Desde sempre se dedicou à pintura e fez o Conservatório de piano, instrumento que toca até hoje. Em 2014, licenciou-se em História da Arte e, dos tempos de estudante universitária deste curso, guarda boas memórias e confessa ter feito vários amigos. Não, não leu mal e sim, esta é a rubrica “Do curso de Medicina”. É que, apesar desta forte ligação às Artes, Helena Saldanha escolheu, acima de tudo, ser médica. Nada mais plausível no seu entender, ou não fosse a Medicina, também ela, uma Arte.
Passou parte da infância em Bragança, onde nasceu em 1941, mas também em Lisboa e em Angola, país para o qual se mudou com os seus pais e onde viveu até concluir o liceu. “Estudei no Lobito, em regime de internato no Colégio de Santa Doroteia e fiz, depois, o liceu em Sá da Bandeira [atual Lubango]”, indica. Durante esse tempo, vinha com frequência a Portugal visitar a família, tendo voltado definitivamente quando ingressou na faculdade para tirar o curso que “sempre quis, desde pequena”.
Helena Saldanha revela, aliás, que nunca teve qualquer dúvida quanto ao desejo de ser médica, apesar de, inicialmente, ter sido desencorajada a seguir Medicina, tanto por médicos oftalmologistas, como pelos seus pais. Pelos médicos, devido ao facto de ter um problema visual de origem desconhecida, conforme explica: “até hoje tem havido muita dificuldade em entendê-lo, até porque não há ninguém que o tenha na minha família, e os médicos achavam, por isso, que seria muito difícil para mim estudar Medicina com este problema”.
E, pelos pais, porque a já referida forte ligação às Artes tem, sobretudo, origem familiar. “Digamos que sou de uma família de artistas: a [artista plástica] Túlia Saldanha e a pintora e arquiteta Maria Luísa Saldanha são minhas primas direitas, e os meus pais tentaram sempre ‘empurrar-me’ para o lado das Letras”, refere. Por esse motivo, Helena Saldanha fez o liceu tanto na área das Letras, que terminou com média de 16 valores, como na área das Ciências, que concluiu com média de 17 valores: “Então, o meu pai disse-me «Assim sendo, vais para Medicina e, se eventualmente o teu problema for tão grave que percas a visão, tens sempre a hipótese de ir para as Letras, onde podes utilizar o Braille”.
Helena Saldanha tornou-se, assim, estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). Sobre a vida académica, diz, entre risos, que a viveu a “100 por cento”. No primeiro ano de curso, conheceu o seu marido, Carlos de Oliveira, também Professor Jubilado da FMUC e vivenciou a crise académica de 1961, tendo participado, igualmente, em “todas as Queimas das Fitas”. Tudo isto sem nunca ter descurado os estudos. “Sempre fui muito trabalhadora porque sabia das minhas dificuldades, e talvez essa tenha sido a minha mais-valia. Uma das coisas que acontecia, e ainda hoje me acontece, devido a este problema visual, era acordar e conseguir ver bem, por exemplo, para caminhar, mas não suficientemente bem para fazer leituras. Por isso, não me podia dar ao luxo de deixar os estudos atrasados”, menciona.
Em 1967, terminou o curso e foi convidada para ser assistente de Fisiologia na FMUC, numa altura em que “era muito difícil para as mulheres licenciadas em Medicina serem convidadas para tal”, assegura. O convite veio da parte do “célebre Professor Gouveia Monteiro”, seu “patrono e uma pessoa extremamente aberta”. E, no ano seguinte, foi também Gouveia Monteiro quem a incentivou a fazer o doutoramento.
Para tal, Helena Saldanha conseguiu uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e mudou-se para Paris, onde viveu até 1974. Lá, trabalhou no Hospital Hôtel-Dieu e no Hospital Saint-Louis, nos quais fez parte da sua especialidade em Medicina Interna, tendo concluído o doutoramento pela FMUC em 1976. Paralelamente ao doutoramento, em 1968 concluiu ainda o Mestrado em Nutrição Clínica pela Universidade de Paris. “A experiência em Paris foi inesquecível e enriquecedora e devo dizer-lhe que não me senti minimamente inferiorizada pelos meus colegas franceses enquanto lá estive: o ensino da Medicina em Portugal, já nessa altura, era muitíssimo bom, e eu fui muito bem recebida e aceite”, denota.
Helena Saldanha considera que a especialidade em Medicina Interna era a mais adequada para si, dado o facto da sua abrangência, algo que a agradava particularmente: “é uma especialidade de tal maneira abrangente que permite, depois, a que exista, dentro da mesma, um aperfeiçoamento em outras áreas que também nos interessem”. É o caso da Geriatria e da Nutrição, áreas pelas quais Helena Saldanha desde cedo se interessou e nas quais desenvolveu um vasto trabalho, sendo das mesmas exemplo, respectivamente, a coordenação do Programa Nacional para a Saúde das Pessoas Idosas, entre 2004 e 2010 e a fundação da Sociedade Portuguesa das Ciências da Nutrição e Alimentação (SPCNA), em 1993.
Ao longo da sua vasta carreira profissional, Helena Saldanha conciliou a docência e a coordenação de mestrados na FMUC com a prática clínica, a direção de serviços hospitalares dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) e a presidência da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia. A par deste seu percurso, publicou ainda livros, participou em centenas de congressos, proferiu outras centenas de conferências e publicou ainda centenas de artigos. Sempre divertida no modo como se expressa, Helena Saldanha afirma que foi simples fazer a gestão entre as suas vidas profissional e pessoal, e que a mesma se deve, sobretudo, a um único motivo: “tenho a sorte de ter sempre feito aquilo de que gosto”.
Além disso, revela, em tom de brincadeira, que o segredo foi viver e trabalhar em Coimbra numa altura em que havia pouco movimento, o que lhe permitia, por exemplo, interromper uma reunião para ir buscar os dois filhos à escola, deixá-los em casa e retomar a reunião pouco depois. E confessa também que, para equilibrar a vida profissional com a pessoal, contou ainda com o incondicional apoio do seu marido. “Tive o privilégio de casar com o meu primeiro namorado, que é meu marido há 53 anos e que sempre me apoiou muito, sempre achou que eu era o máximo!”, afirma.
No ano da sua jubilação, Helena Saldanha matriculou-se no curso de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, licenciatura que concluiu em 2014. “Teve muita graça matricular-me com a minha nota de 7º ano [atual 11º ano] e ter sido caloira, depois de catedrática!”, graceja. E, tal como mencionado no início deste texto, Helena Saldanha fez também diversos amigos nesta sua segunda licenciatura: “Fiz imensos, nem queira saber! Pediam-me conselhos, eu emprestava-lhes os apontamentos… Alguns até vinham cá a casa para fazerem os trabalhos comigo. Foi muito divertido!”.
Já depois desta licenciatura em História da Arte, Helena Saldanha proferiu ainda mais de duas dezenas de conferências sobre a relação entre a Arte e a Medicina. Ou não fossem estas, afinal, as áreas que desde sempre a fascinaram. “A História propriamente dita e a História da Arte têm muito a ver com a Medicina. Não se esqueça do Leonardo da Vinci, que não era médico, mas que foi dos primeiros a estudar Anatomia. É indispensável que nós consigamos reconhecer as expressões do rosto e as suas razões, porque essas expressões visuais e as posições corporais manifestam os sintomas biológicos do indivíduo de forma espontânea e, portanto, isso é uma arte!”, enfatiza.
Helena Saldanha fala com entusiasmo acerca de Arte e, nomeadamente, da pintura. Enquanto esteve em Paris, nos anos 70, chegou mesmo a conhecer Pablo Picasso e Maria Helena Vieira da Silva, entre outros pintores portugueses que se encontravam a residir na capital francesa e que tentaram incentivá-la a deixar a Medicina para que se dedicasse por completo à pintura, embora, como sabemos, sem sucesso.
Acerca do seu registo enquanto pintora, Helena Saldanha assume ser “naturalista e retratista”. Conta que já pintou “praticamente todos os monumentos de Coimbra a óleo” e, de momento, tem estado a dedicar-se à pintura, em aguarela, das Aldeias do Xisto. É com a pintura que ocupa, atualmente, os seus dias. Mas não só. Para além dos 35 minutos de bicicleta estática que faz diariamente, continua a tocar piano e dedica-se ainda à jardinagem, cuidando das flores – orquídeas, azáleas e cristas de galo - que tem no seu jardim.
E porque, nos tempos que correm, a palavra ‘recolhimento’ é repetida até à exaustão e encarada enquanto dever cívico, Helena Saldanha, que não tem podido receber os netos por causa da pandemia, aproveita também para dedicar-se à leitura. “Nunca tive medo de nada. Agora é que tenho medo da pandemia, porque me assusta a ignorância que existe relativamente a este vírus, ao facto de ainda não existirem conhecimentos precisos, a 100 por cento, acerca desta doença”, desabafa.
Ainda assim, e apesar dos já largos meses em situação pandémica, Helena Saldanha salienta que é essencial não nos deixarmos vencer pelo cansaço: “ se houver a contenção necessária e que está bem preconizada pela Direção-Geral da Saúde (DGS), eu penso que as pessoas podem estar mais descansadas. Têm é de evitar os ajuntamentos e a permanência em locais fechados, porque, de resto, não vejo que haja grande perigo em andar ao ar livre, desde que com máscara e mantendo a distância aconselhada”.
por Luísa Carvalho Carreira
fotografias gentilmente cedidas por Helena Saldanha