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Filipe Froes

Tem sido presença assídua nos meios de comunicação social para explicar, de forma simples e assertiva, assuntos relacionados com o novo coronavírus. Afinal, Filipe Froes assume que a comunicação e o conhecimento são as melhores armas para lidarmos com a atual pandemia.

Nota: esta entrevista foi realizada no dia 13 de janeiro.

Atravessamos uma fase particularmente complicada da pandemia em Portugal.
O que pode explicar este aumento drástico do número de novas infeções e de mortes?

A situação que vivemos é uma situação de catástrofe, nomeadamente a nível hospitalar. O que justifica esta situação é a conjugação de vários fatores, como a de uma intensa atividade viral com frio extremo. O frio, que impede o correto arejamento dos locais, é determinante no aumento da sobrevida do vírus e na diminuição da radiação ultravioleta, que o elimina.

Mas existem outros fatores que justificam esta situação, como o acumular de todo um conjunto de decisões e de medidas tomadas que, provavelmente, não foram devidamente fundamentadas, monitorizadas e avaliadas. Diria até que esta situação que vemos agora começou talvez em agosto.

Nós desperdiçámos o mês de agosto: numa entrevista que dei à SIC Notícias, no início de setembro, disse exatamente esta frase. Fomos partindo, sucessivamente, de patamares mais elevados para novos casos. O que fomos fazendo, nos últimos meses, foi normalizar a anormalidade e banalizar o mal. Nunca tivemos uma capacidade franca de avaliar corretamente tudo o que estávamos a fazer, nem de integrar a informação do terreno com a informação científica, fundamentando e auditando em tempo útil as nossas decisões.

É evidente que as medidas tomadas perante as festividades do Natal tiveram um impacto muito grande neste aumento de novos casos. O problema não foi tomar as decisões que foram tomadas no Natal. O problema é que essas decisões foram tomadas com base num nível de atividade do vírus muito elevado, que anteriormente foi usado para fundamentar medidas mais restritivas. Para o Natal, não foi valorizado o facto de já termos entrado em maior restrição anteriormente face ao mesmo número de casos.

Tomámos essa decisão e não tivemos capacidade de implementar os meios necessários para monitorizar o seu impacto nem para fiscalizar a sua monitorização. Só quando chegou esta nova onda de casos é que nos apercebemos de que a situação era muito grave e, ainda assim, demorámos, mais uma vez, vários dias para reagir.

Resumindo, tomámos uma decisão arriscada na altura do Natal, não monitorizámos o impacto da nossa decisão, fomos apanhados de surpresa com o aumento de novos casos e atrasámo-nos, novamente, na correção da decisão tomada. Andamos sempre atrás dos acontecimentos, provavelmente desde o Verão.

Falou da gestão da pandemia, nomeadamente por parte dos órgãos de decisão. Perguntava-lhe agora pelo comportamento da população. Como avalia o comportamento dos portugueses, no que diz respeito ao cumprimento das medidas de prevenção e de segurança, nestes dois momentos distintos da pandemia, ou seja, na sua fase inicial e mais recentemente, perante a segunda e a terceira vagas?

Para explicar a adesão da população a estes dois momentos, há dois fatores diferentes. Na primeira onda, há um fator muito grande de adesão, de cumprimento e de restrição baseado no medo, na ignorância, no desconhecido e alicerçado nas imagens de caos que vinham dos serviços hospitalares de Espanha e de Itália. Nesta altura, as pessoas cumpriram as medidas preventivas por uma questão de prudência e de autodefesa. Agora, vivemos uma situação diferente: já normalizámos a pandemia e estamos numa situação vulgarmente denominada de fadiga pandémica.

A comunicação que dirigimos às pessoas tem de ser adaptada a estas diferentes fases. Se, numa primeira fase, o medo é dominante e devemos ter uma atitude mais pedagógica e que esclareça as dúvidas, contribuindo para que as pessoas percebam o que devem ou não fazer, numa situação de fadiga pandémica temos de continuar a explicar a importância do comportamento individual na própria proteção, mas também na proteção de todos.
Numa pandemia, quando me defendo adoto medidas de prevenção e de controlo, mas não me protejo apenas a mim: estou a proteger os outros também. Paralelamente, temos de ter um discurso muito mais coerente, transparente, uniforme e que esclareça que, mesmo havendo saturação pandémica, o pior que pode acontecer é deixar de tomar medidas preventivas, criando com isso situações mais graves que, por sua vez, vão ter muito mais impacto nas vidas das pessoas.

Temos de envolver as pessoas nesta comunicação, adaptando o discurso ao fator que as move. No início da pandemia, sendo o medo dominante, a nossa comunicação teve um intuito tranquilizador. Agora, devemos ter uma linguagem coerente, clara, transparente e uniforme, para que possamos explicar às pessoas a importância das medidas que devem continuar a adotar e para que percebam que a saturação é a maior aliada da propagação viral.

Mas, na sua opinião, essa comunicação tem falhado, quer, por exemplo, por parte do Governo ou até através da cobertura mediática que é dada à COVID-19?
Ou seja, há aqui algo que é preciso melhorar para que essa comunicação com a sociedade seja mais eficaz?

Indiscutivelmente. Uma das lições que nós aprendemos com esta pandemia é a importância da comunicação. Acho que esta necessidade de uma melhor comunicação é transversal, não só ao Governo ou às instituições, mas a todos nós. Certamente que uma das coisas que vamos todos ter de melhorar é saber como comunicar de uma forma mais assertiva e adequada às circunstâncias do momento e às características do destinatário.

Acho, no entanto, que a cobertura feita pelos órgãos de comunicação social relativamente à pandemia foi, na sua globalidade, positiva. Tenho assistido a uma evolução muito positiva na capacidade de análise, compreensão e esclarecimento feita por estes órgãos. Possivelmente, há um excesso de comentadores que beneficiam de um tempo de antena que não é utilizado adequadamente pelos organismos oficiais. E, muitas vezes, pelo facto de estes comentadores não terem uma comunicação coerente entre si, criam-se mensagens dissonantes, que fazem com que as pessoas não percebam qual a melhor forma de atuação.

É coordenador de uma Unidade de Cuidados Intensivos…

‘Não-covid’. O Hospital [Hospital Pulido Valente - Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte] tem sectores ‘Covid’, que acompanho, mas coordeno uma Unidade ‘Não-covid’.

Ainda assim, e num momento em que sabemos que são vários os hospitais no limite máximo da sua capacidade, que cenário se vive no seu hospital?

Está a ocupar-se o espaço da maioria das Unidades e dos Serviços com doentes covid. As Unidades que ainda mantêm a atividade não-covid são poucas e têm de aumentar a sua capacidade: foi o que aconteceu com a minha Unidade.

Temos os mesmos recursos técnicos e humanos para cumprir praticamente o dobro da capacidade assistencial habitual. Ou seja, temos o mesmo número de recursos para fazer o dobro. O que é que isto significa? Significa que temos menos tempo para vermos os doentes e para avaliarmos a sua situação, ou seja, temos uma qualidade assistencial pior, com muito menos capacidade de resposta. Conseguimos fazer o nosso trabalho, claro que sim, mas à custa do nosso sacrifício pessoal, como é evidente, e à custa de uma total ausência de vida pessoal.
Filipe Froes

Ultimamente, ouvimos falar muito acerca das novas variantes do vírus. O que já se sabe sobre estas variantes? Podem eventualmente afetar a eficácia da vacina ou dos testes?

Como dizia, temos registado um aumento da atividade hospitalar. Esse aumento está, provavelmente, relacionado com o afrouxamento das medidas de prevenção adotadas no Natal, mas também poderá estar relacionado com o aparecimento de uma nova variante.

Não temos ainda capacidade de avaliar o impacto desta nova variante, que é a variante B117 [identificada inicialmente no Reino Unido, no mês de setembro], na nova situação epidemiológica em Portugal. E, perante esta ameaça, deveríamos ter tido logo capacidade de avaliar o seu impacto. Andámos aleatoriamente à procura da variante em Portugal e lá a descobrimos, primeiro na Madeira e depois também em Portugal Continental. A dúvida não era se esta variante chegava ou não a Portugal, a dúvida era quando é que nós a iríamos detetar em Portugal.

Esta variante que agora mais preocupa tem, a meu ver, três características fundamentais. Primeiro, em termos de doença, significa uma maior taxa de ataque e transmissibilidade, embora, aparentemente, sem aumento da gravidade. Isto quer dizer que um doente tem capacidade de transmitir o vírus a mais doentes.

A segunda característica diz respeito à sua incidência em determinados grupos populacionais. Esta nova variante poderá estar associada a uma maior transmissibilidade nos grupos pediátricos. Porque é que isto é importante? Porque as crianças podem ser importantes vetores de transmissão da doença na comunidade, nomeadamente aos seus avós, mesmo sem manifestarem formas graves de doença.

Antes desta variante, nós sabíamos que o impacto das crianças nas cadeias de transmissão era reduzido. E isso permitia, por exemplo, manter alguma atividade escolar presencial. Se nós temos agora uma variante que muda estas regras do jogo, temos de avaliar o seu impacto na transmissibilidade entre crianças e na transmissibilidade a outros subgrupos mais vulneráveis.

Ou seja, quando nós, em confinamento, queremos saber se devemos manter as escolas abertas ou fechadas, devemos fundamentar essa decisão precisamente com o impacto da doença nos grupos etários mais jovens e na sua transmissibilidade à comunidade. É assim que se fundamentam as decisões.

A terceira característica diz respeito ao impacto da nova variante, nomeadamente em algum tipo de mutações na concordância antigénica da vacina e a sua consequente eficácia. E isto é extremamente problemático. Se tivermos uma variante que tem um conjunto de mutações na glicoproteína-alvo que utilizamos para fazer vacinas, de um momento para o outro podemos ter uma vacina ótima que deixa de ser eficaz para a variante que está em circulação.

Sabemos que os dados preliminares apontam para que as vacinas disponíveis ainda mantenham a eficácia contra esta variante. Mas esta variante já é diferente da constituição da glicoproteína da vacina. Se sobre esta variante se forem acumulando mais mutações, corremos o risco de, daqui a alguns meses, existir já discordância antigénica. Mais uma razão para termos todos de evitar o agravamento e o alastramento da situação pandémica. 



Este novo confinamento geral parece-lhe suficiente neste momento para travar o aumento de novos casos, ou deve ser complementado com outras medidas, como um maior recurso à testagem? 

A meu ver, estamos a tomar decisões com pouco nível de fundamentação e com muitas incertezas e incógnitas, nomeadamente quanto ao encerramento escolar. Não tenho a menor dúvida que, nas crianças com idade autónoma para ficarem em casa, o que, provavelmente, ocorre a partir dos 12 anos, o ensino deve ser não presencial. A dúvida põe-se nas crianças mais jovens. Perante a situação de catástrofe atual, eu encerraria todas as escolas, inclusive as creches e as escolas primárias.

Qual é o objetivo do confinamento? O objetivo imediato tem de ser a salvaguarda do Serviço Nacional de Saúde (SNS), esmagando com sustentabilidade este nível elevadíssimo de transmissão na comunidade. Nós não podemos ter as desvantagens do confinamento, que são inúmeras do ponto de vista social e económico, sem ter todas as vantagens. O pior que nos pode acontecer é ter meio confinamento. Ou seja, termos as desvantagens e não termos todas as vantagens.

Estamos numa situação que necessita de uma intervenção urgente para quebrar a transmissão na comunidade. E eu tenho algumas dúvidas sobre o impacto do vírus nos grupos mais jovens, por isso, seria mais radical quanto às medidas adotadas. Se nós não conseguirmos quebrar este ciclo, vamos andar continuadamente nesta situação em que nem abrimos, nem fechamos, nem temos vantagens, nem temos desvantagens.

Eu encerraria agora as escolas. Se me dissessem depois, do ponto de vista laboratorial, que a transmissão desta nova variante entre crianças é pequena, as escolas poderiam voltar então a abrir mais rapidamente. Mas associaria esta abertura a uma política de rastreio.

Confinar não é só fechar. É criar todo um conjunto de condições que garantam a eficácia do confinamento. Isto significa, por exemplo, aumentar a capacidade de testagem em tempo útil, uma política mais abrangente de rastreios e não pode haver atrasos na elaboração dos inquéritos epidemiológicos. Temos de partir para um confinamento com a capacidade de manter a investigação epidemiológica sempre atualizada, que nos permita monitorizar as informações - onde que é as pessoas contraíram a infeção e a quem a transmitiram, por exemplo - para rapidamente intervirmos.

E, em termos de resposta hospitalar, temos de ter uma coordenação total entre o setor público e o setor privado. Ninguém pode ser prejudicado. Não basta confinar. Temos meios para fazer os inquéritos epidemiológicos? Temos meios para fazer uma gestão coordenada de camas e assegurar resposta para todos os doentes? Temos meios para ir monitorizando a eficácia do confinamento? Quais são os objetivos durante o confinamento? É reduzir 20 por cento dos casos na primeira semana? Tudo isto tem de ser pensado. E, quando voltarmos a abrir todos os setores de atividade, temos de fazê-lo com rastreios, preparando um desconfinamento de forma faseada, em segurança e adaptado ao nível de atividade das diferentes regiões.


No que diz respeito às sequelas que a COVID-19 pode deixar, o que é que já se sabe em concreto?

Já se sabe tanta coisa que, inclusivamente, até já existem novos termos clínicos e novas doenças clínicas para designar essas sequelas. Começou com um termo que é a ‘long COVID’, ou seja, a ‘COVID longa’, para agrupar todas as pessoas que tinham um período de recuperação e de queixas maior do que o habitual.

Agora, por uma questão de sistematização e de intervenção, já temos uma proposta de nomenclatura que pretende uniformizar a intervenção de maneira a que possamos ter maior capacidade de correção.

Temos uma doença chamada ‘COVID aguda’, que é a que as pessoas têm habitualmente, apresentando um quadro clínico com queixas e sintomas com duração até quatro semanas.

Depois, já numa subdivisão da ‘long COVID’, temos a ‘COVID sintomática persistente’, quando os doentes mantêm alguns sintomas depois de quatro e até 12 semanas do diagnóstico, e temos a ‘síndrome pós-COVID’, que é a persistência de sinais e de sintomas por mais de 12 semanas, na ausência de outra causa para justificar essa sintomatologia.


E de que sintomas estamos a falar? Continua a ser a dificuldade respiratória,
a tosse seca?

Sabemos que as queixas persistentes são mais frequentes nos doentes com formas mais graves da doença, do género feminino, com idades mais avançadas e com maior número de sinais e sintomas quando a doença se manifesta. Estima-se que pelo menos 20 por cento das pessoas hospitalizadas vão ter persistência de sinais e sintomas por mais de quatro semanas.

Quanto às manifestações mais habituais, eu diria que se trata de um conjunto de queixas de diferentes ordens. Começando pelo aparelho respiratório, as queixas mais habituais, na minha consulta, são o cansaço, a falta de força e a tosse. Depois temos outras manifestações, nomeadamente palpitações, taquicardia, dores no corpo, fadiga, cefaleias, diarreia, incapacidade de concentração, perda de memória e de fluidez do discurso, alterações do sono, crises de pânico, crises de ansiedade e persistência de alterações, quer quantitativas, quer qualitativas, do olfato e do paladar.

Mas o que noto nestes doentes que tenho visto, e são já bastantes, posso sintetizar numa palavra: fragilidade. As pessoas transmitem-me que se sentem mais frágeis, menos capazes de fazer o que antes faziam e com medo de terem outra doença que as deixe ainda mais fragilizadas.



Numa entrevista que deu precisamente no dia em que foi declarada a pandemia, a 11 de março de 2020 [Grande Entrevista, RTP], afirmou que este é um momento extraordinário em termos de aprendizagem. Em jeito de reflexão, perguntava-lhe que lições tem a retirar destes tempos tão estranhos que estamos todos a viver?

Eu diria que só aprendemos se tivermos capacidade e se quisermos aprender. Essa foi uma das lições que tirei. Vimos, durante esta pandemia, que houve muitas pessoas que se recusaram a aprender, que se recusaram a aceitar que o seu próprio conhecimento pode ter limitações.

O que a pandemia me ensinou foi, indiscutivelmente, a perceber que o conhecimento é a maior arma que nós temos para lidar com estas situações, mas que esse conhecimento passa por uma predisposição individual de nos questionarmos, sempre, mesmo quando temos certezas. Se aqui estamos neste momento da pandemia, apesar desta situação dramática que vivemos, é devido ao conhecimento, que nos trouxe até aqui. Sem conhecimento, estaríamos mil vezes pior.

Aprendi também o quão importante é um Serviço Nacional de Saúde (SNS): digo serviço, e não sistema. Se dúvidas houvesse acerca dos seus profissionais, que são a principal força deste Serviço, esta pandemia dissipou-as. Toda a resposta qualitativa e quantitativa que fez a diferença foi dada pelo SNS. E foram os seus profissionais, com elevado espírito de sacrifício e de missão, que conseguiram minimizar o impacto desta pandemia na comunidade portuguesa. Que daqui retiremos uma importante ilação: saibamos perceber o alcance do SNS, para que, no fim da pandemia, o SNS não seja mais uma das suas vítimas.

Esta foi uma pandemia anunciada, só não sabíamos quando chegaria. A meu ver, todo o mundo e a sociedade que fomos construindo conduziram-nos para esta situação, na medida em que fomos, cada vez mais, destruindo o mundo em que vivemos, nomeadamente através da destruição do clima, dos habitats naturais e da degradação das condições das espécies que partilham esta ‘casa’ comum connosco.

Esta pandemia deve alterar-nos para a verdadeira pandemia que se aproxima de uma forma mais silenciosa: a das alterações climáticas, que põe a vida de todos nós em jogo, de uma forma, provavelmente, irreversível. Se posso terminar com um conselho, para quem tem dúvidas, recomendo o documentário do Sir David Attenborough, ‘Uma Vida no Nosso Planeta’. Eu já vi e é um filme espetacular e esclarecedor.

por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Filipe Froes


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