“Foi uma vida cheia”. A afirmação é de João Patrício, Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), antigo diretor dos Serviços de Cirurgia I e II e do Laboratório de Experimentação Cirúrgica dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC). Os momentos e as experiências de vida por si relatados atestam a veracidade desta declaração, mas também confirmam que a sua vida não só foi, como continua a ser, uma vida cheia, dedicada às atividades cirúrgica e pedagógica.
Nasceu a 9 de março de 1936, em Mação, no distrito de Santarém. Com dez irmãos, não é, por isso, de estranhar que refira que as suas memórias da infância em família sejam inúmeras. Dessa altura da sua vida, destaca os valores e os princípios transmitidos pelos pais, que “sempre lembraram aos filhos deveres comportamentais como o de olhar para o nosso percurso tendo como objetivo construir o futuro”, salienta.
Recordar a sua infância aviva também memórias de realidades bem distintas das de hoje, como a do isolamento em que algumas regiões do País se encontravam no segundo quartel do século passado. “Onde vivia, não passava nenhuma estrada alcatroada, as duas que existiam estavam, uma a Norte, e a outra bem a Sul, já na margem esquerda do rio Tejo”, relembra.
“Os acessos às vilas, aldeias ou povoados dispersos ou aglomerados eram concedidos por estradas em macadame, de terra batida, caminhos cujo acesso só consentiam carros de tração animal ou que só eram transitáveis a pé ou ao jeito do cavaleiro”, destaca.
João Patrício recorda-se ainda de que, nessa altura, a distribuição da eletricidade era limitada ao período entre o anoitecer e a meia-noite. “A estas dificuldades juntaram-se outras, determinadas pela Segunda Guerra Mundial, em que a situação social rasava a pobreza e impunha restrições... lembro-me de esperar em filas com senhas que autorizavam a compra de bens alimentares”, conta.
Até ao 5º ano (atual 9º ano), frequentou o ensino doméstico, em Mação. Depois, já em Coimbra, ingressou no Liceu D. João III (Escola Secundária José Falcão), onde prosseguiu os seus estudos até entrar em Medicina na FMUC, em 1954, curso que terminou em 1961. Quanto à escolha de Medicina, João Patrício assume que a mesma teve uma forte influência familiar, dado que o seu pai era médico e subdelegado de Saúde.
“Estudar em Coimbra era excelente”, confessa ao relembrar esses tempos, revelando também que, enquanto estudante universitário, usufruiu, não só do “convívio com estudantes de outras faculdades, como também da grande influência da FMUC e do Hospital e de atividades extracurriculares como o Teatro Académico, da Universidade de Coimbra”.
Por isso, são muitos os nomes dos professores que diz terem-no marcado enquanto estudante universitário de Medicina. “Foram meus pedagogos os então Assistentes da FMUC, o Doutor Rodrigues Branco, o Doutor Norberto Canha, o Doutor Henrique Ruas e o Doutor Malaquias, entre outros. E não me esqueço da personalidade do Professor Henrique de Oliveira, um verdadeiro pedagogo, nem do Professor Renato Trincão, do Professor Vaz Serra, do Professor Gouveia Monteiro e do Professor Luís Raposo, sem prejuízo de estar a pecar por omissão”, enfatiza, destacando a “memória do Senhor Professor Luís José Raposo”, personalidade que acompanhou no decorrer de quase três décadas e de quem usufruiu, diretamente, “do seu ensino e da sua direção”.
Do vasto leque de professores que o marcaram, destaca ainda o “Professor Paulo Quintela, da Faculdade de Letras e diretor do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC)”, que declara ter tido uma grande influência na sua formação cultural. João Patrício afirma também ter tido especial importância para si a frequência do Centro Académico de Democracia Cristã (CADC), no que diz respeito às suas formações religiosa e espiritual, nomeadamente através da convivência com o padre Póvoa dos Reis, “sacerdote e botânico distinto, pedagogo e humanista”, conforme refere.
Concluído o curso de Medicina, João Patrício foi mobilizado para cumprir o serviço militar em Angola, onde permaneceu entre 1962 e 1964, inicialmente em Nambuangongo e Zala, território de conflitos armados, e, tempos depois, na zona de Kavungo/Cazonbo, que afirma relembrar-lhe “cenas como as expostas no filme ‘África Minha’”.
Já depois dessa experiência vivida em Angola, em 1968 “o Professor Veiga Simão, então Reitor dos Estudos Gerais em Lourenço Marques”, procurou-o, em Coimbra, propondo-lhe a “transferência e ser investido no cargo de assistente do Professor Giesteira de Almeida, personalidade muito conceituada na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, assim como no âmbito cirúrgico e universitário português”, salienta. Quanto à experiência adquirida, desta vez em Moçambique, onde esteve também durante dois anos, João Patrício menciona que esta foi “muito rica, tanto em termos de trabalho, como de construção pessoal, e vivida com grande entusiasmo”.
Em 1970, João Patrício regressou a Coimbra, onde deu continuidade às suas carreiras clínica e académica, nos HUC e na FMUC. Até que, por volta de 1974 e “por sugestão dos Professores Vaz Serra e Luís José Raposo”, foi-lhe conferida uma bolsa pelo Instituto de Alta Cultura para estudar em Paris.
Também na cidade francesa a experiência adquirida foi vasta. No Hospital Henri Mondor, frequentou “o Serviço de Cirurgia, dirigido pelo Professor André Germain, e o Centro de Investigação Cirúrgica, da direção do Professor J.P. Cachera”. Integrado na “equipa de microcirurgia do Professor Alain Gilbert”, colaborou em numerosas intervenções em diversos hospitais e clínicas. “Na ‘Escola de Cirurgia dos Hospitais de Paris’, que frequentei, proferi pela primeira vez uma lição: ‘Microcirurgia Digestiva Experimental e Clínica’”, destaca. Desde então, e até 2019, João Patrício colaborou no Curso de Microcirurgia lecionado nessa instituição.
Em 1977, “requeri ser admitido a provas no âmbito da cirurgia para atingir o grau de ‘Maître de Conférence Agrégé des Universités’”, explica. Este ato teve lugar “no ‘Centre Hospitalo-Universitaire, do Hôpital Saint-Antoine, em Paris, sendo o júri da ‘Commission National Hopitalo-Universitaire de Chirurgie Generale’ presidido pelo Professor Louis Dutre. Foi relator o Professor Patel e intervieram como arguentes na discussão dos trabalhos publicados e do ‘Curriculum Vitae’, além dos elementos que já mencionei, os Professores J. Loygue. Edelman, A. Germain e M. Gillet”, recorda, indicando, igualmente, que lhe foi concedido o título de ‘Chirurgien Agrégé à Tître Étranger’.
Ainda em 1977, João Patrício regressou a Coimbra, onde retomou os seus percursos clínico e académico e iniciou a “prática de Microcirurgia Experimental e Clínica no âmbito da cirurgia geral”, da qual foi um dos pioneiros a nível nacional. Em 1984, doutorou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra e, em 1988, aceitou o “convite do Professor Norberto Canha, Presidente do Conselho de Administração dos HUC, para criar o Laboratório de Investigação Experimental”. João Patrício assumiu ainda a direção do Serviço de Cirurgia II, até 1995, e do Serviço de Cirurgia, entre 1995 e 2006.
Mas esta “vida cheia” não se fica por aqui. João Patrício é membro cofundador da Sociedade Portuguesa de Cirurgia, que presidiu no biénio 1989-1990, membro do ‘Groupe pour l’Avancement de la Microchirurgie’ (GAM), do qual foi presidente também no biénio 1989-1990, integrou o grupo das ‘Consulting Editions’ da Revista Microsurgery em 1993, é membro da European Federation of Societies for Microsurgery, da qual foi presidente entre 1999 e 2000 e é ainda membro associado da Académie National de Chirurgie (Paris).
Sobre a gestão do seu vasto percurso, assegura que foi fácil fazê-la, e que isso se deve ao facto de sempre ter feito aquilo de que gostava realmente. “A minha motivação era muita… tinha aquela força interior que nos mobiliza a fazermos aquilo que queremos”, adianta.
Em 2006, João Patrício jubilou-se e, desde essa altura, tem-se dedicado sobretudo à elaboração de livros. E há quatro que faz questão de destacar: ‘Atlas de Patologia Cirúrgica’, de 2006 e com edição da Imprensa da Universidade de Coimbra, ‘Microcirurgia Técnica Cirúrgica e Patologia Experimental’, de 2011 e com edição da Fundação Calouste Gulbenkian, ‘Nota Histórica da Actividade Cirúrgica, Assistencial e Pedagógica’, de 2015 e com edição da Sociedade Portuguesa de Cirurgia, e, por fim, o livro ‘Memórias de Medicinas de Ontem – Antropologia da Doença – Ex-Votos’, de 2018 e com edição da Modo de Ler.
por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por João Patrício