de sobrevivência de 2.8 por ninhada. Considera-se a maturidade dos filhotes aos 6 meses, altura em que atingem a idade reprodutiva).




ENTIDADES RESPONSÁVEIS 

Embora exista um organismo do Estado, a DGAV – Direção-Geral de Alimentação e Veterinária, cuja competência é, entre outras, “saúde e proteção animal”, é incontornável constatar o total falhanço nesta área. Deixou-se à deriva uma superpopulação de animais “de companhia” a reproduzir-se nas ruas, quintais, etc., numa escala tal que não permite resposta mínima e que se agrava nos ciclos reprodutivos.

O número excessivo e constante expansão por reprodução é causa também da desvalorização dos animais, de hostilidades, e é responsável pela miséria animal - doenças, abandonos, negligência e maus tratos - que vemos nas ruas, em abrigos, em canis e também em associações, que, algumas, se tornam verdadeiros acumuladores de animais, proporcionando-lhes vidas indignas, como recentemente tivemos tristes exemplos. Numa espiral de consequências, quando mais animais existem, menos adotantes disponíveis, mais animais doentes, mal tratados, feridos, atropelados, negligenciados e abandonados.


ABATE / NÃO ABATE 

Ao longo dos anos, as entidades responsáveis apenas agiram minimamente na consequência, isto é: recolhendo avulsamente e abatendo. O controlo de natalidade destes animais deveria ter sido iniciado há vários anos e hoje teríamos realidades totalmente diferentes, à semelhança de outros países. Por isso falamos em falhanço.

Por mais instalações que se ampliem ou construam - abrigos, canis, gatis - nunca chegaram nem nunca chegarão. Os canis e gatis, habituados a “escoar os excedentes por “abate”, ficaram impedidos disso, com a lei que proíbe o abate de animais saudáveis por sobrelotação. Mas o abate só escamoteava a realidade. Durante anos milhares de animais eram recolhidos e abatidos em Portugal, e isso, e apesar disso, nunca resolveu o problema.

Cada animal recolhido para abate, num canil, custa ao Estado cerca de 45 a 50 euros. Milhões de euros foram gastos durantes anos e com resultado totalmente ineficaz. Quando a proibição do abate de animais por sobrelotação foi decretada, as entidades competentes, ficaram em silêncio, quando deviam ter agido de imediato para esterilizar massivamente. Se a situação já era descontrolada, agravou-se. Claro que, algum tempo depois, começaram a recomendar o regresso ao abate, em defesa da “saúde pública”.

JUSTIFICAÇÕES

MAIS ABANDONOS? 

Recentemente, face às crescentes queixas de excesso de animais nas ruas, as entidades responsáveis argumentam com um aumento de abandonos e propuseram-se fazer “um estudo” sobre a causa. Nada mais falso. Não há mais abandonos do que sempre houve. As populações nas ruas reproduzem-se, causando matilhas e colónias de gatos de grande dimensão. No essencial, não são abandonados. São descendentes. A grande maioria dos animais abandonados são justamente ninhadas indesejadas, para além dos animais doentes. 

MAIS CANIS? 

Outro dos argumentos é a necessidade de ampliar ou construir mais canis/gatis. Mas nem um arranha-céus por município chegará. A solução não é aumentar os "depósitos”, é diminuir o “caudal” de animais. Claro que os canis estão cheios, tal como as associações estão cheias, mas é falso que os canis estejam cheios porque já não se pode abater. Factualmente, todos os anos, mesmo quando se podia abater por sobrelotação, todos os canis estavam cheios. Escoavam, abatendo. Mas como a causa não foi combatida, voltavam a encher no ano seguinte.





ESTRATÉGIA EFICAZ 
CONTROLO DE NATALIDADE DE ANIMAIS 

Em Portugal, quem teve a iniciativa e começou a esterilizar há vários anos, no terreno, foram as associações e grupos de voluntários, esterilizando animais de rua, através do programa CED (Capturar + Esterilizar + Devolver). Fizeram-no nos perímetros em que atuavam, sem apoios financeiros e quase clandestinamente, pois as entidades responsáveis só muito recentemente começaram a admitir o CED.

Este programa parte de um princípio óbvio: os animais JÁ EXISTEM e JÁ ESTÃO NAS RUAS e não é possível retirá-los todos. Cabe-nos a escolha de os deixar multiplicar-se ou não. E considera um aspeto essencial: há animais na rua que não são domésticos, isto é, não têm potencial de adoção. Não são “errantes,” como a lei os classifica, são silvestres, ou assilvestrados. Para estes animais a única solução humana é o CED.

O CED tem efeitos de médio ou longo prazo, mas diminui de facto o número de animais nas ruas, porque não se reproduzem. Este trabalho das associações contrasta com a inércia das entidades que tinham o dever de o fazer, a bem da saúde pública, que proclamam.

O QUE FAZER 
PLANO DE CONTINGÊNCIA 

A causa está mais que identificada. A aritmética da reprodução é exponencial, não se compadece com inércias, nem com gigantes depósitos cheios de animais que ninguém quer, atrás das grades, à espera de uma adoção que dificilmente chegará. É isto que queremos? Mas é a isto que chegámos. 

COMO FAZER

1


Levantamento


Levantamento do número de animais “de companhia” em cada município, com especial foco para os animais de rua, com acesso à rua e de donos carenciados. É totalmente desconhecido o número de animais em Portugal.

2


Planificar


Planificar programas CED, para animais de rua, e de esterilização, para animais domésticos, em todo o território, envolvendo os municípios e freguesias, associações, grupos e protetores, pois são estes que conhecem os animais e lidam com eles.

3


Registo


Criar uma Base de Dados nacional de registo dos animais que entram nos canis e associações e seu destino.

4


Executar

Executar a esterilização dos animais de rua, município a município, freguesia a freguesia, incluindo animais de quintal e de donos carenciados, numa taxa mínima de 80% por grupo. A execução da esterilização deve ser feita numa linha temporal curta.

5


Diagnóstico

Fazer novo diagnóstico dos animais e repetir o programa até atingir => 80%.

6


Monitorização

Criar mecanismos de monitorização e acompanhamento.

7


Avaliação

Avaliação de desempenho.





CONCLUINDO

A abundância de animais nas ruas (cães e gatos) são o espelho do falhanço do nosso país. Os animais que andam na rua aos milhares não são "os abandonados". A grande maioria são nascidos na rua. Há muito trabalho a fazer no terreno para evitar um recuo civilizacional, que passa por esterilizar os animais de companhia em todo o território. A situação só não é mais grave ainda graças às inúmeras associações de voluntários de norte a sul do país que esterilizam, socorrem, acolhem.

As entidades oficiais têm o dever de se dedicar a mudar a realidade. Houve uma incapacidade incompreensível e inaceitável, face ao trabalho feito noutros países, onde um cenário destes causaria a maior vergonha. ESTERILIZAR para achatar e inverter a curva populacional É A ÚNICA VIA HUMANA.

Na última década gastámos demasiado tempo e dinheiro a recolher, a matar animais saudáveis e a responder a queixas. Mas a situação dos animais em Portugal não é uma fatalidade. Tem resolução eficaz e humana.

A POLÉMICA DA TUTELA DOS
ANIMAIS DE COMPANHIA 

Quando o Governo se prepara para mudar a tutela dos animais de companhia de Ministério, circula uma carta aberta subscrita por 44 entidades https://www.publico.pt/2020/12/28/politica/noticia/carta-aberta-transferencia-tutela-animais-companhia-ambiente-1944291 -, contra essa mudança.

Essa carta aberta provocou a recente reação de mais de 100 associações zoófilas  https://www.publico.pt/2021/01/06/p3/noticia/associacoes-zoofilas-pedem-mudanca-tutela-animais-companhia-1945301?fbclid=IwAR07foeBHMOXk6RpwG2TeUo9pz7fI-rDHghMOS65KaxE2hY77RPwnJa_RBg


Perguntamos nós

Porque é que esses “técnicos e especialistas” não escreveram cartas abertas perante a situação dramática da sobrepopulação de animais nas ruas? Nem quando se abatiam 100.000 animais por ano nos canis? E quando se gastavam milhões nessa política de recolha e abate?

Quem pode defender a permanência na tutela do mesmo organismo que não conseguiu, em mais de uma década, inverter a curva populacional dos animais ditos errantes, pelo contrário, a deixou agravar-se? A quem se escreve para assacar responsabilidades pelo estado de calamidade a que se chegou nesta matéria?

Tivesse havido a mais ténue avaliação de desempenho nesta matéria, e a mudança de tutela já teria ocorrido há vários anos. Desejamos que a mudança de tutela se faça rapidamente, a bem dos animais, da civilidade e da saúde pública. Seja como vier a ser, certo é que pior é impossível. Quem ficar com a tutela da proteção animal vai ter que fazer tudo do ponto zero.

Associação Grupo Gatos Urbanos
Cristina Paula Martinho Leite Da Silva 
Presidente da Direção